Três Enterros: mergulho no inferno

Filme de estréia do ator norte-americano Tommy Lee Jones, como diretor, revela a forma violenta como os Estados Unidos tratam os migrantes

Há um momento em “Três Enterros (The Three Burials of Melquíades Estrada), do diretor norte-americano Tommy Lee Jones”, em que a realidade supera o realismo mágico. Para encontrar um vilarejo, Peter Perkins (Tommy Lee Jones) tem de deixar de lado a veracidade, a concretude, para mergulhar na fantasia. O que deveria achar era um outro tipo de espaço. Não se tratava, na verdade de um lugar, mas de um sonho, em que entraram um lugar, Jimenez, e uma família, que não era a de seu amigo Melquíades Estrada (Julio Cedillo). E ele, Perkins, passa a edificar aquilo que para Melquíades era apenas uma projeção, um desejo frustrado pelos disparos que lhe ceifaram a vida. O impacto desta descoberta leva à outra não menos enigmática: a de que o vaqueiro solitário esperava construir sua vida com partes de seus sonhos, e já havia encontrado uma forma de realizá-los, só faltava torná-los realidade.

Para um cinema construído em cima de mitos, estrelas e dólares, como é o americano, o filme do ator, agora diretor, Tommy Lee Jones, é um bom achado. Contribuiu para isto o roteiro do mexicano Guilhermo Arriaga, o mesmo que já nos legou “Amores Brutos” e “33 Gramas”. Arriaga, bom leitor de novelas em que o tom é ditado pelo realismo mágico, faz de “Três Enterros” uma boa vertente cinematográfica. As imagens do francês Chris Menges, diretor de fotografia, contribuem para o clima de sonhos, tão benéfico ao tema em que atos reais se transfiguram em situações mágicas. Mágicas no sentido de serem exacerbadas a tão nível que se transformam em metáforas.

As metáforas aqui são as formas como os imigrantes são tratados pelos EUA,
e os cadáveres e os seres mutilados em que se transformam. Antes de serem vistos como trabalhadores em busca da “terra da promissão”, vendida pela maciça propaganda do american-way-of-live, encarnam o “ilegal”, aquele que irá “desagregar a sociedade americana”. Na verdade, são vítimas de um sistema que os atrai, os suga e os expele. Em seus países de origem, eles são bombardeados pela “terra da oportunidade”, e lutam para chegar a ela por todos os meios. Quando o fazem, caso de Melquíades Estrada, precisam viver com medo da patrulha da fronteira, dos agentes da imigração, da polícia civil e dos próprios americanos que os exploram e os denunciam.

Tudo isso ocorre em meio à uma necessidade de mão-de-obra barata, utilizada em locais insalubres, com jornadas de mais de 12 horas, para acumular dólares para remeter às suas famílias, e, no caso de Melquíades Estrada, construir um sonho, do qual se transformou presa. Tommy Lee Jones, acostumado às superproduções (“Homens de Preto”, “O Fugitivo”), investe num filme complexo, em que os personagens são deserdados à procura de sentido para a vida. Raquel (Melissa Leo), dona da lanchonete, divide-se entre seu estabelecimento e dois amantes. Não porque queira ser bígama´, mas porque isto atende melhor à prostração em que se encontra. Ela não quer mudar, pois sua vida está por demais atrelada à do marido. Lou Ann Norton (January Jones), jovem e bela, suporta o marido guarda-fronteira, Mike Norton (Barry Pepper), e passa as tardes na lanchonete de Raquel, para não morrer de tédio.

É com ela que Melquíades irá passar seus bons momentos no Texas
. Para ela uma forma de diversão, para ele, uma descoberta de que pode se entrosar com alguém; uma mulher que tornará sua vida menos árdua. Estes personagens, mais o próprio Perkins, são os deserdados que se igualam a Melquídes. Perkins é vaqueiro, igual ao mexicano, se equivalem ao ganhar a vida em cima de um cavalo comboiando cavalos e cabras. A classe social a que pertencem os unem, ambos são marginalizados. É isto que irá os unir, os tornar amigos, e o que fará com que Perkins se veja obrigado a cumprir a promessa feita ao amigo. No capitalismo, as diferenças são apenas entre burgueses e proletários, não entre trabalhadores, entre proletários. Sejam americanos ou mexicanos; isto os iguala.

Lee Jones e Arriaga, entre um flash-back e outro para acentuar o absurdo que é a situação do cadáver de Melquíades perambular pela paisagem árida, costuram estes aspectos. Nada os diferencia, nem o fato de um ter nascido num país de Primeiro Mundo e o outro no de Terceiro Mundo os afasta. Não estamos naqueles faroestes, tipo “Sete Homens e Um Destino”, em que o americano surge na aldeia mexicana para libertar os camponeses do tirano. Quando Perkins começa a cumprir a promessa feita a seu amigo Melquíades o faz por entender o que se passa em seu país. Não há justiça, o corpo do mexicano pouco importa; tampouco quem o liquidou. Segue-se uma jornada em que a punição se dá pela compreensão do mal feito a alguém que era vítima, em todos sentidos.

