A causa de Milosevich também é nossa (4)

(parte 4) Quando o futebol reproduz a política


Prólogo:


Uma guerra atroz não deve fazer esquecer outra. Até porque os métodos empregados pelo bloco imperialista da OTAN no covarde massacre balístico da Sérvia sob o pr

Não há de ser coincidência: o reacionário mediático francês Bernard-Henry Lévy (que se fantasiou de “revolucionário” em maio de 1968, mas logo, com seu compadre André Gluksman, foi recrutado pela direita, da qual se tornou um bem adestrado cão de guarda), após ter sido um dos mais histéricos propagandistas do bombardeio “humanitário” da Sérvia, insultando com arrogância quem ousasse tomar a defesa de Milosevich, publicou em julho passado, no auge dos bombardeios israelenses no Líbano, um artigo profundamente humanitário no Le Monde, não para chorar as dezenas de crianças libaneses carbonizadas pelo facho-sionismo e sim para compadecer-se do sofrimento dos habitantes de Haifa, vítimas dos mísseis lançados pelos “terroristas” do Hezbollah.


 


Na mesma linha de pensamento, G.Bush, chefe do comando supremo do crime político organizado em escala planetária, celebrou no recente massacre balístico do Líbano, empreendido com hitleriana crueldade pelos israelenses, o combate ao “fascismo islâmico”. De Islam não sei se ele entende, mas de fascismo, ele é melhor ainda na prática do que na teoria.


 


Segue, pois a quarta parte da série suscitada pelo assassinato de Milosevich na cadeia do Tribunal de Haia.


 


Não me incluo entre os que buscam a todo preço analogias entre o futebol e a política, mas, na recente Copa do Mundo, a derrota de seis a zero sofrida pela seleção da Sérvia e Montenegro perante a Argentina (cujo desempenho, embora não tão apático quanto o do Brasil, ficou bem aquém das expectativas) serve de triste emblema para as muitas outras e infinitamente mais graves derrotas que balizam a criminosa destruição da Iugoslávia pelo bloco imperialista da OTAN e que culminaram no covarde massacre balístico da Sérvia sob o pretexto “humanitário” de proteger os albaneses do território sérvio do Kosovo. Foi muito difícil aos jornalistas honestos, que não alugam o córtex cerebral nem uivam com as lobas e lobos da mediática imperialista, fazer ouvir sua voz no alarido da propaganda bélica, empenhada em completar pela intoxicação mental a obra dos mísseis da OTAN.


 


Após ter participado, ao lado de seus congêneres, da campanha de calúnias que ajudou a quebrar a espinha dorsal da resistência sérvia, Financial Times, eminente expressão periodística da insolência britânica, publicou um comentário entre bem humorado e debochado[1] sobre o desempenho da efêmera seleção da Sérvia e Montenegro, cujo nome não passava de um atestado de óbito: representava os destroços da Iugoslávia, um Estado que não mais existia. (No dia 21 de maio, um mês antes da Copa, num plebiscito de resultado previsível, os montenegrinos tinham dado o tiro de misericórdia na Iugoslávia moribunda, separando-se da Sérvia).


 


O tema do comentário é o “prêmio” criado por jornalistas do próprio Financial Times para a pior equipe da Copa do Mundo. Na de 1998, a “best of the worst” foi a equipe estadunidense. Na de 2002, a da Arábia Saudita. Em 2006, Arábia Saudita, Ucrânia e Togo mostraram-se fortes candidatos, aquela, sobretudo, que de qualquer modo, já ganhou título vitalício de persistente mau futebol. Mas ela, assim como a Ucrânia, estavam numa chave em que, além da Espanha (que derrotou a Ucrânia por quatro a zero, habilitando-a a disputar a taça da pior equipe), figurava também uma terceira equipe fraquinha, a da Tunísia. As recíprocas fraquezas se neutralizaram, impedindo que os candidatos a “best of the worst” exibissem todas suas virtualidades e que o time saudita levasse o bicampeonato dos piores. Ademais, Togo, embora tenha perdido as três partidas que jogou, merecia circunstâncias atenuantes, que o jornal explica em tom condescendente:  


 


“Escolher Togo seria cruel. Normalmente, não deveria haver complacência, porque nossos juizes são selecionados por sua desumanidade. Mas esta era a primeira Copa do Mundo de Togo e por isso faltava-lhe um mau atributo decisivo, a saber a recusa de aprender com a experiência”.


