100 de Quintana, 50 de Brecht!

Quando eu for, um dia desses, Poeira ou folha levada
No vento da madrugada, Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
( Mário Quintana em O Mapa)


Os trabalhos das montanhas deixamos para trás,
Diante

Em 2006 temos os cem anos do nascimento do poeta, contista e literato gaúcho Mário Quintana. Em 2006 temos os cinqüenta anos da perda do poeta, escritor e dramaturgo Bertolt Brecht. Vidas distintas. Vidas contemporâneas. Exemplos de vida. Prosas lidas como versos, versos lidos como prosas.



Quintana, o eterno menino


Mário de Miranda Quintana nasce em Alegrete, Rio Grande do Sul, em 30 de julho de 1906, em uma noite fria de menos de um grau. A cidade, como costumava dizer, é o ponto de partida de sua poesia. Dali, parte, em 1919, para estudar no Colégio Militar de Porto Alegre, onde permanece por quatro anos, só interessando-se por História, Português e Francês.



Seu primeiro trabalho, em 1924, é na Livraria do Globo, na capital, como caixeiro. São só três meses, até a volta para Alegrete, quando trabalha na farmácia de seu pai. Por dois anos, como eterna criança, como sua vida demonstrará, se diverte fazendo limonada de citrato de magnésio, até a morte de sua mãe.



É a razão para o retorno a Porto Alegre e ao trabalho na Livraria do Globo, onde encontra a efervescência intelectual e cultural de uma cidade cosmopolita e provinciana. No mesmo ano, conquista seu primeiro prêmio literário com o conto A sétima personagem.



Em 1927, morre o pai, ao mesmo tempo em que, no Rio de Janeiro, apoiado por Álvaro Moreyra, publica, na revista Para Todos, uma poesia de sua autoria. Em 1929, já está integrando a equipe de redação de O Estado do Rio Grande, órgão do Partido Libertador e que tinha como redator-chefe Raul Pilla. Neste caso, seguia a tradição de seu pai, conspirador na Revolução de 1923. Mas era mais poeta do que político.



Com o Movimento de 1930 e a unificação conjuntural das classes dominantes gaúchas, participa do 7º Batalhão de Caçadores e passa a publicar poemas no Correio do Povo e na Revista do Globo. Agora, está no centro na produção intelectual gaúcha. Nesta ocasião, se dirige para o Rio de Janeiro, onde permanece por seis meses, vindo a conhecer Cecília Meirelles, para ele “a poesia em pessoa”.



Em 1934, começa a realizar traduções de Guy de Maupassant, André Gide, Virgínia Woolf, Aldous Huxley, Joseph Conrad, entre outros. Destaca-se também a tradução de Marcel Proust, com sua obra-prima Em Busca do Tempo Perdido.
Em 1940, finalmente, sua estréia em livro. Com A Rua dos Cataventos, em trinta e cinco sonetos, considerados por muitos como um dos mais belos da poesia brasileira.



Três anos depois, inicia a publicação na Revista de São Pedro, importante órgão literário gaúcho. Ali, aparecem as crônicas poéticas chamadas Do Caderno H, segundo Quintana, porque eram escritas na última hora, na hora H.


 


Entre 1946 e 1951, publica Canções, Sapato Florido e o Batalhão das Letras (este era composto de poemas infantis, iniciando seu alicerce junto às crianças), O Aprendiz de Feiticeiro, Espelho Mágico (com apresentação de Monteiro Lobato). São anos de intensa produção, quando seu nome, definitivamente, está formado como um dos grandes poetas rio-grandenses.



Em 1953, o Corrreio do Povo, ainda o principal jornal de circulação no Rio Grande do Sul, transforma Quintana em colaborador permanente. Dali, até 1967, publicará, semanalmente, a seção Do Caderno H.[1]  É a consagração definitiva. Neste meio tempo, a Editora Globo lança Poesias, reunião das suas obras poéticas até então, e Quintana interpreta seus próprios poemas em um disco (lançado em 1963).



Em 1966, já é um nome nacional. Com seleção de textos e organização de Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, é lançado, no Rio de Janeiro, Antologia Poética. Por esta obra, em 25 de agosto, há quarenta anos atrás, Quintana é recepcionado na Academia Brasileira de Letras por Manuel Bandeira e Augusto Meyer, iniciando um período de sonhos e frustrações.[2] Com Antologia,[3] Quintana recebe o Prêmio Fernando Chinaglia, como melhor livro do ano. É um belo presente para os seus sessenta anos.



Em 1967, Quintana recebe o título de Cidadão Honorário de Porto Alegre. É uma homenagem da cidade que ele adotou e cantou em versos e prosas e que tanto amou. Nove anos depois, o Rio Grande do Sul se curva a ele, quando, aos setenta anos recebe a medalha “O Negrinho do Pastoreio”, a maior honraria dos gaúchos às personalidades que projetam o estado além de suas fronteiras.[4]



No dia 5 de maio de 1994, o poeta silenciou e, este silêncio, como dizia Quintana, tornou-se puro. Seu lirismo e sua graça o transformaram em poeta popular. Mais de vinte mil pessoas desfilaram diante do seu corpo, velado no Salão Júlio de Castilhos da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.[5] Nos cem anos de seu nascimento, finalmente público e crítica se encontram para homenagear o “eterno menino” como ele se referia a si mesmo. Parafraseando Quintana, muitos dos que atravancaram o seu caminho passaram, ele passarinho.



