O maestro Daniel Barenboim

Pode parecer estranho dedicar uma coluna semanal a um músico e maestro de origem judaica. Mas, não é um músico e nem um maestro como os outros. É amigo da causa palestina e foi parceiro de ninguém menos que Edward Said, grande palestino falecido em 2003.

Um maestro muito famoso

Daniel Barenboim é argentino de nascimento. Fará 67 anos no próximo dia 15 de novembro. É um dos mais conceituados pianistas e maestros da atualidade. Só para termos uma ideia disso, ele tem três doutorados, sendo um em filosofia pela Universidade de Jerusalém (de 1999) e outros dois em música pelas universidades de Oxford e Londres, na Inglaterra (anos de 2007 e 2008, respectivamente).

Daniel tem origem judaica. Possui nacionalidade israelense e espanhola, mas também se considera palestino. Atualmente vive em Berlim. Fala fluentemente várias línguas. Ainda que pianista, ficou mais famoso mundialmente por ser maestro. Idealizou e rege uma orquestra composta de músicas árabe-palestinos e israelenses, chamada Divan. Tal orquestra foi fundada em conjunto com o vigoroso intelectual palestino, a quem Daniel chama de “melhor amigo”.

Apesar de educado na Argentina, onde, aos sete anos tocou em público seu primeiro concerto de piano, muda-se com sua família para Israel. Isso ocorre nos idos de 1952, quando esse novo Estado criado pela ONU em 1947 tinha apenas cinco anos de vida.

Foi maestro-regente de diversas orquestras famosas na Europa, em especial Paris e Londres. Foi casado por 20 anos com Jaqueline Du Pré, falecida em 1987, com quem teve dois filhos, David e Michael.

Mas o que me traz a falar de Daniel esta semana foi uma entrevista, que publicamos na íntegra mais abaixo, concedida a um jornal português. Chamou-me a atenção alguns de seus posicionamentos, que faço um pequeno extrato.

Mas também muito politizado

Já tive oportunidade neste espaço, em colunas anteriores, de expressar meus pontos de vista de muitos políticos, escritores, historiadores, jornalistas de origem judaica, moradores ou não de Israel, que assumem a sua completa solidariedade para com os palestinos e defendem a criação de seu estado. Que fazem criticas duras e severas ao governo fascista de Israel da atualidade, sob o comando de Benjamin Netanyahu.

Já conhecia o trabalho de Daniel Barenboim, em especial em parceria com Edward Said, a quem sempre admirei, li quase todos os livros e escrevi um pequeno capítulo sobre ele em livro organizado pelo Instituto de Cultura Árabe de São Paulo. Edward era também especialista em música. Um erudito como Daniel.

No entanto, não conhecia o pensamento mais politizado de Daniel, suas opiniões sobre a questão palestina. Reconheço como sendo uma falha de minha parte. No entanto, quero compartilhar com meus leitores, alguns extratos da entrevista concedida aos jornalistas Alexandre Lucas Coelho e Cristina Fernandes, do jornal Público de Lisboa, concedida em 27 de setembro passado. A eles:

• As críticas ao governo e a Israel são profundas. Ele declara: “Israel tornou-se um lugar desumano”. Diz Daniel que a política do atual governo leva a inviabilizar tanto a proposta de dois estados, como também a de um estado binacional (esta, como já comentei em coluna em 2008, muito mais difícil de ser atingida na atual conjuntura; mas Daniel aventa essa possibilidade);

• As críticas ao governo são tão contundentes, que ele diz que “Netanyahu está pondo em risco o futuro da presença judaica na região”. Ele compara a situação atual com o Apartheid na África do Sul, onde os brancos boers acabaram por perder seu espaço no poder e tiveram que dar lugar aos negros no comando da África do Sul;

