“A Criança”:Vítimas do sistema

Irmãos Dardenne, cineastas belgas, abordam a marginalidade em Bruxelas com olhar conservador.

Um filme sobre os problemas enfrentados por um casal de adolescentes ao ter o primeiro filho. Não um casal qualquer, mas de dois jovens marginais, numa Bruxelas com os mesmos problemas de uma cidade do Terceiro Mundo. E esse casal pode ser visto não como culpado, sim como membro de uma estrutura em que lhe cabe o papel de out-sider. Não qualquer out-sider, mas daquele tipo de marginal que não se sente culpado por agir de uma forma que o coloque numa posição de fora do status normal. Isto pouco lhe interessa, pois quer tão só usufruir as benesses do que resta da sociedade de bem-estar social. As migalhas, os esteriótipos, a periferia do que, através do consumo, pode lhe dar prazer.



          
Dito desta forma não há novidade, em “A Criança”, filme dos Irmãos Dardenne (Luc e Jean-Pierre), premiado com a Palma de Ouro, do Festival de Cannes de 2005.A novidade está na forma como a dupla articula conteúdos, a partir de uma estética simples e direta, para narrar a história do jovem, quase adolescente, casal Bruno (Jérémie Renier) e Sonia(Débora Françóis). A começar pela carga simbólica que a obra enseja e como escapa à estética da violência e do uso que faz de crianças como marginais. Bruno e Sonia acabam de ter o primeiro filho e, ao invés de curtirem a maternidade, se reencontram e passam a perambular pela cidade e pelo campo, como duas crianças sem responsabilidade alguma pelo futuro do filho.


 


           
No neoliberalismo e na globalização só existe o momento presente


 


           
Revelam-se crianças pelo descompromisso, pela imaturidade e pela ausência horizonte que possa descortinar para si próprios. Estão, assim, em sintonia com os ditames do neoliberalismo e da globalização que impõem a idéia de que só existe o momento. Tudo está contido naquele instante, nada para além dele, só o consumismo. A criança, porém, é o elo que os ligam ao futuro, à maturidade e a possibilidade de se transformarem em adultos. Então, Sonia, em sua ânsia de legalizar a existência do filho decide registrá-lo. Um ato que também para Bruno não tem maiores conseqüências. É então que começam a surgir diferenças entre eles. Ela, ao legalizar a existência do filho, para a possível aceitação social, começa a distanciar-se de Bruno. Quer não só a materialização da paternidade, mas também de espaço onde possa criá-lo.



            
O papel de mãe de Sonia se destaca. Para ela o filho deve ser colocado acima da vida errante e sem perspectiva que  Bruno insiste em ter. Ele, pelo contrário, não objetiva o mesmo, quer se manter na trilha dos pequenos roubos, para ganhar algum dinheiro. Para isto usa dos mais diversos expedientes: aluga a kitnet onde ele e Sonia moram para um amigo, vai morar à beira do rio, num exíguo espaço de concreto, que chama de abrigo, e se deleitar com o blusão que comprou numa loja. Ela, por seu turno, precisa levar adiante sua idéia de ocupar o espaço para assegurar o conforto do bebê. Muito conservador pode parecer, quase reacionário, pois os Irmãos Dardenne atribuem a Sonia o papel de tentar constituir uma família da relação, a princípio impossível, entre ela e Bruno.


            



Sistema capitalista impõe o consumismo


            



No entanto, não se trata de constituir família, mas de responsabilizar-se pela sobrevivência da criança. Sonia compreende a dificuldade de concretizar este intento, se Bruno continuar com sua vida de out-sider. As dificuldades entre ambos começam a partir daí. Ela vai se afastando dele aos poucos, até o rompimento total, quando, uma vez posto em curso seu plano, ele decide transformar a criança numa de suas formas de ganhar dinheiro. É quando o filme mostra seu objetivo, tratar da ânsia por dinheiro partindo da vida do casal de out-siders. Com a diferença de que são out-siders por optarem pela vida de facilidades e, também, por serem excluídos das benesses do sistema.



           
O descompromisso de Bruno é devido a estes dois fatores. Ele diz a Sonia que não irá procurar um emprego, porque consegue dinheiro na hora que quer. E mostra o quanto tem no bolso e o que com ele pode comprar.Daí que tudo para ele é alcansável, basta só pegar e escapar. Quando falta dinheiro para continuar desfrutando da boa vida que seus furtos lhe dão, ele usa o expediente que faz explodir sua relação com Sonia. Até o filho passa a ser mercadoria, cotada no mercado da venda de bebês a alto preço. Assim, ao contrário de Sonia, ele não vê o filho como algo de seu, parte de seu ser; é tão só “algo” que pode prolongar seu hedonismo. Choca pela maneira com que ele empreende seu intento sem pudor, ética ou moral alguma.



            
Apenas Sonia vai revelar seu lado maternal, sua ira por não aceitar o que Bruno faz. Então, ele passa a perambular com o carrinho de bebê pela cidade, sem rumo algum. E o carrinho de bebê não é o carrinho de bebê na acepção do pai que conduz seu filho; trata-se, na verdade, no carrinho de supermercado, onde se guardam os produtos que deverão passar no caixa. O caixa é o bolso dos traficantes de bebê, que os revende no mercado de ação do primeiro mundo a preços exorbitantes. Esta simbologia, pesada, carregada de horror, perpassa todo o filme. Bruno vai, aos poucos, perdendo um a um de seus sustentáculos: o abrigo já não lhe serve, as portas da kitnet lhes foram fechadas por Sonia, esta já não lhe quer, seus parceiros dele se distanciam e ele não mais consegue falar com eles, porque lhe falta o celular que carrega de um lado para o outro. Não é mais tão seguro de si e da possibilidade de ganhar dinheiro fácil.