Brecht, o eterno rebelde



Em 10 de fevereiro de 1898, em Augsburg (Baviera), hoje um subúrbio de Munique, nasce Eugen Berthold Friedrich Brecht. Filho de um gerente executivo geral de uma empresa industrial começou a escrever ao público durante a primeira guerra, como cronista teatral e poeta. Em 1916, em uma redação escolar, manifesta-se contra a guerra e é ameaçado de expulsão. Nasce ali o Brecht contestador.



Entre1920 e 1924, depois de freqüentar o curso de medicina que não completa, circula entre Mônaco e Berlim, trabalhando e colaborando com os diretores M. Reinhardt e Erwin Piscator, com os músicos Kurt Weill, Hans Eisler e P. Hindemith, com os escritores Bronnen e L. Feuchtwanger e com o desenhista G. Grosz. Ali, se dá a síntese inicial de sua formação artística diversa, mas dirigido para pensar o teatro e a poesia a partir dos acontecimentos sociais em seu processo histórico dialético, não apenas refletindo o mundo, mas ousando propor transformá-lo a partir da luta revolucionária contra a alienação do mundo capitalista.



Em 1922, escreve Tambores da noite, obra que lhe vale um prêmio nacional de teatro, o Kleist. No mesmo ano, se casa com a atriz de teatro e cantora de ópera Marianne Zoff, ligando-se ao Teatro Alemão de Berlim.



Cinco anos depois, teve seu maior êxito no teatro da República de Weimar, através de A ópera dos três vinténs, com música de Kurt Weill. A peça critica a ordem burguesa, representando-a como uma sociedade de delinqüentes.[6]



Em 1929, casa com a atriz Helene Weigel. Ao mesmo tempo se aproxima cada vez mais do marxismo (iniciara a ler O Capital em 1926), influenciado por F. Sternberg, Walter Benjamin e Karl Korsch. Após 1930, entra em contato estreito com o Partido Comunista Alemão, tornando sua arte eminentemente política, em prol do movimento operário e da transformação social. Neste período escreve Mãe coragem e seus filhos, baseado em Máximo Gorki.



Em 1932, Brecht leva seus ideais comunistas para o cinema, através de Kuhle Wampe (ou A quem pertence o mundo?), dirigida por Slatan Dudow e com música de Hanns Eisler. Ali, mostra as opções que o comunismo pode oferecer ao povo alemão massacrado pela crise da República de Weimar. O filme foi proibido um ano depois, mantendo-se censurado até 1945.



Em 1933, os nazistas consolidam o poder na Alemanha. Acusam os comunistas de colocar fogo no Reichstag. Um dia depois do incêndio, Brecht, que passa a ter as suas obras queimadas, sai do país, depois de breves passagens pelos consulados da Suíça e da França. Após, se dirige para a Dinamarca, onde passa a colaborar com Margarethe Steffin e Ruth Berlau. Nesse período, sua militância aumenta cada vez mais, denunciando os crimes nazistas e escrevendo: “quando me forçaram ao exílio, os jornais publicaram que foi por uma poesia minha. (…) Agora, quando eles preparam uma nova guerra mundial, decididos a superar as monstruosidades da última, é quando se persegue ou se mata gente como eu, por delatar os seus atentados”.



É dessa época o poema Notícia da Alemanha, no qual Brecht diz: “Soubemos que na Alemanha, nos dias da peste marrom, no telhado de uma indústria de máquinas, subitamente uma bandeira vermelha tremulou no vento … A proscrita bandeira da liberdade! … Os trabalhadores nos pátios protegem os olhos com as mãos e olham para o telhado … Então passam os caminhões com tropas de choque e empurram para o muro quem está vestido de trabalhador … E das barracas, após o interrogatório, saem cambaleando os espancados, ensangüentados. Nenhum deles revelou o nome do homem sobre o telhado. .. Mas no dia seguinte ondulou novamente, no telhado da indústria de máquinas a bandeira vermelha do proletariado… Nos pátios somente mulheres… E o espancamento começa de novo. Interrogadas, as mulheres dizem: esta bandeira é um lençol no qual transportamos alguém que morreu ontem. Não temos culpa pela cor que ela tem. É vermelha de sangue do homem assassinado, vocês devem saber”.[7]



Em 1935, quando aumentam as frentes populares pelo mundo, e ocorre o 7º Congresso da Internacional Comunista, Brecht viaja para Moscou, New York e Paris, quando participa de conferências de escritores antifascistas. Neste ano, exilado na Escandinávia, escreve Terror e miséria do Terceiro Reich, peça na qual retrata o coro exultante da Juventude de Hitler, o medo impingido pela polícia nazista aos operários, os delatores à espreita dentro de casa ou nas ruas. Suas fontes foram recortes de jornais e o relato de testemunhas oculares daqueles tempos sombrios de sua terra natal.