• Daniel chega a classificar a atuação do exército israelense de “homicida em massa”. Relembra os massacres de Sabra e Chatila (18 de setembro de 1982, no Líbano), quando os israelenses ficaram quietos e deixaram os libaneses da falange direitista fazer o serviço sujo e assassinar quase três mil palestinos. Mas, diz ele, no massacre de Gaza em dezembro/2008 e janeiro/2009, fizeram o serviço sujo e massacraram palestinos os próprios judeus;

• Daniel diz-se contente com a vitória de Obama nos EUA e do seu discurso aos muçulmanos no Cario em julho passado. Mas, mostra-se cético quanto à prática e a transformação em ações a retórica do presidente americano. Menciona o fato de que se Obama na pressionar firmemente Netanyahu, nada vai acontecer, nada vai se mover em Israel;

• Defende a devolução de todos os territórios palestinos tomados na Guerra dos Seis Dias de 1967. Mostra a incompreensão dos israelenses em manter os palestinos em espécies de guetos, de fora do processo. Isso é um erro histórico que os israelenses cometem e ele critica duramente;

• Menciona o fato que 25% da população de Israel vem da Rússia e nada tem a ver com os israelenses e a outra quarta parte é composta por árabe-israelense, ou seja, quase metade de Israel não é judia e as colonizações e assentamentos na Cisjordânia devem ser desmantelados. Critica Netanyahu, entre outros motivos, também por isso, de forma a inviabilizar com isso a criação de um Estado Palestino com meio milhão de não palestinos vivendo nessa região;

Mas, mais do que eu fazer um resumo da bela entrevista a dois jovens jornalistas, brindo meus leitores com a íntegra da entrevista, que publico a seguir:

“Não vejo saída para o conflito israelo-palestino”

Alexandra Lucas Coelho e Cristina Fernandes entrevistam o maestro argentino-israelense Daniel Barenboim, amiga pessoal de Edward Said.

Ficou satisfeito com a eleição de Obama, mas tem dito que a solução para o conflito israelo-palestino não pode vir de fora. Entretanto, tivemos a guerra em Gaza, a eleição de Benjamin Netanyahu, o discurso de Obama no Cairo e negociações. Como define a situação agora?

Acho que nunca foi tão má, tão desastrosa. Israel tornou-se realmente um lugar desumano. Não é uma questão de política, se estamos à direita ou à esquerda. É total desrespeito, e não só pelos palestinos. O governo israelita atual está a brincar com a futura existência do Estado de Israel, de uma população judaica naquele território, ao fazer com que não seja possível haver nem dois estados nem um estado binacional.

O que acha que o governo de Netanyahu quer?

Estão totalmente fora da realidade. Pensam que o tempo está do lado deles, e que o mundo se sentará quieto a vê-los fazer. Agora Netanyahu crê que melhorando a situação econômica nos territórios vai melhorar as coisas. Quer criar um novo palestino. Mas não é o dever dele, criar um novo palestino devia pensar no seu próprio país. Ao dar condições ligeiramente melhores aos palestinos, tornará a vida um pouco mais fácil, e durante algum tempo tudo estará calmo, e depois será pior. Portanto, além da questão moral, acho que Netanyahu está a pôr em risco o futuro da presença judaica na região. Se continuar assim, vai parecer-se cada vez mais com a situação do apartheid sul-africano. A África do Sul viu que não havia outro caminho e tornou-o possível. Se Israel não vir isso, será terrível.

A guerra de Gaza o fez cancelar concertos…

Pediram-nos que os adiássemos. Tínhamos um concerto no Qatar e um no Cairo, e no Qatar pediram-nos que adiássemos por razões de segurança, porque temos 35 israelitas na orquestra. Mas o concerto do Qatar vai acontecer a 5 de Janeiro.

… como foi vivida a guerra dentro da orquestra?

