“Guerra ao Terror”: Lições da resistência iraquiana

As formas de resistência do povo iraquiano e a dificuldade dos soldados estadunidenses para enfrentá-la são o centro do filme dirigido pela estadunidense Kathryn Bigelow.

Metáfora para os impasses enfrentados pelos EUA na ocupação do Iraque, “Guerra ao Terror”, da estadunidense Kathryn Bigelow, retrata as dificuldades encontradas pelos soldados especialistas em desarmar bombas em plena zona urbana de Bagdá. As dificuldades não estão em apenas evitar que elas explodam, mas de entender o que se passa ao seu redor. Enquanto desarmam megatons que podem levar quarteirões pelos ares, eles se veem cercados por cidadãos comuns que assistem a seu trabalho como se estivessem diante da telinha. Mas que na verdade travam com eles um jogo de vida e morte. Eles buscam muitas vezes sem sucesso identificar qual deles irá acionar, via controle remoto, o mecanismo que tornará sua tarefa inglória. Porque a resistência iraquiana modifica sua ação a cada instante e seus militantes são na verdade cidadãos comuns vistos nos prédios, nas feiras e nas ruas congestionadas.

Em dado momento, um deles pode ser visto detonando bombas via celular e o especialista em desarmar bombas pode não escapar à explosão. Noutro instante, ele até consegue evitar que centenas de megatons não produzam uma gigantesca cratera e centenas de mortos, porém quem deixou o carro que a provocou evaporou-se em meio à multidão. A luta de seu pelotão, então, se torna inútil a ponto de o sargento afrodescendente Sanborn (Anthony Mackie) desabafar: ”Odeio este lugar”. Surge diante dele e dos demais soldados uma zona de instabilidade. O inimigo o espreita à sua vista, sem estar ao seu alcance. Eles ficam a se medir, a observar reciprocamente os movimentos uns dos outros, sem que os soldados da ocupação possam identificar quem, mais uma vez, irá acionar o mecanismo fatal. Numa guerra de guerrilha a descoberto, espécie de variação da ação submersa, eles se enfrentam e a resistência os confunde.

Fios narrativos reforçam perfil dos personagens

São com estes entrechos que Bigelow, de “Caçadores de Emoções”, sobre a caça empreendida por um policial ao chefe da quadrilha que assaltou um banco, monta sua narrativa. Uma narrativa seca, sem adornos ou sequências para amenizar a crueza da tarefa do “desarmador” de bombas. Inexiste uma linha a seguir, uma história em que o espectador possa se identificar com os soldados, ela o deixa respirar entre um entrecho e outro, com tênues subtramas. Numa delas centra-se no confronto entre o sargento-“desarmador” William James (Jeremy Renner) e Sanborn, noutra na relação entre James e o garoto iraquiano, vendedor de cópias de CDs, com intervalos para a vida particular deles e de outro membro do pelotão Eldridge (Brian Gerarghty). São apenas fios narrativos que ajudam a construir o estado psicológico dos personagens, humanizando-os em meio à crueza da invasão de um país que, a exemplo do que ocorreu no Vietnã, não entendem.

Bigelow o reflete ao mostrar a distância existente entre os soldados, que ficam isolados em seus acampamentos, e o cidadão iraquiano às voltas com seu cotidiano. Eles apenas entreolham-se, vislumbram-se, desconfiados uns dos outros. Quando há uma relação mais próxima, ela é cheia de desconfianças e pode acabar numa armadilha. O garoto pode ser ou não um vendedor de cópias de CDs, o homem que fica atrás da banca pode ser ou não um vendedor ambulante. Estas indefinições restringem ainda mais o espaço de manobra do invasor – ele não é visto como alguém com quem se possa ou deva se relacionar. Inexiste, como nos filmes sobre a II Guerra Mundial, a empatia entre a população do país liberado e os soldados aliados – os EUA não são libertadores, representam o inimigo a combater. Bigelow bem o ilustra numa breve sequência, a mais significativa do filme, quando dezenas de crianças jogam pedras em Sanborn, James e Eldridge, que passam por eles num jipe. A hostilidade ampliou-se da área política, da apropriação da área geográfica, para ganhar corações e mentes do povo iraquiano.

Tarefa do desarmador de bomba é inglória

É significativo que assim seja e que Bigelow sem diálogo expositivo algum o exponha ao espectador. Este poderá ficar preso ao suspense, à montagem precisa, ao olhar aterrorizado de Sanborn quando James lhe diz que não conseguirá evitar que o homem-bomba exploda, e aos iraquianos acompanhando de seus prédios a luta deles para evitar que a ação seja frustrada. São imagens fortes que mostram a tarefa insana do “desarmador” ao tentar evitar o imprevisível, que reflete a forma de a resistência iraquiana combater as poderosas tropas de ocupação. Todo o armamento moderno, o macacão de segurança dotado de alta tecnologia e a precisão dos atiradores elite são inúteis diante dessa tática. Tanto que beira a demência o conselho do coronel-médico John Cambridge (Christian Camargo) a Eldridge: ”(…) a experiência na guerra pode ser divertida”. Um conselho que remete ao comentário igualmente insano do tenente-coronel Kilgore (Robert Duvall) em “Apocalypse Now”, ao dizer que adorava o “cheiro de napalm”.

