Santos x satânicos na Constituinte de 1946

No dia 18 de setembro de 1946 começou a vigorar a terceira Constituição do Brasil. Seus 238 autores proclamaram que se reuniram “sob a proteção de Deus”, mas essa não é toda a verdade. Dentre os

O presidente da Constituinte, senador Fernando de Melo Viana (PSD/MG), que participara do Estado Novo recém-deposto, disse, em seu discurso de abertura dos trabalhos, que ali se travaria um embate em que, contra as forças políticas ligadas por "vínculos de patriotismo e de santo desejo de bem servir" e contra "a obra cristã, se virão esbater impotentes os inimigos das liberdades individuais, sob quaisquer que sejam os aspectos que se nos atolem, sob quaisquer satânicos disfarces com que se nos pretendam defrontar e se encobrir".
Esse foi o modo de ver conservador sobre um congresso que redigiu a nova Carta se inspirando nas de 1891 e 1934, porém com grande influência também da de 1937, pois eram muitos os constituintes oriundos do Estado Novo. Mas, na opinião de Paulo Bonavides e Paes de Andrade, “a singularidade suprema por excelência da Constituinte de 1946 veio a ser a presença de uma bancada comunista na Assembléia suprema" (História Constitucional do Brasil).
Composta por 14 deputados e pelo senador Luiz Carlos Prestes, a bancada votou contra o projeto de Constituição elaborado pela chamada “Grande Comissão” para servir de base para a apresentação de emendas pelos constituintes. Dos 37 membros, só um, Milton Caires Brito, era comunista. Em nome da bancada, Prestes explicou o porque do voto contrário: "Não se diz nada de prático sobre a reforma agrária, sobre a maneira de acabar com os restos feudais na agricultura, sobre a necessidade de ensino gratuito, sobre a gratuidade indispensável da Justiça, sobre medidas práticas que assegurem o progresso do Brasil".
Os comunistas apresentaram 180 emendas a esse projeto, quase todas recusadas. Mas indo direto à questão religiosa nas leis brasileiras, a bancada se posicionou contra a invocação da “proteção de Deus” no preâmbulo, a indissolubibidade do vínculo do matrimônio (pelo divórcio), pela laicidade do ensino nas escolas públicas; pela ampla liberdade de crença e o livre exercício de cultos (estes últimos tópicos foram apresentados pelo escritor Jorge Amado, constituinte comunista pelo estado de São Paulo).
A “Grande Comissão” se subdividiu em 10 subcomissões para realizar seus trabalhos. Os “Anais da Comissão da Constituição, pareceres e relatório das subcomissões”, publicados pela Imprensa Nacional em 1948, registram que o preâmbulo da Constituição recebeu 19 emendas, "apenas duas não se referem  a Deus", informa o Parecer sobre as emendas. "Não há, entretanto, acordo, entre as que fazem referência, quanto à forma que ela deve revestir". Foi proposto que os constituintes se reuniram  "implorando a benção de Deus", "com a graça de Deus", "inspirados pela confiança em Deus", "implorando a proteção de Deus", "invocando a proteção de Deus", "sob a invocação do nome de Deus", "com a proteção de Deus" e "confiando na proteção de Deus". O curioso é que os relatores rejeitaram todas essas formulações e levaram a plenário uma outra, de sua autoria: "com o pensamento em Deus". Mas acabou vingando mesmo a fórmula apresentada no projeto inicial: "pondo a nossa confiança em Deus".
Uma proposta para que fosse assegurada a gratuidade da assistência religiosa (ou seja, o serviço religioso, para quem o solicitasse, não seria pago com verbas públicas) foi negada pelos relatores da subcomissão com este argumento: “Os que amam a liberdade; os que a têm como o supremo bem da humanidade, não podem negar a assistência religiosa e, se preciso for, despender para obtê-la, é dever do Estado despender”. E arremataram: “Para o amparo à liberdade de crença e de culto, não podemos ter mesquinharias”.
A subcomissão rejeitou “a declaração de ser leigo o ensino, suprimindo o ensino religioso facultativo” e a que restringia “o ensino religioso às escolas primárias”. Os relatores ainda consideraram “por demais mesquinha” uma emenda que assegurava ao Estado “a isenção de ônus com o ensino religioso”. Ou seja, o Estado foi responsabilizado pelo pagamento de religiosos (a miríade dos quais católica)  que utilizavam espaços públicos para fazer o doutrinamento de seu credo.
Tendo o registro do Partido Comunista do Brasil e o mandato de seus parlamentares cassado em 1947  e sendo violentamente perseguidos, torturados e assassinados, em especial a partir de 1964, os comunistas, assim com os democratas e socialistas mais vincados aos setores e interesses progressistas e populares, voltariam a participar abertamente da vida política após a posse do presidente José Sarney, em 1985. A Constituinte de 1988 contou, mais uma vez, com a presença de comunistas e ateus declarados em seu plenário.

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