O começo da digressão era Qatar, Cairo e a seguir íamos para Moscou. Quando tivemos de adiar os concertos, arranjamos rapidamente dois concertos em Berlim. Então, em vez de Qatar e Cairo, toda a gente foi para Berlim. Ao fim do primeiro dia juntos, falei com a orquestra: "Esta é uma guerra terrível, e imagino que seja difícil para alguns tocarem com os outros. Só tenho um pedido: se alguém aqui não quer ou não pode tocar nestas circunstâncias, garanto que compreenderei e não haverá problemas. Mas digam-me agora, não me digam na tarde de um concerto em Moscou ou em Viena, porque vamos tocar as Variações de Schoenberg, peças difíceis, para as quais é preciso toda a espécie de instrumentos. Por favor, pensem nisso, falem entre vós. E se sentirem que a situação é tão má que preferem não o fazer, façam os concertos amanhã em Berlim e depois vemo-nos no Verão." Pensei que os israelitas se iam reunir entre eles e os árabes se iam reunir entre eles. Nada disso. Tiveram uma reunião da orquestra. Durante a guerra, israelitas e palestinos e sírios, todos eles, tiveram uma reunião para discutir se alguém não queria participar na digressão! Eu saí, disse que não queria influenciar ninguém. Quando acabaram, vieram chamar-me e disseram: "Toda a gente vai tocar. Não há ninguém que não queira." Só queriam fazer uma declaração que fosse impressa em todos os programas. O que fizemos. Sinto que isto foi um fantástico passo em frente. Reparem bem: na digressão havia palestinos a telefonarem a familiares em Gaza, e havia israelitas a telefonaram a familiares em Gaza – soldados, do lado oposto. A maturidade disto representa um desenvolvimento extraordinário. A orquestra tornou-se um verdadeiro pensamento alternativo.

E quanto aos seus sentimentos sobre a guerra?

O que aconteceu em Gaza é completamente indesculpável. E a reação do governo israelita ao recente relatório das Nações Unidas é inaceitável. Inaceitável. Que o Hamas usou escudos humanos, como também diz o relatório, é claro. Mas isto [a ação do exército israelita] é homicídio em massa. Em Sabra e Chatila, os israelitas ficaram quietos a ver os libaneses a fazê-lo, mas agora o fizeram eles próprios. Isto é um massacre.

Aparentemente, Obama está empenhado numa solução para o conflito. Como avalia o que ele tem feito?

Acredito nele, ainda. Acredito que ele quer uma solução. Mas penso que as pessoas na Casa Branca, e especialmente as pessoas no Departamento de Estado, não estão a seguir isso.

Hillary Clinton não está a seguir isso?

Não estou a falar de Hillary Clinton, mas de todo o departamento, e penso que também na Casa Branca. Sei que é uma coisa muito desagradável de fazer. Mas a não ser que ele pressione Netanyahu, nada se vai mover.

Vê alguns sinais disso?

Não. Até agora, não.

O que achou do discurso do Cairo?

Acho que foi absolutamente fantástico. Muito claro, justo. Mas devo dizer que estou a ficar cada vez mais impaciente com os diferentes governos israelitas. Acho que perderam todo o sentido da realidade.

O discurso do Cairo podia fazer uma diferença, ser um ponto de viragem neste conflito?

Desde que seguido por ações. Obama disse que os colonatos tinham de parar e agora [o negociador de Obama, George] Mitchell não consegue convencer Netanyahu a congelar os colonatos. O discurso do Cairo é um marco, mas não pode ficar só como um discurso, tem de ser seguido por ação.

Pensa que a atitude em relação a Israel é algo impossível de mudar?

