O co-governo na educação: elemento central para uma educação de qualidade

A medida da democracia no ambiente educacional é a participação na política e a possibilidade de os estudantes interferirem nas decisões que afetarão suas vidas, definindo em última instância que será de seu futuro. Muitas das regras e regulamentos têm fu

Não à toa o ambiente escolar e universitário é rico em questionamentos, muitas vezes sobre temas simbólicos, lutas específicas, problemas concretos que trazem latente o gérmen da mudança. Os estudantes sabem muito sobre os problemas do ambiente acadêmico e, no geral, sua contribuição à escola e à universidade é secundarizada, e nisto residem muitos problemas da educação brasileira .


 


 


E a medida do reconhecimento do papel dos estudantes é a possibilidade que têm de participar das decisões que lhes afetam, não por um recorte democratista, mas pela democracia, pela simples razão de que, sendo afetados, suas posições, demandas, dúvidas devem ser ouvidas. A democracia e o co-governo são bandeiras históricas do Movimento Estudantil. A participação paritária de professores, estudantes e servidores nos espaços de decisão é uma bandeira de décadas, pois é a garantia de acesso democrático ao poder, ao direito à livre organização, temas recorrentes na luta estudantil latino-americana desde a revolta de Córdoba.


 


 


A Universidade de Córdoba, na Argentina, viveu há 90 anos uma rebelião estudantil cujo centro foi o debate sobre o poder na universidade. Dizia seu Manifesto: “nosso regime universitário, mesmo o mais recente— é anacrônico. Está fundado sobre uma espécie de direito divino; o direito divino do professorado universitário. Direito que se cria a si mesmo, que nasce e morre em si mesmo”. “O conceito de autoridade que corresponde e acompanha um diretor ou um professor num lugar de estudantes universitários não pode apoiar-se à força de disciplinas estranhas à substância mesma do estudo. A autoridade, num lugar de estudantes, não se exercita mandando, mas sugerindo e amando: ensinando” .


 


 


O governo FHC e os porquês da exclusão dos estudantes


 


No Brasil, os neoliberais liderados por FHC blindaram exatamente este anacrônico sistema  – já  arcaico em 1918 – , ainda a assombrar o século 21.  Na Lei de Diretrizes e Base da Educação, aprovada em 1996,  há flagrante contradição entre fundamentos humanistas e “cacos” conservadores conquistados pelo lobby do setor privado, capaz de parir impávidas normas tautológicas, como:


 


“Art. 14º. Os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:



I – participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola;



II – participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.


Art. 56°(…)



Parágrafo único. Em qualquer caso, os docentes ocuparão setenta por cento dos
assentos em cada órgão colegiado e comissão, inclusive nos que tratarem da elaboração e modificações estatutárias e regimentais, bem como da escolha de dirigentes.


 


Onde foram parar os estudantes? Onipresentes em toda escola e universidade, quase desaparecem, citados apenas três vezes em todo o texto da LDB. Nada mais ilustrativo da incapacidade do governo FHC e do MEC dirigido por Paulo Renato em dialogar com a UNE, a UBES, o movimento estudantil, que só era recebido à força de muita pressão.


 


Tempos difíceis e de exclusão social


Eram tempos mais difíceis aqueles e era essa a tônica da época, de total desconhecimento dos estudantes nas decisões que lhe tocavam diretamente. Em especial a Universidade Pública enfrentava uma guerra rasteira, o estrangulamento da falta de verbas, as crises nos bandejões, a degradação física das residências universitárias. O clima era tal que não foram poucos os professores que se aposentaram precocemente, com o agravante  da ausência de concursos para suprir as vagas.


 


A verba de assistência estudantil foi extinta com o fim da rubrica correspondente nos orçamentos em 1996. Os pobres que haviam chegado com tanta luta à universidade pública se viram na rua da amargura. Daí vem a luta anual de todos os setores da educação para assegurar a Emenda Andifes no orçamento, essencial para sobreviver ao ataque orçamentário à universidade pública.


 


O MEC não merecia confiança da escola pública. A universidade pública estava sob ataque, mas as relações com o ensino privado eram muito mais que carnais. Liberdade para criar vagas à vontade, lastreada a qualidade no duvidoso Provão, feito sob medida para nada avaliar.


 


Nesta linha surgiram inúmeras iniciativas de dobrar as universidades públicas aos interesses do Mercado. É fundamental a relação da universidade com a sociedade, sua contribuição à solução dos graves impasses da nação, seu potencial na produção de ciência e tecnologia, arte e cultura, mas esta relação não pode ser limitada às variáveis de mercado porque insuficientes.


 


O mercado era a palavra mágica, sob sua égide e tendo a “flexibilização” como corolário, a qualidade é que foi a principal vítima da corrida pelo lucro fácil e da sua redefinição, pois a “qualidade”, no discurso oficial de então, estava manietada pela sua submissão ao viés de mercado.