Não deixa de ser emblemático que uma guerra como a do Iraque tenha altas doses de insanidade. E glamour imagético algum, pois Bigelow retira de seu filme toda áurea de heroísmo. As ações de James são destituídas de desprendimento, de alcance sobrehumano, ele é sempre frio, muitas vezes temerário, porém se ele for para os ares o espectador verá como natural uma situação em que o homem/soldado luta contra o mecanismo de defesa da resistência iraquiana. A secura das cenas contribui para isto. Há, no entanto, uma relação umbilical entre James e o perigo. Ele o adora. Acha natural que seja assim. Diferente de Sanborn, louco para voltar pra casa, arranjar uma namorada e ter um filho. James, num belo momento do filme, analisa as etapas da vida do filho e como ele deixará de ser alguém cheio de sonhos para se tornar pragmático, destituído de qualquer esperança.

Indicações ao Oscar tirou filme da prateleira

Talvez sua atitude se relacione mais com a falta de esperança para ganhar uma guerra em que as forças da resistência são difíceis de identificar. E que seu filho viverá num mundo em que o espaço de manobra diminui e ele não vislumbra algo melhor à frente. Pessimista do ponto de vista de Bigelow e de seu roteirista Mark Boal, realista no entendimento do espectador pela forma como eles montaram sua narrativa. Não há possibilidade de superação à vista. Daí a reticência com que os produtores trataram o filme, não investindo em sua ampla distribuição. “Guerra ao Terror”, mesmo tendo participado do Festival de Veneza em 2009, só ganhou espaço ao ser candidato a nove Oscar este ano (1). Passando, portanto, a ser visto com potencial de bilheteria. Revela o quanto ele tem de inquietante e de verdade.

Tem o mesmo potencial do bom “Redacted”, de Brian DiPalma, que não foi exibido em grande circuito. Com idêntica aspereza, ele encena o estupro de uma garota iraquiana por soldado dos EUA e a falta de atitude dos oficiais em relação a isto. A narrativa documental (filme é todo em digital) e a visão de que as forças de ocupação praticam barbaridades com o povo iraquiano deve ter contribuído para isto. Ambos se somam ao ótimo “A Caminho de Guantánamo”, de Michael Winterbotton, sobre os maus tratos sofridos pelos prisioneiros de vários países mulçumanos torturados nesta base estadunidense fincada no território cubano. São filmes que fogem ao tratamento maneirista ou de heroísmo banal comuns aos filmes que tratam da ocupação do Iraque. Os três a discutem sem lentes e efeitos que distorçam o que ela realmente significa: a desestruturação de uma potência média do Oriente Médio.

Filme se soma aos que denúnciam invasão do Iraque

“Redacted” e “A Caminho de Guantánamo” são obras de denúncia, ao chamar atenção sobre o comportamento das tropas estadunidenses no Iraque. Já em “Guerra ao Terror” (título nacional que não reflete o que trata o filme), Bigelow vale-se de sua experiência em filmes de ação para envolver o espectador criando sequências de puro suspense, sem deixar de mostrar a impossibilidade de os EUA terem sucesso numa ocupação em que a força da resistência vem de sua base popular. Ela o faz contrapondo a ação dos soldados à da resistência, cercada de silêncio e de desafio aberto. Não é outra a atitude dos resistentes quando se mostram nos prédios e nas ruas no instante em que James tenta desarmar os megatons diante deles. E, assim, ela toma posição: a decisiva atuação de centenas, senão de milhares de membros da resistência, e o apoio do povo iraquiano terminam por equilibrar a superioridade tecnológica das tropas de ocupação. Daí a força e a validade de seu filme.

“Guerra ao Terror” (“The Hurt Locker”). EUA. 2008. Guerra. 131 minutos. Roteiro: Mark Boal. Direção: Kathryn Bigelow. Elenco: Jeremy Renner, Anthony Mackie, Brian Geraghty, Christian Camargo, Evangeline Lille, Ralph Fienes, David Morse, Guy Pearce.

(1) Concorre nas categorias: filme, diretor, roteiro original, edição de som, mixagem de som, edição, fotografia, trilha sonora, ator, e ganhou seis Bafta (Academia Britânica de Artes Cinematógráfica e Televisiva): filme, direção, roteiro original, edição, som e fotografia, na premiação dos melhores de 2009.

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