Acho que se está a tornar mais difícil a cada mês, a cada semana, a cada dia. Se Israel tivesse devolvido os territórios ocupados em 1968, em 1970, em 1980, isso teria sido visto como um gesto de grande generosidade. Agora passaram 42 anos. E é isto que arruína amplamente a moral do Estado de Israel. Não se pode ocupar alguém durante 42 anos e ter uma sociedade saudável. O problema é que a narrativa israelita não é completamente verdadeira. Muito do que foi conseguido é admirável, mas parte da narrativa simplesmente não é verdade – o que aconteceu em 1948, como as pessoas [palestinos] foram forçadas a sair. Assim sendo, ninguém em Israel tem um sentido de responsabilidade para com o problema palestino, e não se pode fazer paz sem isso. E não faz sentido dizer: "Eles também matam." OK, claro, não estou a dizer que todos os palestinos são anjos. Mas há um problema básico de justiça em relação ao povo palestino, e como os israelitas não sentem essa responsabilidade, não fazem nada quanto a isso. Esse é o primeiro passo, não Obama. É preciso educar as pessoas em Israel. Não percebo porque isto é tão difícil. Aconteceu há 61 anos. Não percebo porque é tão difícil para um primeiro-ministro israelita dizer: "Tivemos o Holocausto. Sei que não é um problema dos palestinos, mas seis milhões morreram nos campos de concentração, e muitos vieram para aqui, e naquele tempo só estávamos a pensar na sobrevivência…" "Não podíamos cuidar de ninguém." "… não podíamos, não víamos. Mas agora vemos isso, portanto tentemos encontrar um modo de viver." Acho que isso significaria tanto. Mas como Israel não sente isso, ninguém se mexe. Esse é o problema. Se aceitamos a responsabilidade, fazemos algo. Talvez não o suficiente, mas algo. Há toda uma geração de israelitas que, como você, viveram o Israel socialista dos pais fundadores, dos valores humanos que foram a razão mesma do estado, mas a nova geração não tem esta memória. Portanto, o terreno moral da fundação está a perder-se. E vinte e cinco por cento da população é gente que veio da União Soviética com visões extremistas de direita, nem ouviu falar dos palestinos. E vinte e dois por cento são palestinos, os chamados árabes israelitas. Portanto, estamos a falar de 50 por cento. Mas Israel não compreende, pensa que pela força vai manter os palestinos do lado de fora. Não vai. Não vai [bate na mesa].

O que está a dizer é que não se trata apenas dos direitos dos palestinos, mas da sobrevivência de Israel.

E da presença judaica! Mesmo que haja um estado binacional, creio que a maior parte deles quererá partir.

Ou seja, este não é o caminho para aqueles que querem manter Israel.

Não, não é. Alguns israelitas dizem: "Oh estamos cansados, não precisamos disto, temos de lhes dar territórios. Para nós Telavive é suficiente." Mas até isso não é um entendimento do que se passa. É uma sociedade apodrecida, a de Israel. Apodrecida. (pausa) Geralmente não falo de forma tão veemente sobre isto, porque tento continuar o meu trabalho, mas está a tornar-se absolutamente…

Sente que é um sonho arruinado?

Sinto que está muito pior, muito pior. A prova é que agora não conseguiríamos fazer o concerto de Ramallah [como em 2005].

Por quê?

Na altura houve uma cooperação da segurança israelita e da segurança palestina. Creio que hoje isso não aconteceria. Acho que demasiados palestinos estão fartos e só querem boicotar tudo o que tenha a ver com Israel.

Faria esse concerto agora?

Eu iria a qualquer lugar. Qualquer lugar.

Faria um concerto da Orquestra Divan em Israel?

Não é possível. Não é uma ideia realista.

Quando foi a Ramallah disse que a ideia da Orquestra Divan só estaria cumprida quando pudesse tocar em Damasco, em Amã, em Israel…

Claro, a total dimensão do projeto só será cumprida assim. Mas se formos a Israel não podemos levar os sírios, os libaneses. Virá o dia.

Virá?

Acho que sim.

Recorda o concerto de Ramallah como o concerto da sua vida?

(Longa pausa). Foi uma coisa única. Não quero dar-lhe outro título. Foi um dia único.

Como uma inspiração – como uma possibilidade, porque aconteceu -, qual é o significado desse concerto?