 


             
Personagem não tem relações mas com produtos e dinheiro


             



Nada há demais, então, na forma de os Irmãos Dardenne mostrarem o comportamento de Bruno. O próprio sistema capitalista o fez assim. É o que faz com que Bruno deixe de ter relações com pessoas para as tê-las com produtos (a jaqueta que compra para Sonia) e com o dinheiro. Este lhe é útil quando permite que adquira mais um produto ou lhe facilite sua ida com Sonia a uma lanchonete. Tudo que tem que fazer é buscá-lo onde ele estiver. Esta busca da moeda, do papel moeda é, na verdade, o impulso cotidiano daqueles que foram tomados pelo espírito do capitalismo: a busca incessante do dinheiro. Tudo gira em torno dele, como se fosse o fim último de todos que compõem a estrutura social. Bruno apenas não usa o sistema legalizado para obtê-lo. No mais seu comportamento está adequado ao que o sistema capitalista o treinou para fazê-lo: girar a economia adquirindo produtos.



           
Desta forma, ele é tão só um out-sider, não um  ladrão, sim um marginal, no sentido de alguém que é mantido fora do sistema. Os Irmãos Dardenne o mostram de forma adversa ao que se acostumou a ver no cinema nos últimos tempos: os bandidos jovens, mergulhados na busca incessante do capital e tomados pela violência desmedida. Nos outros filmes, esta é mostrada segundo a “estética da violência”, que nenhuma dor provoca, só o gozo intenso do belo plano em câmera lenta (vide “Cidade de Deus”). Em “A Criança” não há “estética da violência”, a marginalidade não é glorificada. Os personagens não se metem em situações de violência explícita, salvo numa ou outra seqüência que em nada comprometem a estrutura do filme. São sintomáticas da situação vivida por Bruno naquele momento, nada mais.



           
A única ligação que há entre “A Criança” e os filmes que usam e abusam da “estética da violência” é que ambos tematizam o uso de adolescentes no universo do crime. Bruno usa-os para agilizar o assalto a mulheres indefesas. Eles o acompanham para participar do botim, sem interesse algum em dominar uma área do crime. Seu interesse é desfrutar dos prazeres que o dinheiro lhes proporciona. Os adolescentes que ajudam Bruno estão integrados a uma instituição, se o ajudam é para ganhar “algum dinheiro”. Inexiste ligação forte entre eles, tudo é ocasional, devido a uma necessidade temporária de moeda para adquirir um produto. Até que os fatos se compliquem, Bruno pode levar adiante sua vida de “prazeres e consumismo”.


 


           
Busca do dinheiro fácil leva Bruno ao esgoto


           


Os Irmãos Dardenne o conduz em círculos até o momento em que sua segurança rui e ele tem de recorrer a Sonia para escapar a armadilha que ele mesmo montou. Sua visão do imediato, do consumismo, do prazer dado pelo dinheiro se desmancha, ao chocar com a de Sonia, voltada para o compromisso. A vida de criança acabou; há alguém para ser criado e é preciso crescer. Ela mostra como fazer, ele resiste. Ao sucumbir à procura, quer ser aceito de volta, ela o recusa, ele desce ao porão fétido onde nem cheiro de dinheiro há. É perseguido pelos traficantes de bebês para ressarci-los do prejuízo que lhes causou, perde o único elo que o mantém com o mundo real – o celular -, seu assalto fracassa e, pior dos mundos, Sonia não o quer mais. A cena em que ele esmurra a porta, pedindo para entrar, pois está com fome, é de arrepiar, sem gerar piedade nenhuma.
           


Em nenhum momento se sente pena de Bruno, ele sequer tem uma boa cara que faça o espectador se identificar com ele. Roga-se por sua punição. Nesse instante os Irmãos Dardenne caem no clichê dos velhos filmes de gangster americano, imposto pelo Código Heys (a censura americana): mostrar o bandido sendo executado pela polícia ou se entregando cheio de culpa. Provocam a redenção de Bruno. Ele se envergonha e se regenera. O happy-end se impõe. Uma lição de moral para os tempos de hiper-violência de estado, em que pouco importa se há crianças no alvo a ser atingido ou de que o simples fato de ser negro é “crime” suficiente para ser deportado de um país do Primeiro Mundo.



           
Sai-se do cinema com a impressão de que a redenção de Bruno é suficiente para esconder as fraturas e a culpa do sistema que o criou. Mas, para não fugir à regra, Bruno é tão só fruto desse mesmo sistema; afinal é a estrutura capitalista que cria Brunos pelo mundo afora. A denúncia dos irmãos Dardenne que poderia ser contundente mostra-se frágil e, por que não? -, reacionária.


 


“A criança (L´Enfant)”. Drama. Produção: França/Bélgica. Duração: 95 minutos. 2005. Roteiro: Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne. Elenco: Jéréme Renier, Débora Françóis.

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