 


Por isso tudo, o “prêmio” coube à Sérvia e Montenegro, “que seguiram ao pé da letra o paradigma balcânico”. Aqui o deboche dos jornalistas britânicos se torna desfaçatez. O termo “balcanização” designa a política, adotada pelas grandes potências européias desde o século XIX, de “estimular” a criação de uma poeira de micro-Estados impotentes e submissos. A criação do Uruguai pelo imperialismo britânico, para servir de Estado-tampão entre o Brasil e a Argentina, bem como a do Panamá, arrancado à Colômbia pelos imperialistas estadunidenses, são aplicações do mesmo método em nosso continente. Para medir a indecência da caçoada que se permitiu o prestigioso jornal dos financistas, vale recordar que Blair, um dos principais artífices da nova balcanização, justificou os sucessivos e mortíferos bombardeios da OTAN sobre a TV e demais emissoras sérvias, que provocaram a morte de dezenas de jornalistas e outros trabalhadores, com o notabilíssimo argumento de que elas faziam propaganda do governo iugoslavo, portanto, opunham-se à nova balcanização imperialista.


 


À guisa de conclusão, reforçando sua candidatura a “best of the worst” da máquina de propaganda do imperialismo neo-liberal, os articulistas do Financial Times, após lembrar que os jogadores iugoslavos eram conhecidos como os “brasileiros da Europa”, pondera  que o “colapso” (entendamos, o assassinato) da  Iugoslávia


 


“já criou muitos times fracos, inclusive o da Croácia, e daremos boas vindas mais adiante ao do Montenegro. Qualquer nova partilha territorial -um dia quem sabe a República do povo do sudoeste de Nis e Posto de Gasolina- e a supremacia da Arábia Saudita pode terminar de vez. A Sérvia ganhou nosso prêmio. Se (os sérvios) quiserem, podem rejeitá-lo, classificando-o de provocação ocidental”.


 


Na lógica da insolência, não basta caçoar. É preciso tripudiar. Os articulistas, nesta peroração final, explicitam aquilo que até o leitor mais obtuso já tinha entendido. Ao caçoarem do futebol sérvio, estavam também caçoando do povo sérvio, cuspindo no túmulo da Iugoslávia socialista. Ou haveria outra interpretação para a chacota a respeito da futura “República do povo do sudoeste de Nis e Posto de Gasolina”? Teriam cometido apenas um ato falho, tirando Nis do inconsciente coletivo dos crimes de guerra britânicos? (Esta pequena cidade da Sérvia, juntamente com a aldeia de Korisa, foi devastada pela OTAN com bombas de urânio “empobrecido” e de fragmentação[2]). O deboche sobre a “República do povo” elimina esta hipótese. Eles estão se referindo, através da derrota futebolística, a uma derrota política incomensuravelmente mais importante: a destruição do último reduto do campo socialista no Leste europeu, da última conseqüência política da heróica vitória do Exército Vermelho e da resistência comunista ao nazi-fascismo. Disse bem o inglês Hobsbawm: em 1991 a burguesia perdeu o medo… 


Enfim, ao falarem de “brasileiros da Europa”, os jornalistas do Financial Times nos fazem pensar no brasileiro Jean Charles de Menezes, executado sumariamente e sem razão alguma no metrô de Londres pela polícia criminosa de Blair.


 


Notas


 


1- “Serbian disunity clinches best of the worst”, Financial Times 26-6-06.


2- Em Korisa, foram mortas, em 14 de maio de 1999, cerca de cem pessoas. Tais bombardeios, ordenados por Clinton, Blair e parceiros, violaram resolução da ONU, de agosto de 1996, que classificou de intrinsecamente criminoso o uso destas armas de destruição em massa. A OTAN, de resto, promoveu muitos outros bombardeios mortíferos de escolas, hospitais, embaixadas, pontes, instalações elétricas, etc. 



(continua)
 

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