Perkins faz o patrulheiro de fronteira Norton
empreender uma viagem, forçada, acentuando a cada momento os limites da dor que pode infringir ao outro. Neste instante, o filme assume o caráter mágico, absurdo, com uma viagem não de descoberta, mas de busca. Não se trata de um road-movie, no sentido tradicional, de formação ou de redescoberta, em que os personagens vão se descobrindo e, quando chegou ao fim da jornada, são outras pessoas. Em “Três Enterros” a viagem é mais um mergulho no inferno que um indivíduo pode transformar a vida do outro, para purgá-lo do “pecado”. Norton vai, aos poucos, penetrando num mundo desconhecido em todos os sentidos.  A cada tentativa de fuga sua punição aumenta, suas chagas se abrem. Perkins não se importa com isso, o faz obrigando-o a ver o abismo que há entre ambos.

A jornada que os dois empreendem, levando consigo o cadáver de Melquíades, é cercada de situações e personagens que só acentuam o inferno que percorrem. É o velho cego que lhes pede para executá-lo, os coiotes (profissionais que cobram para atravessar os imigrantes na fronteira mexicana), que barganham qualquer coisa, para serem recompensados pelo seu “serviço”, a jovem curandeira que vê a chance de se vingar de Norton e a mulher que se irrita com a insistência de Perkins em saber se ela era mesmo a mulher de Melquíades. São seres presos às armadilhas de lugares inóspitos sem espaço para sonhos, a menos que queiram romper a estrutura que os aprisiona.

A aridez de “OS Três Enterros”
permeia toda a trama, as montanhas, a minguada vida a que todos estão submetidos. É um universo difícil de se ver nos filmes americanos, presos à “ideologia do filme classe média”.Nesta, os personagens se locomovem em espaços clean, classe média, vivendo situações típicas de seu segmento social. Os pobres desapareceram, todos têm carros último tipo, se vestem com apuro e, por mais que sofram, são recompensados no final. Não há conflito de classe e as dificuldades podem ser superadas com o esforço individual. Lee Jones e Arriaga mostram um Estados Unidos soporífero, com relações sexuais fracassadas, pessoas que se acostumaram à uma vida sem cor. Cai a máscara, principalmente quando é mostrada a forma como os que se aventuram a entrar em seu território são tratados.

A “terra da promissão” pode virar um pesadelo, haja vista o projeto de lei que pode obrigá-los a indenizar o Estado pelo período que vivem ilegalmente no país. Não é à toa que os migrantes dos mais diversos continentes se uniram e foram às ruas para evitar o retorno às suas vidas miseráveis. Melquíades, a todo momento, teme pelo que lhe pode acontecer. Quando ocorre é sem que ele possa saber de onde partiu o disparo que o abate. Fica como um “animal” na cova, até ser resgatado pelo amigo Perkins. A solidariedade de classe então predomina, mesmo que seja de um vivo para com um morto.


Como filme de estréia no cinema, Lee Jones
fez por merecer o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes de 2005, e também Arriaga como o de melhor roteiro. A seu modo “Os Três Enterros” enriquece o número de filmes que tentam entender e desnudar as entranhas dos Estados de Bush. O outro é “Crash”, premiado com o Oscar de Melhor Filme de 2005. Traçam, cada um à sua maneira, o perfil de um país que há muito perdeu o encanto. Dominado pelo medo, vê inimigo em todos os cantos. Basta que não seja anglo-saxão para ser visto como ameaça. Os imigrantes o ameaçam por entrar em seu território de forma submersa; o ameaçam os muçulmanos por suspeita de terrorismo; o ameaça quem a ele se opõe por suspeita de não querer obedecer às suas ordens.
 
No final se percebe que quem é a verdadeira ameaça, o prova Melquíades, são os próprios EUA, tomados pela paranóia. Ao se encontrar no local indicado pelo amigo Melquíades, Perkins compreende, talvez tarde demais, que ele mesmo não tinha um sonho e Melquíades o fez ter. Como nos far-west, ele parte sem destino, mas cheio de certeza e com o dever cumprido. Uma boa lição para quem vivia uma vida de cão e atravessa o inferno para redescobrir a si próprio e punir com as chamas incandescentes o truculento Norton, que, por outras vias, a da punição, também se reencontra. É uma boa metáfora para a pseuda “terra da promissão”.

Três Enterros (The Three Burials of Melquíades Estrada).
EUA/França, 2005, 14 anos, 2:01 minutos. Elenco: Tommy Lee Jones, Barry Pepper, January Jones.
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