Abutre com nome de passarinho

A resistência armada do Araguaia assemelha-se ao rio que lhe deu o nome. Nas chuvas,  transborda de sua “caixa”,  fertiliza a terra e inunda de água e peixe os lagos que o rodeiam. Na seca, ele se recolhe ao silêncio, no berço de seu leito. Arag

Ao longo das últimas três décadas, o tema da Guerrilha do Araguaia (1972-1975) emerge e submerge na agenda política do país e na pauta dos meios de comunicação. Isso acontece porque o Araguaia é uma história inconclusa. A ditadura militar e, depois de seu término, os setores reacionários das instituições da República, tudo fizeram e ainda fazem ou para ocultá-la ou para adulterar o seu legado e significado.


 


 


À época, quando as refregas e os combates se davam, a censura implacável do regime ditatorial tentou impedir que o povo soubesse da luta guerrilheira. O regime se apresentava onipotente e reinava a paz dos cemitérios. Os sucessivos crimes da ditadura, seu regime de terror, faziam crescer a indignação entre os partidários da causa da liberdade. A resistência armada do Araguaia nasceu desta indignação contra a tirania. Algo pela liberdade precisava ser feito. E mesmo de boca em boca, circulou a boa nova de que num ponto da Amazônia brasileira, fora aberta uma clareira em prol da democracia e dos direitos do sofrido povo dos confins do Brasil.


 


 


Quando o confronto, definitivamente, se encerra no primeiro trimestre de 75, a ditadura militarmente vitoriosa buscou enterrar o Araguaia nas profundezas da terra. Não foi fácil vencer a resistência. Os guerrilheiros e guerrilheiras ganharam o apoio do povo da floresta e isto provocou um sobressalto no regime todo poderoso. Para vencer a resistência, as tropas das Forças Armadas fizeram da região um inferno. Agrediram, prenderam, torturam a população local. Pisotearam mesmo a Convenção de Genebra que estabelece normas de conduta na guerra. Prisioneiros indefesos foram executados, cadáveres foram decapitados, mutilados e, depois, ocultados em paradeiros desconhecidos Daí a tentativa de manter o episódio sepultado num esquife de chumbo.


 


 


Nesta quadra, o assunto volta às manchetes por três motivos. Dois deles, derivados da democracia que avança no país.


 


 


Positivamente, no último dia 18, em São Domingos, sul do Pará – região onde ocorreu a luta guerrilheira – a Comissão de Anistia vinculada ao Ministério de Justiça, concedeu a anistia política a 44 camponeses, vítimas das atrocidades das operações de “cerco e aniquilamento” à resistência. O ministro da Justiça, Tarso Genro, pediu desculpas aos camponeses em nome do povo brasileiro pelas barbaridades cometidas pelo Estado. Por sua vez, o presidente, da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, com justeza, disse que os guerrilheiros e os camponeses muito contribuíram para a conquista da democracia que, hoje, vigora no Brasil.


 


 


O segundo motivo vem da convicção formada na sociedade de que é preciso dar um basta à protelação da abertura dos arquivos da ditadura. De igual modo, há um largo consenso quanto à premência de que o Estado garanta o direito humanitário das famílias dos mortos e desaparecidos do Araguaia de enterrar em túmulo honroso os corpos dos guerrilheiros. Negar esse direito tão caro à formação cultural, religiosa e humanística de nosso povo é dar prolongamento aos crimes que a ditadura cometeu.


 


 


Em São Domingos, pelo depoimento dos camponeses veio o relato da elevada estatura dos guerrilheiros do Araguaia. Apesar de terem sofrido na alma e na carne, aquela gente simples ressalta os vínculos de amizade que os unia. Amizade construída no trabalho, na solidariedade, no enfrentamento conjunto das adversidades. Impossível negar aos guerrilheiros, o reconhecimento por terem se “armado de amor e coragem”, por terem lutado com bravura e dignidade pela democracia e pelos direitos do povo.


 


 


Progressivamente, à medida que a verdade é resgatada, o Araguaia para o desespero das forças do obscurantismo, é compreendido por cada vez mais gente como parte do acervo de lutas libertárias do povo brasileiro. Também, se revela e se ressalta a fibra, a generosidade, “da brava gente brasileira” do sul do Pará e do, então, norte de Goiás, região onde ocorreu a resistência.


 


 


 terceiro motivo pelo qual o Araguaia volta às manchetes é de outra natureza. Um dos chefes da carnificina – um abutre com nome de passarinho – ganha páginas inteiras nos jornais com o que afirma ser o conteúdo de seu “baú de ossos”. Confirma a execução de prisioneiros, a decapitação de cadáveres e outros crimes de guerra.
 


 


À medida que a verdade é resgatada, os guerrilheiros do Araguaia  são conduzidos pelo o veredicto da história ao panteão dos heróis do povo brasileiro. Já os seus algozes se vangloriam da vileza, da covarde valentia de assassinar prisioneiros indefesos. Vivem seus últimos momentos, ostentando uma macabra glória, mas sabem que já pertencem ao lixo da história.

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