“Mandela – Luta pela Liberdade”: história pela metade

Personagens do filme do diretor dinamarquês, Billie August, sobre a relação de carcereiro James Gregory com Nelson Mandela, durante cerca de 30 anos, não transmitem a dimensão do que foi a luta subterrânea do CNA contra o apartheid.

O conglomerado que produziu “Mandela – Luta pela Liberdade”, envolvendo África do Sul, Alemanha, Bélgica, França, Inglaterra, Itália e Luxemburgo, dá uma idéia do que foi a adaptação da biografia de James Gregory, carcereiro do líder do CNA (Congresso Nacional Africano) durante cerca de 30 anos. Apenas isto permitiria tratamento de superprodução para uma história de tal dimensão: a relação de Gregory com um dos líderes emblemáticos do século XX: Nelson Mandela (Umtata, África do Sul, 1918). Aquele que durante toda a vida lutou contra o regime racista da burguesia sul-africana, sustentada por cerca de 100 anos pelos EUA, Inglaterra, Alemanha e Holanda. Um empreendimento dessa envergadura deveria trazer mais que emoções novelescas para a tela. Principalmente nas mãos do diretor Billie August, que antes já dera provas de saber tratar de temas delicados em “As Melhores Intenções”, filmagem de um roteiro de Ingmar Bergman, e em “Pelle – O Conquistador”, com os quais foi premiado em Cannes. August, no entanto, há muito perdeu o toque, principalmente quando aderiu ao cinema comercial. É disto que se trata, em “Mandela – Luta pela Liberdade”: uma empreitada para impressionar grandes platéias, interessadas em duas horas de bom entretenimento.
                    


 


 


Com planos bem elaborados, fotografia em tons sombrios, cortes precisos, August conduz a narrativa sem atropelos. Tudo está no lugar. A começar pelo delineamento dos personagens. Gregory (Joseph Fienes), o cabo da Polícia Militar sul-africana, é racista, casado com Glória (Diane Kruger), que só pensa em como o marido ser bem sucedido na carreira militar. E, como não poderia deixar de ser; ela tem claras idéias sobre a supremacia branca. Em determinado momento, diz aos filhos Brent e Natasha, chocados com a brutalidade com que os negros sul-africanos são reprimidos, que estes devem ser tratados assim mesmo porque querem tomar o que os brancos sul-africanos “haviam construído”. Nenhuma dúvida, então, devemos ter sobre quem são eles, Gregory e Diane. E, desta forma, August nos prepara para o que vem depois: o encontro de Gregory com “Bafana” (Dennis Hysbert), como é conhecido na África do Sul, o então líder do CNA. Uma elaboração que cria toda uma expectativa em torno de Mandela, um mito hoje, mas que na época, 1968, era apenas prisioneiro político na Ilha de Robben.
                  
                     


 


Gregory é um indeciso
                      espião que hesita entre
                      a mulher e seu chefe
                      
                     


 


Esta expectativa para gerar suspense serve bem ao intento de August  e de seu roteirista Gregg Latter em emoldurar um personagem por demais conhecido, visto; aplaudido, admirado. Gregory o procura pelos corredores e o encontra em sua cela, cumprindo punição numa “solitária”. O homem que encontra é alguém que não se mostra. Mantém-se de costas por longos segundos, embora ele, Gregory, tente fazê-lo voltar-se. Mandela não o faz. Cria-se, assim, um distanciamento entre o mito, Mandela, e seu carcereiro, um simples servidor público da inteligência sul-africana. Uma tentativa de August provar que Bafana estava acima de todos que o vigiavam, humilhavam, fustigavam. Por mais que o fizessem, ele estaria sempre acima de todos eles. Principalmente Gregory, um indeciso espião, que mal sabe de suas tarefas, pois fica sempre entre as aspirações de sua mulher, Glória, e as imposições de seu chefe Jordan. Enquanto isto, Mandela segue encarcerado e atraindo-o para seu canto, a ponto de lhe pedir favores, que ele atende mais profissionalmente que por aderir às suas idéias. Bafana, desta forma, é visto como sedutor, envolvente, alguém que sabe manipular as poucas opções que lhes surgem para se relacionar com o mundo exterior.
                  


