Celso Athayde: “Me filiei ao comunismo”

Minha família chegou na Favela do Sapo, vinda de um conjunto residencial chamado Cesarão, Zona Oeste do Rio.


 


Eu e meu irmão éramos garotos, minha mãe trabalha como vigilante noturna. Foi uma época de muita luta. Nada diferente de

Seu Rogério se foi, por causa do diabetes, no presídio de Bangu I. Ele era a liderança da favela, seu apelido era Bagulhão, e o sobrenome era Lemgruber, o famoso RL.


 


Hoje conheço muitos jovens que enchem a boca com a expressão: “CV RL, ta ligado!” São jovens que ajudam a mitificar um personagem, que eles não tem noção de quem foi porque não existem registros a respeito e também não existe nenhuma informação que não seja a sigla. Conheci jovens que quando eu perguntei o que significavam essas duas letras – RL – me disseram que não sabiam. Apesar de repeti-las com veneração religiosa, sem saber o que significam. Nunca souberam dos defeitos do seu Rogério ou de suas virtudes.


 


Mas isso não importa. Os mitos servem como referência para o bem ou para o mal. Nesse caso, a referência do crime.


 


Seu Rogério foi fundador da Falange Vermelha e, quando estava de boa maré, reunia a molecada mais próxima para contar histórias.


 


Nossas mães não podiam saber desse contato, porque ele era a representação viva da palavra crime. Ele era o cirme. Mas essa palavra nada tinha a ver com matanças, maldades ou covardia. Crime, para ele, era cometer assaltos e praticar o tráfico para sustentar a base da organização e das suas famílias. Mas sem deixar de respeitar o cidadão comum.


 


Seu Rogério, uma vez, chegou com um long-play do Caetano Veloso e disse que todos nós tínhamos que ouvir. Acho que foi o meu primeiro contato com o Caetano. Ele tinha os cabelos grandes e cara de maconheiro. Seu Rogério falava do Chico Buarque e do Geraldo Vandré. Ele dizia: “Não quero bandido burro aqui, não… Não quero favelado burro aqui, não… Nós que somos pretos, não temos nada, só as bocas de fumo, então temos que ser inteligentes.”


 


Se ele estivesse vivo, estaria vendo sua profecia ir pro brejo. Hoje, os playboys estão entrando e tomando conta do crime.


 


Em pouco tempo, eles serão os donos dos morros e, aí, até a tese de que o crime é uma das poucas formas de mobilidade social possível para os pretos também vai cair por terra.


 


Nunca considerei o Sapo uma favela, mas um conjunto residencial. A questão é que a expressão favela passou a ser uma denominação para os locais onde existe tráfico, e não uma comunidade de construções precárias. Apesar de ter me criado lá, de ter sido da primeira geração da favela, eu não sei nada sobre sua história. Mas, agora, me animei  a pesquisar sobre essa comunidade que me criou, a comunidade que é chamada e considerada o berço do crime, o nascedouro do Comando Vermelho.


 


O fato é que acabou o romance, do jeito que ta, em pouco tempo vai morrer todo mundo, não vai sobrar ninguém. Os mauricinhos já não vêm mais aqui, eles abriram seus deliverys autorizados, eles já não sobem mais os morros em busca de drogas, só de diversões exóticas.


 


As favelas são auto-sustentáveis, pelo menos do ponto de vista do consumo de drogas. Temos que voltar a ter alguma ideologia. Eu sempre tive a minha, seu Rogério foi quem me deu. A mim e aos outros moleques, ele dizia que era comunista convicto, que na prisão ele tinha conhecido umas pessoas que tinham feito até curso de guerrilha em Cuba. Aquela conversa me fascinava por ser um mundo distante do meu e por ser contada por ele.


 


Parecia que ser comunista dava mais ibope do que ser bandido. E como tudo que eu queria era reconhecimento, ibope fama e dinheiro, era a minha chance de embarcar em mais uma viagem! Me filiei ao comunismo, ao menos na minha cabeça. Pintei uma bandeira com o martelo e a foice no meu quarto e pronto, minha mãe nunca reclamou, ela nunca soube sobre o MR8, Var Palmares, ALN, Carlos Lamarca… Nem eu sabia, só entendi depois de grande. Mesmo assim eu era um revolucionário, embora não soubesse de fato o que isso significava, e para ser franco, ainda não sei. Era mais ou menos ser católico apostólico romano não praticante. Enfim, era a tentativa do crime se politizar, eu não era da política e não era do crime, era só um moleque que transitava nos vários segmentos da favela.


 


Seu Rogério, arrumou um monte de livros, que ele dizia que eram subversivos. Pô, essa expressão era foda, eu até me arrepiava só em ouvir!


 


Li muito pouco, do que li, pouco entendi, mas descobri que a origem das posições esquerda e direita vinham da França. Depois da Revolução Francesa, os deputados conservadores sentavam-se à direita do orador, enquanto os mais radicalmente liberais ficavam à esquerda. Mais tarde, passou-se a usar, em todo o mundo, os termos esquerda e direita para designar as duas posições políticas opostas, o liberalismo e o conservadorismo. Depois, a esquerda passou ainda a ser relacionada com as noções de socialismo e comunismo. Na verdade e tô falando o que li, só to reproduzindo feito papagaio. Entenda-se também que o que se chamava de liberalismo, então, não significava o que o termo significa hoje.


 


Eu duvido que o seu Rogério entendesse essas coisas, apesar de que lá no Sapo tinha uns caras de óculos que eram inteligentes pra porra e tginha uns coroas lá que eram meio gênios. Muito embora do Sapo não tenha saído muita gente famosa, só me lembro do nosso vizinho “Rei Arthur”, o ex-jogador Arthurzinho, que morava no bloco 27,  hoje ele é treinador do Vitória da Bahia, mas fez muito sucesso jogando futebol pelo Bangu, Fluminense, Vasco e Corinthians.


 


Eu não tinha coragem de perguntar para ninguém o que era ser de esquerda porque era muito óbvio. As poucas vezes que me arrisquei perguntar, quase passei a ser de direita de tão confusas que eram as respostas. É, mas não devia ser fácil entender os destros.


 


O que sinto é que nós estamos perdendo um puta tempo, você aí lendo essas linhas, ora duvidando se foi eu mesmo quem as escrevi, ou admirando a minha maneira única de falar sobre esse assunto e me achando o máximo, ou então, lendo tudo isso porque a professora da sua faculdade te obrigou e está achando tudo uma merda só. Não importa em que grupo você se enquadre, o que importa é que a vaca está dentro do brejo com o rabo e tudo, e nós estamos juntos, com todo mundo, e se tiver isso claro na mente, já pode ser considerado um privilegiado.


 


O fato é que continuo sendo comunista de terceira categoria, pois nem da escola eu consegui ser expulso, sempre que eu tentava uma revolução no colégio a professora Mariad ria de mim e mandava eu sentar e calar a boca. Apesar de tudo isso eu era fá do seu Rogério, do João Saldanha e do comunismo.


 


Do crime não, desse eu só era próximo, mero vizinho. Claro que dá pra perceber que não sou nenhum cientista política, nem criminal, sou apenas um ignorante desinibido tentando lembrar do tempo em que o crime tentou ser politizado, antes de ser invadido pelo consumismo.


 



Celso Athayde, produtor de rap, criador do Hutúz e co-diretor do filme Falcão – Meninos do Tráfico.


 


Trechos extraído do livro Falcão – Meninos do Tráfico, relato escrito por Celso Athayde, capítulo “O Berço do Crime”, re-publicado com autorização do autor.

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