 


Ilustrativo do que se pretendia para a universidade pública foi o intento de convertê-las, no marco de uma reforma do Estado, em:


 


“Organizações Sociais (OS), que representariam um novo padrão de prestação de serviços sociais pelo Estado. Estas organizações seriam entidades privadas sem fins lucrativos que receberiam subvenção do governo federal para prestarem serviços de relevante interesse público. Tais entidades, apesar de serem organizadas segundo o direito privado, teriam um forte componente público, à medida que seriam dirigidas por um conselho cuja maioria dos membros seria indicada pelo poder público ou pela sociedade civil. A instituição seria avaliada através do controle de resultados, basicamente, verificando-se se os objetivos estabelecidos num contrato de gestão foram atingidos ou não” . Este era o receituário para a educação pública.


 


Buscando uma vida melhor, sendo enganado e acabando inadimplente



 


No ensino privado, os estudantes, expostos aos aumentos de mensalidades abusivos sem qualquer amparo regulatório, submetidos aos juros proibitivos que o FIES tinha – num quadro de juros altos na economia como um todo – e numa economia com perda de empregos, sem crescimento econômico e aberta ao capital especulativo, engrossavam as filas da inadimplência e abandonavam o ensino privado. O sonho de concluir o ensino superior e de encontrar uma profissão digna acabava no endividamento e nos serviços de proteção ao crédito, uma crônica anunciada pela política econômica e pelo abandono do cidadão ante a ganância de empresários que não tinham freios. A liberdade de mercado se expressava mais puramente pelos obstáculos que muitas instituições interpunham ( e ainda hoje o fazem) à livre organização estudantil, principal pólo de resistência aos “tubarões do ensino”, expressões que, assim como “Provão”, ganharam a boca da sociedade a partir da resistência estudantil.


 


Os neoliberais queriam manter os estudantes fora do jogo decisório.
A marca deste período, tanto na educação pública quanto na privada foi a negativa do direito de os estudantes participarem em pé de igualdade com professores e servidores na definição dos rumos da educação, tanto local como nacionalmente. Da parte do governo a ausência total de diálogo e medidas de ataque ao movimento estudantil, como a MP 2208.


 


Esta  política dos governos FHC se lastreava em uma ofensiva ideológica que se intensificou   depois do Fora Collor, marcada pelo questionamento explícito à organização política juvenil. Os estigmas à participação de jovens nos partidos de esquerda, a alcunha de “movimentos tradicionais” comumente imputada àqueles cuja tradição é a luta, assim como o apelo aos projetos e saídas individuais, em que a escola e a universidade assumiam uma face exclusivamente instrumental foram a tônica e seus efeitos ainda se fazem sentir. Para os privatistas, a juventude no máximo deve ganhar dinheiro. Nas horas vagas uma atividade assistencialista para que o bem-te-vi jogue uma gota d´água no incêndio dos direitos ante as chamas da ganância desmedida, e se conforme, parando por aí mesmo.


 


Neste sentido, nossos militantes jamais admitiram que “a escola atrapalhe nossa educação ”. Estas lições de fato não foram as nossas, recusamo-las de todas as maneiras possíveis. A escola vai muito além de uma única via, de um professor que ensina e um estudante que passivamente aprende. A educação é muito mais que o atendimento às demandas do mercado, com seu viés imediatista e instrumental, incapaz de assegurar a condição de direito, de refletir criticamente sobre o país.


 


A vigência do Manifesto de Córdoba e a Reforma Educacional


 


Deste modo, observamos que o chamado de Córdoba segue vigente e sua importância radica exatamente no fato de que pensar a universidade e a escola excluindo os estudantes das decisões e dos espaços de poder sempre foi parte decisiva de qualquer proposta de castrar o potencial crítico da educação. Como citado anteriormente:


 


“O conceito de autoridade que corresponde e acompanha um diretor ou um professor num lugar de estudantes universitários não pode apoiar-se à força de disciplinas estranhas à substância mesma do estudo”.


 


Mas como vimos, a autoridade do mercado como pressuposto teórico e do poder econômico concreto (através da restrição orçamentária e das fundações privadas) tiveram nos anos FHC o papel desta autoridade estranha ao saber e às necessidades mais profundas do país. Por isto a necessidade de calar os estudantes para implantar a privatização da educação. Por outro lado, a ampliação da participação estudantil nas decisões educacionais serve como controle democrático dos cidadãos e é mecanismo eficaz para a transparência na aplicação dos recursos públicos. É uma garantia à autonomia da universidade e o canal mais fácil e direto de participação da sociedade nos seus rumos.


 


Na luta pelas reformas que dêem um horizonte mais amplo às mudanças já obtidas desde 2003 com a vitória de Lula, o direito à democracia, o reconhecimento pleno do direito de participação paritária dos estudantes nos temas educacionais ao nível local é bandeira histórica dos estudantes brasileiros e garantia de que o povo organizado poderá impedir novos intentos de destruição da educação pública.


 


Neste sentido – muito mais que o exclusivismo da pauta ética pela grande mídia – os eventos recentes na UnB ilustram a convicção do movimento estudantil de que a democracia, a paridade, a participação dos estudantes, servidores e professores em condições de igualdade são elementos centrais da defesa da Educação Pública.


 


(Continua)

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