“Avatar”: Passeio à Lan House

Filme do diretor estadunidense James Cameron enche a tela de efeitos especiais para contar rala história em que os personagens são soterrados pelos truques gerados por tecnologia em Terceira Dimensão (3D).

Numa história simples, quase rala, cheia de heróis e heroínas, o diretor estadunidense James Cameron deslumbra o público com efeitos especiais gerados por equipamentos de última geração. Seu filme “Avatar” prova que ainda é possível encantá-lo através da máquina da ilusão chamada cinema. Entre os truques e mágicas gerados pelas câmeras em 3D, trabalhados em estúdio a partir dos movimentos faciais e corporais dos atores e atrizes, pode-se vislumbrar até onde chega o cinemão hollywoodiano. Se as projeções em 3D criam o efeito de realidade, a profusão de elementos em cena, meio ambiente, humanóides e arsenal bélico muitas vezes se sobrepõem à história em si. Pois na verdade os efeitos de nada valeriam se não se efetivassem por meio de uma narrativa de interesse humano. Afinal, os adolescentes que povoam as Lan Houses mundo afora estão cansados de saber que as figuras que passeiam à sua frente são apenas alvos a serem eliminados num grande jogo.

O que se quer dizer é que a combinação de tecnologia de captação de imagem com a encenação dramática utilizando atores e atrizes é a própria razão de ser do cinema. Tem sido assim desde que os Irmãos Lumiére projetaram o icônico “Saída dos operários da fábrica” (1895) numa feira de negócios em Paris e Georges Méliés criou os efeitos especiais em “Viagem à Lua” (1902). Pesquisas para ampliação da ilusão do movimento têm sido uma constante, a cada ano surgem filmes que a projetam para novos desafios. Prender-se apenas a isto muitas vezes leva o espectador a constante transe hipnótico destituído de conteúdo. Alguns filmes de ficção científica, de ação ou fantasia conseguem evitar que os efeitos se sobreponham à encenação com atores/atrizes tornando-os apenas elementos de cena. Tornam-se assim parte do cenário, permitindo que a narrativa flua sem que ele, espectador, quase o perceba. Stanley Kubrick o fez em “2001 – Uma Odisséia no Espaço”, e Ridley Scott em “Aliens – O Oitavo Passageiro”, também.

Cenários em 3D se
sobrepõem aos atores

Com a série StarWars (Guerra nas Estrelas), George Lucas reintroduz a parafernália tecnológica herdada de “Flash Gordon”. E o equilíbrio entre efeitos especiais e atuação dos atores e atrizes começa a se perder, pois os grandiosos cenários terminam por se sobrepor à sua interação com o espectador. Há sempre elementos de cena, a espada fluorescente, as plataformas, espaçonaves, que se interpõem entre eles. Embora exista em StarWars este senão há na série uma saga permanente, uma luta constante pelo poder na transposição do mundo feudal, de reis e rainhas, para o futuro intergaláctico. Com “Avatar”, James Cameron tenta se aproximar do Peter Jackson de “O Senhor dos Anéis”, sem, no entanto, trazer para a tela a complexidade que o diretor neozelandês conseguiu retirar do universo do escritor britânico J.R.R.Tolkien, autor do livro homônimo. Porém cria a exemplo de Jean Jacques Armand, em “A Guerra do Fogo”, toda uma linguagem, expressão corporal, fauna e flora, sem alcançar o equilíbrio já aventado.

Em “Avatar”, cujos custos de produção e marketing se elevam a estratosféricos US$ 600 milhões, pontificam em seus 166 minutos mais o congestionado cenário gerado por computador que a resistência dos Navi ao ataque da corporação dos EUA que tenta se apossar do mineral que a fará lucrar bilhões de dólares. Eles estão ali, ao que parece, para mostrar a capacidade de o cinema industrial alcançar elevados níveis tecnológicos. E os exibe exigindo redobrada atenção do espectador que busca acompanhar a narrativa e se vê atraído por animais pré-históricos, plantas fluorescentes, canyons abissais e o povo navi com suas caldas pendentes e suas orelhas altofalantes. Há sempre algo em que prestar atenção, enquanto a narrativa flui a toda, como se ao espectador não fosse dado tempo para raciocinar ou refletir. Se em dado instante, ele nela se detiver verá que ela expõe as contradições entre Estado e corporações, com estas a ele se sobrepondo. A elas caberá vasculhar o Universo à procura de riquezas minerais para continuar a alimentar seus lucros.

Corporação quer dominar
jazida do povo Navi

Numa das raras sequências em que estas alusões aparecem, Selfridge (Giovanni Ribisi), diretor do projeto de exploração das jazidas do mineral unobtainium, em Pandora, satélite do planeta gasoso Poliphenus, em Alfa Centauro, justifica sua ânsia de retirar logo o que interessa à corporação dizendo que pouco lhe interessa o que irá destruir para obter o que deseja. Este é centro da rala história: a busca constante do capital por novas reservas minerais ao que se supõe depois que as do planeta Terra se exauriram. Como o filme levou quatro anos para ser produzido remete sem esforço ao que George Bush, as corporações petrolíferas e a indústria bélica estadunidense fizeram com o Iraque. São, no entanto, ilações, embora a partida de “Avatar” seja a ação da corporação que lança mão de seu exército e centro de pesquisa e exploração para se apropriar da reserva mineral dos Navi.