O significado é que há israelitas com um sentimento de solidariedade humana com o povo palestino, e eles queriam ir lá. E por causa disso, os palestinos, os sírios, todos, também puderam ir. É uma grande pena que os palestinos não queiram nada com nenhuns israelitas. Compreendo-o, porque sofreram muito, mas em muitos casos deveriam poder distinguir uns de outros. E penso que lhes faria muito bem, e aos israelitas, se pessoas com voz na sociedade palestina fossem a Israel e falassem com israelitas. Muitos israelitas são completamente ignorantes quanto à situação. Não podem ir aos territórios ocupados. Não querem. Não querem e não podem, portanto é um círculo.

Conhece a Cisjordânia atual. Quando vemos o mapa hoje, o território palestino aparece fragmentado como milhares de ilhas, com os colonos no meio. Entre Cisjordânia e Jerusalém Leste há quase meio milhão de colonos. Como pode ser possível um estado palestino ali?

É por isso que digo que Netanyahu está a tornar as duas soluções impossíveis. E nem se apercebe da questão demográfica. Na área a que os palestinos chamam Palestina e Israel chama Grande Israel – da fronteira do Líbano ao Mar Vermelho -, a população não-judia é quase 50 por cento, 22 por cento em Israel e o resto nos territórios. O que pensa ele que vai fazer com estas pessoas? Matá-las? Pô-las na Jordânia? Mandá-las para a lua? Se o problema dos colonos não for resolvido, será impossível um estado palestino, mas continua a haver um irrealismo do Ocidente quando fala de um estado palestino ali. O que os judeus viveram no século XX é a coisa mais horrível que podemos imaginar. E no Ocidente ainda existe um sentido de responsabilidade em relação a isso.

Os europeus ainda são incapazes de enfrentar este assunto?

Acho que os europeus e os americanos não são capazes. E, felizmente, pessoas como Ahmadinejad são tão ridículas que não podem ser levadas a sério. Se fossem um pouco mais inteligentes teriam uma influência enorme, porque algumas das coisas que dizem têm de ser levadas em consideração. Não se ganha nada em negar o Holocausto. Além de tudo o mais, é estúpido. E torna impossível que alguém com um pouco de sentido de justiça, de História, o leve a sério. Mas algumas das coisas que diz são absolutamente verdadeiras.

Tem dito que não é boa ideia excluir alguém do diálogo, porque mais tarde teremos aí um problema. Como vê a forma como o Ocidente tem lidado com o Hamas?

Não sou um político e não tenho contactos com políticos. Escrevo sobre o que observo. E parece-me que há uma ampla parte da ala política do Hamas que está disposta a aceitar a Proposta Saudita [e consequentemente a existência do Estado de Israel], mas o governo de Netanyahu não está a querer ver isso. Ambos os lados estão convencidos de que o tempo está do lado deles. Esta é a tragédia hoje. Os israelitas pensam que se se mantiverem firmes o problema desaparece. E os palestinos pensam que com a demografia têm uma hipótese.

Está a falar de um cenário trágico. Sente que não há saída?

De momento, tal como as coisas estão, sinto.

Do seu contacto com eles, o que pensa que aprendeu sobre os árabes que os israelitas geralmente não vêem?

Como todas as generalizações, o que vou dizer é um pouco exagerado e não se aplica a todos. Mas de forma geral, a grande contribuição dos israelitas para a Orquestra Divan é uma abertura, uma existência desprovida de inibições. São como são, e é preciso aceitá-los pelo que são. Isto é muito positivo, muito saudável. Não entendem algumas das subtilezas do comportamento humano que os árabes têm. E os árabes têm inibições que eles não têm. Há algo na mentalidade árabe que é menos direto. Não nos dizem: "É assim. Faz assim." Dão uma pista para tentarmos entender qualquer coisa. Depois, o momento em que nos encontramos uns com os outros é algo muito belo. Os israelitas na orquestra tiveram um efeito muito benéfico. Os árabes aprenderam com eles a não ter complexos. Muitos árabes têm o complexo de que os israelitas os odeiam, mas ao mesmo tempo admiram o fato dos israelitas serem criativos, positivos, afirmativos. E na orquestra há uma interação maravilhosa. Portanto, está a criar o verdadeiro médio-oriental. É por isso que falo de uma forma alternativa de pensar. A música não vai trazer paz, não vai trazer justiça, mas é uma forma alternativa de pensar.