 



Entre 1939 e1940 vive na Dinamarca, na Suécia e na Finlândia, quando escreve A vida de Galilei. Em maio de 1941, pouco antes das tropas alemãs entrarem neste país, foge para Moscou.



Dali, através do expresso transiberiano vai para Vladivostok e, após, de barco, foge para os Estados Unidos, onde se exilou em Santa Mônica, Califórnia, permanecendo seis anos, quando escreve Ascensão e queda de Arturo Ui (uma paródia sobre a ascensão de Hitler ao poder), projeta filmes para Hollywood, colabora com o cineasta Fritz Lang e com o poeta e diretor W. H. Auden e encontra-se com os exilados da Escola de Frankfurt, Adorno, Horkheimer e Marcuse.



Em 1947, o diretor Joseph Losey, levou às telas a vida de Galileu Galilei, tendo o ator Charles Laughton como protagonista, em um filme que conta com a contribuição de Brecht. Este filme de pouco público leva Brecht a afirmar que os Estados Unidos não se interessam por seu trabalho, sentindo-se um mestre sem alunos.



Porém os Estados Unidos do pós-Segunda Guerra não perdoam os comunistas. Com a ascensão do macarthismo, é chamado pelo Comitê para as Atividades Anti-Americanas, em 30 de outubro de 1947, retornando a Europa em seguida. Lá, reside na Suíça e depois no leste de Berlim, onde organiza a Companhia Berliner Ensemble (1949), juntamente com a sua companheira Helene Weigel.



Até o último dia de sua vida, abordando os problemas fundamentais do mundo, luta contra o capitalismo e pela emancipação social da humanidade, usando o materialismo dialético para a revolução estética que se propôs promover na poesia e no teatro.[8]



Em 14 de agosto de 1956, em Berlin, Brecht deixa o mundo devido a um ataque do coração, mas sua obra nunca mais nos deixou.[9]



Nos cinqüenta anos de sua morte e em épocas de tantos analfabetos políticos e de práticas nazistas pelo mundo afora, público e crítica se encontram para homenagear o eterno rebelde como um dos maiores poetas e dramaturgos de todos os tempos. Parafraseando Quintana, muitos dos que atravancaram o seu caminho passaram, Brecht nunca passará.



Notas



Esse texto é homenagem à vida e à arte de Gianfrancesco Guarnieri (1931-2006), sem necessidades de explicar o porquê. Que o lirismo de Quintana e o engajamento de Brecht o encontrem em algum lugar.



[1] A seção “Do Caderno H”, será publicada até 1980.



[2] Quintana concorreu três vezes a uma cadeira na ABL. Nunca foi eleito. Na ocasião, Manuel Bandeira homenageia o poeta gaúcho com os famosos versos: “Meu Quintana, os teus cantares/Não são, Quintana, cantares: São, Quintana, quintanres”.



[3] Até a sua morte, Quintana ainda lançaria outras obras de destaque como Publicações de Caderno H (1973), Pé de Pilão (1975. Novamente voltando-se para o público infanto-juvenil. Na Introdução, Érico Veríssimo afirmou que Quintana era “um anjo disfarçado de homem”), Apontamentos de História Sobrenatural e Quintanares (1976), A Vaca e o Hipogrifo (1977), Prosa e Verso (1978), Na Volta da Esquina (1979), Esconderijos do Tempo (1980), Nova antologia poética (1981), Lili inventa o mundo (1983), Diário poético e Primavera cruza o rio (1985), Baú de espantos e 80 anos de poesia (1986), Da preguiça com método de trabalho e Preparativos de viagem (1987), Porta Giratória (1988), A cor do invisível (1989), Velório sem defunto (1990) e Sapato furado (1994), entre outros.


 


[4] Mário Quintana ganharia ainda o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, em 1980, pelo conjunto de sua obra e, o título de Doutor Honoris Causa, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1982 e pela Universidade Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em 1986.



[5] Esta síntese de sua vida e obra foi escrita tendo como base a compilação feita por Armindo Trevisan em Mário Quintana, organizado por Armindo Trevisan e Tabajara Ruas. Porto Alegre: CEEE/Governo do Estado do Rio Grande do Sul, 1998.



[6] Esta obra foi levada ao cinema em 1931, com a direção de Georg Wilhelm Pabst e com a participação de vários artistas oriundos do teatro.



[7] Cf. o poema em Brecht: poemas 1913-1956, seleção e tradução de Paulo Cesar Correia. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 133-34.



[8] Sobre isso ver “Bertolt Brecht: uma breve biografia (1898-1956) de Edmundo Muniz. In.
http://www.culturabrasil.pro.br/brecht.htm. Acesso em 2 ago. 2006.



[9] Uma biografia interessante de Brecht, pode ser vista em Bertolt Brecht: sua vida, sua arte, seu tempo, de Frederic Ewen. São Paulo: Globo, 1981.

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