E aqui James Cameron se vale de uma multiplicidade de efeitos cênicos para levar adiante a narrativa. Uma delas é a transmigração obtida através de uma câmara que transfere o “soldado” deficiente físico Jake Sully (Sam Worthington) para o corpo do avatar, gerado em laboratório. Do outro lado, ele se transforma em um navi normal que vai aos poucos dominando a cultura e o meio em que os humanóides vivem. Sua iniciação serve para Cameron exercitar o mote principal do filme: o passeio pela fauna e flora de Pandora e explorar sua relação com Neytiri (Zoe Saldana), a nativa que ficará a seu lado durante as batalhas finais contra a corporação. Nada demais para uma história entre o espião e a guerreira que tem entre eles a sanha cobiçosa de Selfridge pela jazida do planeta Navi e a brutalidade do coronel Quaritch (Stephen Lang), comandante do exército da empresa.

Idéia é colocar o público
no meio dos combates

Este a semelhança dos militares surgidos na tela desde que Stanley Kubrick criou o sargento durão, boca suja, em “Nascido para Matar”, tem por único objetivo a destruição da sociedade Navi. Seu comportamento fascista, beirando a psicopatia, é a contraparte de Selfridge. Juntos, eles usam sua máquina bélica contra os pré-históricos Navi. As sequências de batalha entre o exército da corporação e os guerreiros Navi são outro instante em que os efeitos especiais se sobrepõem ao drama de um povo que se vale de suas primitivas armas para resistir ao ataque devastador do poderoso inimigo. Por longos minutos helicópteros, robôs e mísseis devastam os alvos e estraçalham corpos. Enquanto o sentido da encenação é colocar o espectador no meio dos combates, gerando nele a sensação de que deles participa.

Não é o destino dos Navi então que importa, mas a capacidade de os efeitos especiais de última geração provocar encantamento, temor e prazer. Os mecanismos em ação destroem sem, no entanto, deixar rastro de sangue. É o efeito videogame prevalecendo sobre a realidade mesmo do filme. Salvo quando algum personagem central é atingido ou se vê ameaçado, as câmeras ou o movimento de computador nele se concentram. Não se trata, como se vê, de uma opção por não mostrar sangue, mas para se situar no universo do espectador jovem que está diante da tela e já se acostumou a estes efeitos de computação gráfica. Inexiste realismo, mas sim virtualismo. Ou seja, nada que se passa na tela remete ao que na realidade acontece numa batalha que estilhaça corpos, espalha sangue, produz gemidos e dor. Ali prevalece o efeito virtual, embora as cenas mostrem a brutalidade dos combates, as atrocidades da corporação e a ferocidade de Quaritch.

Opção de Cameron é não
assustar os adolescentes

Esta é uma opção advinda dos combates intergalácticos de “Guerra nas Estrelas” onde nada havia para assustar os adolescentes com suas sacolas gigantes de pipoca e copos tamanhos família de Coca-Cola. Este amenizar dos efeitos do combate, entremeado de suspense principalmente nas cenas finais, dá a falsa ideia de que a violência é sem dor, quase sem consequência. Menos que, por mais que o truque quase não seja percebido, muitos corpos fiquem pelo caminho. Jake Sully, o infiltrado, traído pela paixão, reverte a situação, torna-se o herói solitário de uma batalha atroz. É o único instante em que “Avatar” ganha uma dimensão épica triunfante: a de Spellman e seu exército na fila de embarque de volta ao planeta Terra. Sua arrogância acabou sobre os escombros de sua máquina bélica. O saque que intentava contra a riqueza natural dos Navi se esboroou no campo de batalha. Tudo graças ao infiltrado Sully, que dotou os primitivos de Pandora de táticas suficientes para contrabalançar o poderio do inimigo. Assiste-se no Iraque algo semelhante, sem as arrumações virtuais para esconder a brutalidade da invasão dos EUA.

Esta aproximação histórica, embora apenas uma alusão ao factual, são as únicas possíveis em “Avatar”. Cameron em “O Segredo do Abismo”, junto com “O Exterminador do Futuro”, seus únicos filmes inventivos, traz para o espectador o encontro entre duas civilizações: a da belicista Terra e a dos alienígenas que vêm do fundo do mar e são dóceis e pacíficos. E aponta a possibilidade de ambos conviverem pacificamente no mesmo espaço do Universo. Sua visão, em “Avatar”, está ligada ao épico, à superação obtida por Sully e os Navi. Mas também à possibilidade de que as corporações terminarão por dominar também outros planetas em busca de outras fontes de energia e de minerais. Não é nada otimista. E com certeza inexistirão efeitos especiais suficientes para esconder os reflexos da violência gerados pelos choques com outros povos galáxias afora – se ao contrário de intergaláxicos pacíficos se defrontarem com os extraterrestres belicistas de “Marte Ataca”, que ao menor movimento de um terráqueo o transforma em pó.

Mesma história poderia
ser contada com europeus

Enfim, “Avatar” pode ser um feérico passear pela fauna e flora de Pandora para os que adoram efeitos especiais e não os diferenciam do videogame que deliciam os adolescentes nas Lan Houses, porém ainda não é a fantasia futurista moderna que os equilibre com uma emocionante história de interesse humano que projete a vida para além do conhecido. A mesma história poderia ser contata a partir da invasão da América pelos espanhóis, enfrentando o mundo fantástico dos maias ou dos astecas. Dá para perceber que efeito e conteúdo seriam melhores com um custo centenas de vezes menor: a busca do Eldorado que tanto encantou gerações de conquistadores e era tão só o ouro que acabou sendo explorado à exaustão para fazer do Primeiro Mundo o que é hoje.

Avatar” (“Avatar”). Fantasia/Ação. EUA. 2009. 166 minutos. Roteiro/Direção: James Cameron. Elenco: Zoe Saldana, Sigourney Weaver, Sam Worthington, Michelle Rodriguez, Stephen Lang, Joel Moore, Giovani Ribisi.
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