Como vai o seu projeto de formação musical na Palestina?

Muito bem. Temos o centro da nossa fundação em Ramallah, a iniciação musical nos jardins de infância vai bem, cooperamos com o centro musical Al Kamandjati e abrimos um conservatório em Nazaré. Agora vamos abrir outro em Jaffa.

Tem dito que a Orquestra Divan é a coisa mais importante da sua vida. Deixaria tudo por ela se fosse possível dedicar-se à orquestra a tempo inteiro?

Se a situação permitisse torná-la numa orquestra a tempo inteiro no Médio Oriente, deixava tudo automaticamente.

Os instrumentistas da orquestra têm percursos muito distintos a nível cultural e de formação. Essas diferenças interferem no trabalho musical?

Não interferem de todo. Temos uma maneira de trabalhar muito sólida e detalhada. Ainda há pouco estava a falar lá em baixo com um rapaz que foi primeiro violoncelista da orquestra vários anos. Este ano não pôde participar porque a sua mulher teve um bebê, mas viu o concerto de Londres na televisão. Tocamos a Sinfonia Fantástica de Berlioz e ele não queria acreditar, o nível é o de uma das grandes orquestras do mundo. E dizia-me: "Já reparou que a orquestra tem apenas um ano de existência? Foi criada há 11 anos mas como funciona um mês por ano…" E por quê? Porque temos pessoas do mais alto nível. O concertino é da Filarmônica de Berlim, temos um oboé solista da Bayerischer Rundfunk e assim por diante. Há também pessoas que tocam em orquestras de nível intermédio e algumas crianças, por exemplo um violinista de 12 anos.

Como é possível a orquestra atingir tal homogeneidade?

Acontece que o trabalho é orientado sempre pelas mesmas pessoas da Staatskapelle Berlin [a orquestra da Berliner Staatsoper Unter den Linden, da qual Barenboim é maestro principal vitalício] desde o princípio. Sou sempre eu que dirijo e no final do Verão damos bolsas aos instrumentistas que não estão tão adiantados para prosseguirem os estudos. Normalmente vão para Berlim e continuam a trabalhar com os mesmos professores. Quando regressam em Julho estão muito melhor preparados e o processo repete-se ano após ano.

Nunca trabalham com outros maestros?

A única exceção foi Pierre Boulez. A ideia subjacente ao projeto da Orquestra Divan é uma ideia humana, mas não se pode usar a música para outro fim. Por outras palavras, quando se faz música, ela tem de ser a prioridade principal. Não podemos dizer: "OK, isto não está assim tão bom mas não importa…" Desse modo a mediocridade instala-se e acabou-se. Por isso somos muito cuidadosos – eu diria mesmo severos – com a qualidade.

Os instrumentistas têm de sentir que devem ser os melhores?

Sim.

Como escolhe os programas?

Tento escolher peças pivô da literatura musical: as Sinfonias de Beethoven,Variações de Schoenberg, a música de Boulez. Este ano fizemos pela primeira vez uma ópera completa em versão de concerto – o Fidélio de Beethoven – porque acho que é muito importante a relação com o texto. Bach, Beethoven ou Wagner são compositores muito importantes na sua carreira mas esta temporada fará uma digressão Chopin, que começou aqui em Lisboa e assinala o bicentenário do nascimento do compositor em 2010.

Qual é a sua visão da música de Chopin?

Há dois aspectos fundamentais, um deles puramente pianístico. É óbvio que Chopin escreveu para piano com uma facilidade e beleza dificilmente alcançada. Mas por outro lado, acho a linguagem musical extremamente atrativa. Não são apenas belas melodias. O contraponto e o mundo harmônico em Chopin são muito desenvolvidos. Não é uma coincidência que ele se tivesse interessado tanto por Bach. Sentimos um talento melódico que recorda Bellini e Donizetti, mas algumas das harmonias apontam para Liszt e Wagner. É um mundo fascinante.

