Para jamais esquecer a tragédia de Sharpeville

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Só os brancos podiam transpor aquelas grades


 



 
Desde 1976, o 21 de março é Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial em memória das 69 pessoas assassinadas e das 186 feridas (mulheres, crianças e homens) em 21 de março de 1960, no subúrbio de Sharpeville, na província de Transvaal, a 80 km ao sul de Joannesburgo, na África do Sul. Estavam presentes cerca de 20 mil pessoas, que foram surpreendidas pela polícia do governo do apartheid (1911-1994), que lá chegou para matar sumariamente. O que faziam?


 



 
Um protesto pacífico contra o Livro de Passes ou Lei de Passes – um infame documento de acesso, em geral para trabalhar, de negros às ''áreas de brancos'' – similar a um ferro de gado, sinal de gente tida como de categoria inferior, que era obrigatório para sul-africanos negros no apartheid e que os palestinos ainda são obrigados a portar! Em 1976, quando a ONU definiu o ''Massacre de Sharpeville'' como de crueldade inesquecível, em 16 de junho eclodiu o ''Levante de Soweto'' – bairro negro de Joannesburgo -, uma semana de conflitos na qual o apartheid assassinou mais de cem pessoas e deixou mais de mil feridas. Era um protesto pacífico contra a imposição do ensino ser ministrado em língua afrikaans (idioma germânico próximo ao holandês) e abolido o ensino em inglês.


 


 


Quando estive na África do Sul, em Durban, na 3ª Conferência Mundial Contra o Racismo (agosto de 2002), ao redor do local do evento havia barracas de artesanato, em geral comandadas por mulheres. Nos intervalos do almoço, encantada com as peças de ébano, eu percorria as barracas perguntando o preço das peças. Virei ''figurinha carimbada'' daquelas mulheres, que falavam inglês. Além de quanto custa, aprendi a perguntar-lhes qual era o marco maior do fim do apartheid. Praticamente todas sacavam do seio a sua carteira de identidade! Achei de um simbolismo sem par que a carteira de identidade significasse para elas o fim do apartheid e que a portassem no seio – lugar de guarda de coisas que não podem ser perdidas ou roubadas facilmente… A ''identidade'' das sul-africanas materializava uma frase-desejo de Steve Biko: ''Um dia estaremos em condições de dar à África do Sul o maior dos presentes – uma face mais humana''.


 



 
Durante o tempo em que fiquei na África do Sul não saía do meu pensamento a figura de Steve Biko (1946-1977) – intelectual sul-africano, assassinado pela polícia do apartheid, cuja vida é narrada, com algumas distorções, no imperdível filme ''Um Grito de Liberdade'', de Richard Attenborough (1987).  Após ser o primeiro presidente da Organização dos Estudantes da África do Sul (Saso), em 1968, Biko abandonou a Escola de Medicina da Universidade de Natal para se dedicar à política. Foi um dos ideólogos do Consciência Negra, que visava unificar a luta contra o apartheid, resgatar a história da resistência negra, tendo como inspiração a luta pela terra, o etiopismo e outros movimentos religiosos de matriz africana, e lutar pelo reconhecimento da contribuição dos sul-africanos mestiços e asiáticos na construção da África do Sul.


 



 
No artigo ''Consciência Negra'', escrevi que ''Fiquei sufocada diante das enormes grades de ferro da belíssima orla de Durban. Era o mesmo que sinto quando vou a uma ?fazenda colonial?. Eu as detesto, pois lembram-me a senzala e o estupro colonial! Na orla de Durban, compreendi Steve Biko. Durante o apartheid, só os brancos podiam transpor aquelas grades'' (20.11.2002). O 21 de março é dia de renovação do compromisso humanitário de tolerância zero para o racismo cotidiano.

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