Lembranças de uma cozinha e da primeira galinha cheia

Acordei saudosa da cozinha da minha avó, em Graça Aranha, no médio sertão do Maranhão, onde aprendi a cozinhar. Dói no peito recordar aquela cozinha enorme, com seu fogão de lenha, um forno em cima, e eternas réstias de alho e um pedaço de toucinho defuma

Saudades da cozinheira Albertina, que jamais temperou um prato na mais de uma década em que trabalhou conosco. Vovó, uma mulher que sabia mandar, entrava na cozinha para temperar as carnes e só voltava para dizer as medidas, desde a quantidade de sal da água do arroz! Ah, o arroz era abafado com folha de bananeira para enxugar! Como saber que estava ''ao ponto''? É uma lembrança difusa, mas parece que era quando a folha de bananeira mudava de cor e murchava até não pingar mais água. Quando eu chegava da escola, morta de fome, e ouvia aqueles pingos d'água chiando na trempe de ferro, eu implorava morrer, pois sabia que demoraria a comer. Neta mimada, cheia dos dengos, às vezes até chorava. Virou uma piada e um ritual. Quando eu aparecia na porta, vovó dizia rindo: ''Ô Albertina, vê se o arroz já enxugou porque a morta de fome já chegou!''


 


 


Há duas coisas que aprecio de modo singular: boa mesa e boa cama. Sou e-xi-gen-te com ambas. Entendo que o prazer da boa comida e o prazer sexual merecem louvores em versos e em prosa, pois são as duas coisas mais deslumbrantes da face da Terra. Dizem que dos céus também. Já viu imagens de anjinhos esqueléticos? Deduzo que os manjares dos céus são especiais.


 


 


Tenho prazer em cozinhar o que aprecio comer. Sei fazer bem do trivial ao banquete, a dita cozinha fidalga. Nasci em uma família em que as mulheres eram ensinadas a cozinhar. Ensinei aos meus dois filhos. Um é gourmet. O outro faz o trivial, e um café às vezes bom, mas queima quase tudo. Não respeita a regra número um da cozinha de excelência: quem cozinha tem de ficar ao pé do fogão. As três meninas são cozinheiras esplendorosas. Não foram ensinadas. Aprenderam olhando e zanzando pela cozinha. Somos uma família que ama comer bem. Cozinho nos dias em que amanheço inspirada ou quando decido bajular pessoas queridas com meus quitutes.


 


 


Quando criança e adolescente, eu odiava as lidas da cozinha. Portava uma bendita alergia à fumaça do fogão de lenha (espirrava, escorria o nariz) que não comovia a minha avó. Ela dizia que eu não poderia ficar só entretida na ''leitura daqueles papéis bestas''; e que mesmo que eu nunca fosse viver de cozinhar, precisava saber fazer porque ''quem não sabe fazer não sabe mandar''. Era uma preparação de meninas para serem senhoras!


 


 


Quando comecei a usar óculos, por volta dos 13 anos, o oftalmologista prescreveu afastamento de tudo que causasse alergia. Disse que nem entrar na cozinha eu poderia e que a lamparina do meu quarto deveria ser substituída por um Petromax ou Aladim (descubram o que é…). Foi a glória! Ganhei um Aladim no quarto. Ler à noite virou uma beleza. Mas vovó, tinhosa e experiente de arrepiar, descobriu que eu só sentia alergia a determinados tipos de lenha! Ordenou só usar lenha ''do raio que o parta'' porque com ela eu não espirrava. Odiei a fabulosa descoberta de vovó! Voltei para a cozinha – um laboratório de boa comida, desde o café da manhã. Tudo tão trabalhoso que só agora é bom e doce lembrar..

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