Roma – Um Nome de Mulher

Uma vida incompleta


Com olhar terno sobre a Argentina recente, o diretor Adolfo Aristarain mostra como a história condiciona a vida dos seres humanos deixando-os com a sensação de incompletude.

Repassar a vida à luz daquilo que ela deveria ter sido não é das tarefas mais fáceis para aqueles que decidem enfrentar o passado, sabendo da dificuldade de modificá-lo. Podem ser selecionados momentos, fatos, relações, mas algo se interpõe entre eles e acabam sobrevindo dores, alegrias, rememorações de pessoas e lugares com seus cheiros e formas que não se recupera. Alguns deles podem também se impor de tal forma que muda o previsto, passando a ditar o que deverá ser dito. Mudar esse curso é o grande achado de qualquer relato autobiográfico. É o que ocorre em “Roma, um Nome de Mulher”, do argentino Adolfo Aristarain (Um Lugar no Mundo), onde o escritor Joaquim Gõnez (José Sacristán), depois de um intermezzo de criação decide passar sua vida a limpo. O faz como alguém que pode controlar o que será escrito, para não ir muito fundo na incompletude da vida.
          
Os anos que Gõnez rememora são os de sua infância, juventude e o início da maturidade, quando decide trocar Buenos Aires por Barcelona e depois por Madri. Por sua memória perpassam fatos que marcaram a história argentina dos anos 50, com idas a cafés, livrarias, amores e muito jazz, muito jazz. Numa trilha sonora sofisticada  pontuam McCoy Turner, Charles Parker e ele, John Coltrane, que Gõnez admira a ponto de saber de cor os músicos que o acompanham numa de suas gravações. Nada de tango, de sons portenhos, sua herança musical veio da mãe, Roma, professora de piano para principiante e pianista bissexta, e do pai, músico erudito, adorador de caçadas a pássaros selvagens com o filho pré-adolescente.


            
Fascínio das estrelas hollywoodianas


           
Nada demais, se ele não apreciasse também os ícones da literatura da década de 50, de John dos Passos a Ernest Hemingway. E pretendesse ser um deles, ainda que de forma tímida e imprecisa. Havia ainda para não deixar vácuo em sua formação, o fascínio pela arte suprema daquela década: o cinema, que ditava costumes e moda a ponto de  os encontros com os amigos e as namoradas se darem na calçada, diante de sua marquise que estampava o título do filme em cartaz. E terminava, é claro, nas poltronas da sala de exibição diante de uma tela onde brilhavam as estrelas hollywoodianas. As estrelas, porém, não eram as que cintilavam na fachada do cinema, mas o diretor, ser resgatado do anonimato no final dos anos 50 pelos futuros cineastas da “Nouvelle Vague”, então jovens críticos da bíblia do cinema de então; a revista Cahiers do Cinema.
             
Diante da tela o que se pontificava era o filme síntese da Grande Depressão Americana: “As Vinhas da Ira”, baseado no romance de John Steinbeck. O que lhes permitia acalorados debates na fila do cinema sobre seu diretor John Ford. E, como se verá depois, Gõnez, seus amigos e principalmente sua mãe, Roma Di Toro (Susú Pecoraro), preferiam os melodramas hollywoodianos aos dramas existenciais de Michelangelo Antonioni, um dos vértices do neo-realismo italiano. Há muitas citações cinematográficas em sua rememoração, atestando a formação de Aristarain e de seu alter ego Gõnez.
              
Numa das seqüências que abre espaço para uma das belas cenas do filme, Roma lhe relata o que assistiu naquele dia: “Charada”, de Stanley Doney, com Cary Grant e Audrey Hepburn, e “Palavras ao Vento”, de Douglas Sirk, com Rock Hudson e Lauren Bacall. Mais do que citações do escritor Gônez são também confirmação das influências do próprio diretor Adolfo Aristarain, de 62 anos, cuja carreira iniciou-se nos anos 60. A estrutura do filme, com seus enquadramentos clássicos, transições de seqüências suaves, decantação lenta de cena, mostra o quanto ele apreendeu da escritura cinematográfica do cinema americano dos anos 50.


              
Aristarain não manipula o espectador, o respeita
 
             
Aliás, esta técnica, já demonstrada por Aristarain em um de seus melhores filmes, “Um Lugar no Mundo”, em que conta a história de um professor universitário aposentado e suas agruras diante da queda do poder aquisitivo, demonstra o quanto outros diretores argentinos aprenderam com aquele cinema, hoje desaparecido. E Gõnez ao lançar sobre o espectador essa mesma técnica atesta a falência de um olhar, um deixar ver, hoje atrapalhado pela urgência do corte, do passar de uma seqüência a outra, como se o andamento do filme prescindisse da pressa e não de um encadeamento ditado pela história. Não basta saber cortar, é importante saber encadear. Os filmes de John Ford são uma prova dessa transição suave.
            