 


 


Mas o filme não é sobre Mandela; August filma sob o ponto de vista de Gregory. Segue sua biografia, escrita em parceria com Bob Graham. E nisto se constitui a fraqueza de ”Mandela – Luta pela Liberdade”. Gregory vê Mandela como um homem que, cheio de convicções, não recua diante das pressões de que vive cercado. É inexpugnável. Um líder que está sempre acima dos carcereiros e de seus liderados. Em determinados momentos chega a ser impenetrável. Mesmo quando se insurge contra as acusações de provocar a violência, não eleva a voz o suficiente, não usa da ferocidade, é sempre auto-centrado. Por isto, não conseguia fustigá-lo o suficiente para penetrar nos meandros da luta empreendida pelo CNA contra a brutal estrutura criada para oprimir a população negra. Pode, entretanto, ser positivo para a imagem de Mandela, mas, como personagem, fica raso, alguém de quem não se vê a face inteira, apenas o lado que Gregory nos dá a ver. E justifica também suas frágeis reações diante de um líder que unia, a um só tempo, forte resistência pessoal, firmeza ideológica e capacidade de organização de sua gente à clara visão da urgência da luta popular para por fim ao regime racista imposto pela burguesia branca à cerca de 25 milhões de negros sul-africanos.


                  


 


Como personagem, Mandela tem sempre idênticas reações


                 


 


Assim, não tinha como não se submeter àquele homem tão seguro de si. Começa a cair em suas armadilhas, a ponto de seguir suas instruções, ler panfletos sobre o programa do CNA, como a histórica “Carta da Liberdade”, de 1955, e hesitar entre espioná-lo ou tornar-se seu cúmplice. Fica no meio do caminho. Admira-o, sem mudar de convicções, seguindo sua carreira às custas de sua ambiciosa mulher. Se Mandela é um personagem que segue uma linha dramática, esquemática, sem nuances, com Gregory não é diferente. Ele é ainda mais plano. Notadamente pela forma como Joseph Fienes o interpreta. É um ser perdido em corredores, no gabinete onde lê correspondência dos líderes do CNA encarcerados com Mandela e nas visitas ao continente. Nele mudam apenas os anos, retratados pelo acréscimo de bigode e alguns cabelos brancos. Em momento algum, August o mostra em conflito, hesitando entre o apartheid e o CNA. O mesmo ocorre com Mandela, preso pelo regime racista desde 1962, que só se move com andar pesado, lerdo, o corpo vergado. Dennis Hysbert o faz como alguém que carrega o peso da luta, não de quem a conduz. Suas contradições nunca aparecem.
                 


 


August fizera o mesmo com os personagens de “A Casa dos Espíritos”, baseado no romance de Isabel Allende. Transformou a bela história recente do Chile num dramalhão, sem emoção alguma. Faltou-lhe imaginação para dar conta do realismo mágico, da história pontuada por relações amorosas frustradas e pela decadência de uma família de latifundiários. Agora faz o mesmo com ”Mandela – Luta pela Liberdade”. Tenta equilibrar a violência do regime racista com as explosões provocadas pela ação do CNA, como se ambas se equiparassem. As ações destes são captadas pela televisão, veiculadas em noticiários, para lhes dar veracidade, enquanto a violência do apartheid são “ao vivo”. Numa delas, uma mulher é espancada diante de Natasha e Brent, que, chocados, questionam aos pais sobre a necessidade daquele horror. Mas as ações do CNA são tratadas como eventos, algo que apenas acontece, sem conteúdo real. É o ponto de vista de Gregory, distorcido por suas convicções racistas. Justo ele, criado no interior, vizinho à terra de Mandela, onde aprendeu o dialeto xhosa, que lhe serviria depois para espioná-lo.


