Vavilov e o centro de diversidade das espécies no Brasil (1)

Algumas espécies agrícolas são mais íntimas ao agricultor do que outras. Por mais que seja adaptada à região, a espécie exótica raramente terá a mesma identificação ou afinidade com o sertanejo que aquela originária do próprio local. Chauvinismo rural? Vejamos.

A clássica obra intitulada “A origem, variação, imunidade e melhoramento das plantas cultivadas”, escrita em 1926 pelo notável geneticista soviético Nicolai Ivanovich Vavilov, descreve diversas espécies cultivadas e seus parentes silvestres. Vavilov identificou algumas regiões do mundo, isoladas por montanhas, planícies ou desertos, nas quais observou grande diversidade de determinadas espécies. Essas regiões foram denominadas centros de origem de plantas cultivadas. Em seu estudo, identificou oito centros de origem de espécies, alguns dos quais foram assim subdivididos: I- Chinês; II – Indiano, II.a- Indo-Malaio; III- Asiático Central; IV- Oriente Próximo; V- Mediterrâneo; VI- Abissínio ou Etíope; VII- Mexicano do Sul e Centro Americano; VIII- Sul-Americano, VIII.a Chiloé e VIII.b-Brasil-Paraguaio. Hoje se sabe que é mais apropriado o termo centro de diversidade, levando-se em conta que a origem das plantas cultivadas ocorreu de maneira difusa e gradativa no espaço e no tempo. Esse estudo é fundamental para entendermos o que se passa na agricultura mundial na atualidade. Para facilitar a compreensão, usaremos alguns exemplos.

Vejamos o caso da Alemanha. Espécies não nativas, mas de enorme importância econômica e cultural no país como a batata, a cevada ou a beterraba, apresentam base genética estreita, por maior que seja a participação das universidades e instituições de pesquisa no melhoramento genético dessas espécies ou por mais diversificado que seja o germoplasma germânico. Os grandes monopólios privados do ramo de sementes estão cada vez mais fortes e não raramente acabam por amarrar o agricultor a seus pacotes tecnológicos, diferentemente do que seria com culturas locais que possuem grande variabilidade genética, e, portanto, são mais resistentes ou tolerantes aos diversos tipos de intempéries e patógenos, constituindo-se em um dos maiores patrimônios que um povo pode possuir.

Imaginemos o México, berço milenar do milho (uma cultura agrícola das mais importantes do mundo e base da alimentação de várias gerações), aos poucos substituir esse cereal por espécies exóticas mais vulneráveis geneticamente ou muito aparentadas entre si. Certamente o agricultor mexicano, não dispondo do mais precioso bem que é o banco genético natural, sem a enorme diversidade genética natural in loco, passaria a depender de sementes beneficiadas e melhoradas pela indústria privada de sementes. Hoje, com o milho, ele mesmo pode ter seu campo de sementes crioulas e, inclusive, manter um programa de melhoramento próprio (seleção massal, por exemplo) capaz de garantir suas tortillas por muitos séculos. Por isso mesmo, o movimento social mexicano há tempos lançou a campanha “Sin Maíz no hay País” que sinaliza que sem o milho não pode haver soberania nacional naquele país.

Sigamos o seguinte raciocínio: por mais que a Cutrale (ou a United Fruit) invista por criar uma tradição local, por exemplo, em torno da cultura da laranja (originária da China) para a produção do suco, essa espécie é mais susceptível a doenças e vulnerável a outras intempéries no Brasil pelo simples fato de estar distante genética e geograficamente de seus parentes silvestres. Muitas espécies plantadas em diversas partes do mundo apresentam essa estreita base genética, aguçada pela apropriação genética das multinacionais do ramo agrícola.

Seremos, então, contra o intercâmbio de espécies importadas? Em hipótese alguma. É possível imaginar o brasileiro sem a sua fonte de carboidratos predileta (arroz) só por ele não ser verde-amarelo? Jamais. Propomos a eliminação das plantações de laranja ou soja por elas não serem autenticamente brasileiras? Ninguém em sã consciência o faria. Entretanto, há de se valorizar outras culturas agrícolas as quais os seus centros de diversidade (centro de origem) encontram-se justamente no Brasil e que com o passar tempo vão sofrendo com a chamada “erosão genética”. Antes de falar que o seu suco predileto é o de laranja, que tal experimentar antes um de pitanga?

Quando falamos que o cupuaçu é nosso, não se trata de mero arroubo bairrista ou palavra de ordem anti-ianque. De fato, o centro de origem dessa espécie no qual falava Vavilov fica na Amazônia. E a mandioca? Decerto precisa ser mais valorizada, a favor de nossa soberania alimentar. Enquanto essas e tantas outras espécies originárias do Brasil não receberem pesados investimentos em pesquisa e não dispuserem de maiores incentivos para serem cultivadas, corremos o risco de assistir a destruição desses berços da diversidade genética para dar lugar a plantações de outras culturas cujos genes são propriedades privada ou estão muito inacessíveis aos povos.

Outro exemplo, Maués, no Amazonas. A cidade é conhecida como a capital do guaraná. Verdadeiro patrimônio nacional que abriga uma enorme riqueza do país: o banco genético natural do guaraná conservado in situ, onde o germoplasma é preservado em seu habitat natural. No ano de 2100, quando aparecer uma grave doença devastando plantações de guaraná pelo Brasil afora, de onde virá o gene (ou genes) resistente acaso ele não se encontre em algum banco de germoplasma ex situ? Virá justamente desse centro de diversidade localizado na região de Maués que, portanto, precisa ser minimamente preservado até lá.

(Continua)

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