A prova desta eficácia está na seqüência em que Tom Joad (Henry Fonda) despede-se de sua mãe (Jane Darwell). A câmera se fixa em Joad enquanto ele fala, só transita para sua mãe para mostrar a força de suas palavras. Darwell, uma das grandes atrizes americanas dos anos 30 e 40, com seu rosto forte transmite toda a emoção de uma mãe que vê o filho partir para enfrentar algo indefinido, que ele crê poder mudar: a consciência do proletariado americano durante a depressão americana Esta mesma carga emocional o espectador terá em duas seqüências  de “Roma – Um Nome de Mulher”, a que Roma discute com o filho, Gônez, sua relação com Alícia (Marina Glezer), casada com seu melhor amigo, Guido (Maximiano Ghione), e, depois, na seqüência capital para a vida de ambos: a que irá mudar sua vida para sempre. A cena decanta, não há pressa, o enquadramento espera que o espectador entenda o que está se passando e possa receber toda carga emocional e simbólica que ela transmite. Não há como não derramar lágrimas.
            
            
Gõnez/Aristarain faz elogio da mãe/mentora


            
Mas, Gõnez ao rememorar seu passado lança o espectador, também, na história argentina, não muito diferente da brasileira, principalmente no que se refere à aliança da burguesia nativa com o grande capital internacional. Depois de repassar sua vida nos anos 50, ele nos leva à década de 60, onde, a exemplo do Brasil, as ditaduras militares imperaram. Mas então, ele já estava de viagem, de mudança, para encontrar seu caminho de escritor, às custas de um estratagema de Roma, sua mãe, uma das chaves do filme, que só se saberá no final. É quando Aristarain faz o elogio mais da mulher do que da mãe, mais da mãe do que da mulher – o papel da mãe como mentora, para recorrer à concepção de Joseph Campbell, que analisou o papel dos símbolos no cinema.
             
Roma o irá guiar ao longo de sua formação, com mente aberta, para os momentos históricos que se vivia então. Estava preparada para a juventude do filho, a descoberta do amor e do sexo, e não vê nada demais em ele o fazer em seu próprio quarto. E, além disso, discutir com ele o papel do amor, da amizade e do respeito a um amigo, marido da mulher a que se ligava naquele momento sem ter por ela nada mais que atração sexual. 
            
Gõnez, na maturidade um ser amargurado, ranzinza e ríspido, é todo ternura com Roma e as mulheres que amou em sua juventude. Uma delas, Reneé, passa de conservadora a militante de esquerda nos anos 70, época de feroz ditadura na Argentina. Ao relembrá-la, ele deixa transparecer toda a nostalgia do “incompleto” que o homem pode amargar no ocaso da vida: ela dependia de uma palavra, um abraço, um beijo dele para viverem juntos, e ele não a compreendeu. Lembra “Os Mortos”, de John Houston, baseado no conto homônimo de James Joyce, em que a mulher lembra ao marido na noite de Natal, o verdadeiro amor que tivera por um rapaz em sua juventude, e dele não se libertou mais. É um instante torturante do filme, mas o suficiente para explicar a amargura e a opção que Gõnez fará no final de sua vida.
 
             
Conservadora Reneé adere à luta armada


             
Em “Roma – Um Nome de Mulher”, Aristarain parte do melodrama para o drama romântico; lança um olhar doce sobre os anos de formação de Gõnez, escritor, misógino, solitário, niilista, imbricado com a história argentina. Essa ternura não trai a dureza com que a ditadura tratou sua geraçao, através da tortura, da perseguição, da execução, que ceifou muitas vidas jovens. E atinge mais o espectador do que uma forte caracterização de personagens conservadores ou de esquerda. Principalmente quando Reneé (Marcela Kloosterber) explica a Gõnez porque aderiu ao movimento de resistência à ditadura militar. Uma transformação e tanto, para alguém que amava mais a literatura e os gênios da música clássica. Agora, diz Reneé, é o momento de resistir, não se pode aceitar o que está sendo feito pelos militares. O assistir, o acompanhar, exige ação e transformação, motivo suficiente para o engajamento, tão contestado nestes tempos neoliberais.
             
O mais interessante em “Roma – Um Nome de Mulher” é que Aristarain leva o espectador para o mundo da classe média argentina. Que outro meio teria a seu redor personagens que discutem Hemingway, John Ford, Antonioni, Brahms e Borges numa livraria e, ali mesmo, tece seus casos amorosos? Mas também sofre as dores próprias de seu meio, muitas vezes às custas da redução de seu poder aquisitivo e de sua sustentação e se sacrifica para que o filho realize seu sonho, ou abra espaço para que o outro ame o que mais precioso tem, a própria mulher? Pode soar reacionário, pequeno burguês, ou até conservador, mas tal é a realidade em que Aristarain se formou.
             
O que faz “Roma – Um Nome de Mulher” diferente é a opção que Gõnez/Aristarain faz, por condenar a ditadura, a ceifação de vidas e de impossibilidades de encontros que ela produziu. Embora o filme também trate da relação do ser em transformação, o estudante de jornalismo, Manuel Cueto (Juan Diego Botto) a quem ele dita suas memórias, simplesmente para ganhar dinheiro, com o mestre que se retira, a força de  “Roma – Um Nome de Mulher” vem da revelação de que, a história dita o andar da vida, podendo deixar, muitas vezes, a sensação de incompletude.



“Roma, Um Nome de Mulher (Roma)”. Argentina/Espanha, 2004, 155 minutos, 14 anos. Roteiro: Mario Camus, Adolfo Aristarain, Kathy Saavedra. Direção: Adolfo Aristarain. Elenco: José Sacristán, Susú Pecoraro, Juan Dirego Botto.

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