Que pianistas prefere em Chopin?

[Arthur] Rubinstein. Ele limpou a interpretação de Chopin de uma série de hábitos que vinham da segunda metade do século XIX. Quando começou a carreira, no início do século XX, algumas pessoas consideravam-no extremamente seco, sem excessos. Rubinstein mostrou o classicismo da música de Chopin da mesma forma que Mravinsky mostrou o classicismo nas Sinfonias de Tchaikovsky. Não se trata só de explosão emocional. Rubinstein tinha um grande sentido do ritmo, o que não se associa habitualmente a Chopin, cuja imagem é identificada com a do compositor romântico que sofria de tuberculose… Admiro tanto Rubinstein! Há algo de extremamente saudável na sua maneira de encarar essa música. A interpretação de Chopin deu lugar a muitos excessos como o abuso do rubato [aceleração ou desaceleração do andamento]… O termo quer dizer "roubado". Se roubamos algo, num outro momento temos de o devolver. Acontece o mesmo na música, se roubamos tempo num momento importante da frase temos de o devolver noutro lado. Mas todos os grandes intérpretes que têm o sentido do "rubato" têm uma lógica no que fazem.

No seu livro refere que alguns maestros não escolhem o andamento adequado porque não compreendem adequadamente omelos [o fluir da melodia em relação com o ritmo, a tonalidade, ou a harmonia]. É o que pode suceder no rubato?

O problema é que não se pode calcular. O rubato tem de ser espontâneo, mas também tem de ter lógica. Como podemos ser espontâneos e lógicos ao mesmo tempo? O outro problema é ser usado vagamente para atrasar o tempo. A liberdade do "rubato" tem de ir às duas direções: pode usar-se para andar mais devagar mas também mais depressa, às vezes é preciso acelerar.

Quais foram os maestros que atingiram esse equilíbrio entre tempo e compreensão do conteúdo musical?

Furtwängler.

E nas gerações posteriores?

Celibidache de certa forma, Mravinsky.

Escreveu que Furtwängler dirigia os ensaios como um filósofo e os concertos como um poeta. Este princípio também é válido para si?

Tento. Mas acho que temos de ensaiar como cientistas e não como filósofos. Devemos observar as coisas como num laboratório: esta nota tem de ser mais curta, esta passagem tem de ser mais forte etc. Mas não podemos tocar ou dirigir num concerto dessa forma. Tem de haver uma compreensão natural. Faz trabalho analítico antes de interpretar uma obra, mas por outro lado fala muito de liberdade na interpretação. Como se conciliam as duas vertentes? Há uma grande diferença entre liberdade e anarquia. Liberdade é também o resultado do pensamento e da necessidade de fazer isto ou aquilo para expressar determinada coisa. Não é o mesmo que dizer: "Não quero saber, sinto assim e vou fazer assim."

A verdadeira liberdade vem da disciplina?

Absolutamente. Quanto mais soubermos sobre uma coisa, mais podemos voar.

Há música recente nos países árabes que se possa adequar à sua orquestra e lhe desperte interesse como maestro?

Sim, há alguns bons compositores na Síria e em Israel. Noutros países, menos.

E em relação ao desenvolvimento da linguagem musical em geral nas últimas décadas, qual é a sua opinião?

Gosto muito da música de dois velhos mestres: Pierre Boulez e Elliott Carter. Encontraram um novo idioma nos últimos 15 ou 20 anos. Destilaram a essência da música, livrando-se de complexidades desnecessárias. Boulez e Carter nos anos 1950 eram incrivelmente complicados. A música deles não era apenas complexa, era complicada. Mas agora, sem a música ter perdido complexidade, puseram as complicações de lado.

Nota

A presente entrevista pode ser lida na íntegra, incluindo a introdução no endereço do jornal português Público do dia 27 de setembro, neste endereço

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