                


 


Luta do CNA ocorreu no clima da Guerra Fria
              
                


 


Enquanto outros diretores usariam diversas visões de uma mesma história, para ampliar nosso entendimento dos personagens centrais, August não buscou outras fontes para contrabalançar a visão de Gregory. A luta do CNA foi empreendida no quadro da Guerra Fria, que opunha os EUA à URSS. A África do Sul era, então, o fiel da balança no sudeste africano, servindo de base para o imperialismo norte-americano atacar as lutas de libertação nacional do MPLA, em Angola, e da Frelino, em Moçambique. O CNA desenvolvia, assim, uma resistência tanto ao governo sul-africano quanto aos EUA. Qualquer fracasso seu enfraqueceria as lutas do MPLA e da Frelimo. A forma de luta escolhida, envolvendo o combate ao racismo, ações revolucionárias, opções democráticas e a atração da simpatia de organizações democráticas externas, acabaram por criar o clima necessário ao fim do apartheid. Nada disto, é claro, aparece no filme de August. Faltou-lhe acrescentar personagens ou ações que mostrassem o contexto em que se dava a luta real entre o regime racista, aliado aos EUA, e a luta popular empreendida pelo CNA, apoiado pela URSS.
                 


 


Isto traria outra dimensão ao filme, com personagens tomados pelo conflito, em constante tensão, premidos por um inimigo implacável que deveria ser tratado com sabedoria, como foi, até alcançar a vitória. É mais do que a relação de um “Fiel Camareiro”, que Peter Yates, transformou num grande filme. A cena em que Gregory se pune por ter denunciado o filho de Mandela, Thembi, depois de ter perdido Brent, dá a exata noção do que August entendeu como a relação entre o carcereiro/camareiro e seu ídolo. Entretanto, em momento algum, repita-se, Gregory aderiu ao CNA. Nem depois de encerrado o período da barbárie que foi o apartheid.


                 


 


Filme não dá conta da dimensão do personagem


                


 


”Mandela – Luta pela Liberdade” fica reduzido à idéia de que Gregory ajudou, de certa forma, a reduzir o sofrimento de Bafana, em suas décadas de cárcere. Ganhou a simpatia do líder do CNA, se fez presente nos momentos importantes de sua vida, quando o regime racista chegou ao seu ocaso, porém, não “limpa a ficha” do falecido Gregory. Não atrai nossa simpatia de espectador, pois quando ele se insurge não é para criar obstáculos aos seus chefes, pretende é escapar a uma relação com a qual não sabe lidar, tampouco com sua tendência a se sentir diminuído, frente às pressões de Glória. E Mandela fica como personagem secundário, com raros momentos de brilho real. Salvo quando libertado, em 11/02/1990, caminha ao encontro de seu povo, encerrando um século de escravidão nos estertores do século 20.
                   


 


O problema de filmes como ”Mandela – Luta pela Liberdade” é dar conta da dimensão dos personagens envolvidos, principalmente quando se trata de mitos, como Nelson Mandela. E abordar sua luta através da visão de quem só penetrou em parte de seus meandros, pode dar a idéia de que ficou só na superfície. Este é o caso de Billie August. Ficamos com a impressão de que, no máximo, fez um filme para ser mostrado na televisão, pois não importuna ninguém. John Boorman, com menos pretensão, fez melhor em seu “Em Minha Terra”, em que conta a mudança sofrida por uma dona de casa, antes racista, que adere à luta contra o apartheid, a defesa do regime feita por um dos líderes militares sul-africanos e o julgamento daqueles que brutalizaram o povo negro durante a supremacia branca. Pega casos reais e os mescla à ficção. Impressionante. No entanto, com ”Mandela – Luta pela Liberdade” temos a impressão de que a luta na África do Sul, nos tempos do apartheid foi apenas entre bons e maus. E sabemos que foi muito mais do que isto.


 


 


”Mandela – Luta pela Liberdade” (Goodbye Bafana). Drama. África do Sul, Alemanha, Bélgica, França, Inglaterra, Itália e Luxemburgo. 2007. 117 minutos. Roteiro: Gregg Latter, baseado na biografia de James Gregory. Direção: Billie August.Elenco: Joseph Fienes, Dennis Haysbert, Diane Kruger.

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