Você não vale nada, mas eu gosto de você!

Ao usar o mote desta canção para explicar o Brasil, o antropólogo Roberto Da Matta expõe, na verdade, o sentimento da elite que despreza o país e o povo.

É de Nelson Rodrigues a denúncia do “complexo de vira lata”, a auto-avaliação derrotista que condena o Brasil e seu povo a um papel de segundo plano, subalterno e inferiorizado.

Este pensamento, que ocorre muitas vezes “nas melhores famílias”, é freqüente em setores conservadores principalmente quando se trata das mudanças políticas – mesmo ainda limitadas – que o país vive em nossos dias. Um registro notável desta auto-estima rebaixada apareceu na coluna do antropólogo Roberto DaMatta, em O Estado de S. Paulo (26 de agosto), com o título “Você não vale nada, mas eu gosto de você!”

DaMatta é um dos principais antropólogos brasileiros, autor de um notável esforço para entender o Brasil e os brasileiros; nessa linha, escreveu um pequeno livro que se destaca pelo título significativo e instigante: O que faz o brasil, Brasil?

Para ele, a canção popularizada pela novela Caminho das Índias  (“você não vale nada mas eu gosto de você”) é a “mais perfeita fórmula para este Brasil que nos irrita, mas enreda e que, por isso mesmo e apesar de tudo, jamais tiramos da cabeça e do coração”.

É uma análise alinhada com outras que sugerem ser o Brasil uma espécie de aleijão histórico-social, resultado da violência, da escravidão, do absolutismo monárquico, da privatização do Estado, e por aí vai.

Este tipo de análise tem vários problemas. Por exemplo, tem em sua base a costumeira comparação com outras nações, mais ricas e desenvolvidas, onde haveria uma plena vigência da “cidadania” que andaria ausente por aqui. É uma visão que, no fundo, se revela como uma versão, contemporânea, da idolatria de modelos “civilizatórios” como os EUA e a Europa, que essa elite almeja e o país, em sua opinião, não alcança.

Outro problema é a escassa profundidade dessa forma de ver o Brasil. Ela é semelhante (ainda recordando Nelson Rodrigues) a um curso d´água que uma formiga atravessa com água pela canela. Há um condicionamento elitista que, sob o biombo da exaltação do povo e dos costumes brasileiros, mal disfarça o saudosismo do tempo em que “cada um sabia o seu lugar”. A elite continua a mesma. Hoje, enche as burras com a enormidade de juros da dívida pública (os economistas mais progressistas dizem que eles beneficiam as 20 mil famílias mais ricas do país). Quem está mudando é o povo, mas a visão retrógrada do Brasil rejeita com veemência as brechas abertas para negros, mestiços e pobres. E não engole a presença à frente do governo de um líder popular identificado muito mais com a massa do que com aqueles que ocupam as posições de mando.

É uma análise que olha apenas a superfície, os factóides escandalosos, confundindo com a face real do país e de seu povo tudo o que enxerga no espelho interesseiro formado pelos jornalões impressos e eletrônicos. E não compreende que as raízes de tais escândalos correspondem a hábitos políticos ultrapassados dessa mesma elite que olha de nariz torcido para o Congresso Nacional e para o governo federal. E que resultam da forma como as contradições políticas vão sendo resolvidas no país, superando o passado sem superar, incorporando o velho ao novo, sem romper radicalmente com aquilo que está superado, mantendo no caminho do novo, como um obstáculo poderoso, aquilo que está velho e superado.

Muita gente exalta o caráter cordial, conciliador, dos brasileiros. E se orgulha da maneira negociada como as rupturas políticas são resolvidas por aqui. Há mesmo quem diga, com base nisso, que a luta de classes e os conflitos sociais mais agudos seriam exóticos por aqui, estranhos aos nossos costumes (os lutadores dos movimentos sociais, das greves, dos protestos, das ocupações, conhecem bem esta "cordialidade" e esta "conciliação" que se apresenta para eles com a face dura de bombas, balas, da repressão). A conciliação ocorre desde o tempo do Império, mas entre a elite, entre os que se consideram “iguais” e, assim, recebem o tratamento cavalheiresco da negociação.

Principalmente quando se trata de romper, mantendo, velhos pactos políticos: as forças ultrapassadas persistem no topo, continuam poderosas embora historicamente caducas. Hoje, se escondem em legendas capitaneadas pela dupla PSDB/DEM e continuam no comando à custa de transições negociadas. Mas os analistas que se esmeram em apontar “nossos males”, estender o dedo e proclamar “você não vale nada…”, não compreendem isso. São incapazes de identificar nessa sobrevivência vampiresca as raízes históricas de “males ditos crônicos e seculares”, como escreveu DaMatta.

O velho, o passado, embaraça a emergência do novo, que luta para emergir e enfrenta obstáculos fossilizados. Velho que tem a cara, a linguagem e os trajes daquela elite “cosmopolita”, “refinada”, quase sempre “acadêmica”. E que, dizendo gostar, não gosta do Brasil nem de seu povo.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho