A carta e a cartada do Irã

Nossos leitores podem estar achando que estamos fazendo um trocadilho com o título. Mas não. O mundo foi literalmente surpreendido com uma carta que o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, enviou aos Estados Unidos. Não foi um

Pouco se sabe sobre o conteúdo da carta. Mas fala-se que é longa. Alguns disseram que ela tem 18 páginas. Foi entregue na embaixada da Suíça em Teerã. É claro que, mesmo ela ainda não tendo chegado às mãos do presidente americano, seu conteúdo já é de conhecimento da secretária de Estado, Condoleeza Rice e pelo menos do linha dura, embaixador dos EUA na ONU, John Bolton.
Qual cartada?
O regime iraniano rompeu relações diplomáticas com os Estados Unidos desde a sua revolução islâmica de 1979, quando o aiatolá Khomeini chegou do exílio que mantinha em Paris, derrubando o regime despótico do Xá Reza Pahlevi.  Nessa época ocorreu a crise dos reféns, quando jovens revolucionários iranianos tomaram a embaixada americana mantendo todos os seus funcionários como reféns por 55 dias.
Mais recentemente, o Irã vem sendo o epicentro de uma crise política internacional. Os americanos, arrogantes como sempre, não admitem que nenhum país, além dos seis que dominam o ciclo completo do enriquecimento de urânio e possuem bombas (oficialmente), entre no chamado clube nuclear. E não adianta o país afirmar com todas as letras que suas pesquisas visam fins civis, científicos, energéticos e medicinais. Qualquer físico de nível mediano sabe que o Irã está a pelo menos dez anos da produção de urânio enriquecido o suficiente para a produção de uma ogiva nuclear. Mas, os EUA, na sua linha hegemonista, insiste que o Irã não pode ter esse direito.
A crise já foi remetida pela Agência Internacional de Energia Atômica ao Conselho de Segurança. Esse assunto vem sendo debatido pelos 15 membros – 10 rotativos e cinco permanentes – desde a semana passada. É provável que na semana que vem uma resolução seja votada. Rússia e China vetarão uma resolução que invoque o Capítulo 7 da Carta das Nações, onde diz que se um país ameaça a paz mundial, pode sofrer sanções econômicas num primeiro momento e depois militares, chegando até a autorização da ONU para o bombardeio e a invasão por tropas internacionais. É o que os Estados Unidos almejam. Não necessariamente uma ocupação militar, mas os ataques a todas as instalações nucleares iranianas.
O clima vem ficando cada dia mais tenso e essa bandeira unificou todas as correntes do alto clero xiita iraniano, sejam eles de linha moderada ou radical. Além do presidente, que tem grande respaldo popular, uma espécie de Lula persa, tem apoio nessa questão do ex-presidente moderado Ali Hashemi Rafsanjani e do líder máximo espiritual (pela hierarquia islâmica ele manda mais que o presidente), Ali Khamenei. Assim, o endurecimento dos discursos do governo vem sendo feito de forma uníssona e unânime e conta inclusive com apoio dos jovens do país, normalmente mais suscetíveis às influências externas.
Nesse sentido eu uso o termo cartada. Num momento de crescente tensionamento, o presidente do Irã envia uma carta a um país que não tem relações diplomáticas há 27 anos e pede a construção de “novas soluções” entre os dois países. Uma surpresa. Ele deu o lance, tomou a iniciativa, jogou uma carta na mesa, a espera agora da reação de seu adversário, a maior potência econômica e militar do planeta. A jogada agora passa para os americanos.
Pouco se sabe sobre o conteúdo da carta. O que a imprensa mundial veiculou é que ela faz uma análise, mas a linha de corte não fica em 1979, quando do início da revolução iraniana. Ela retrocede a 1953, quando os Estados Unidos patrocinaram, com a CIA, um golpe de estado que derrubou o regime nacionalista de Mossadegh, implantando a ditadura do Xá.
Há uma análise quase unânime sobre essa jogada iraniana, vai no sentido de dividir ainda mais o Conselho de Segurança da ONU. Talvez seja uma tentativa de atrair o voto dos franceses, hoje defendendo que se invoque o capítulo 7 da ONU. Ou seja, o presidente iraniano radicaliza ao máximo seu discurso, mobiliza a sociedade, faz intensa propaganda no Irã e que ganha o mundo pelas agências internacionais. Mas, em determinado momento, distenciona as relações. Uma jogada de mestre. Pode não dar certo, mas tomou a iniciativa política e diplomática. Sun Tsu, um dos maiores estrategistas da história, general chinês que viveu há mais de 2,5 mil anos, fala na possibilidade de, em algum momento, mesmo no campo de batalha, ocorrer manifestação desse tipo.
Esse episódio me lembra a I Guerra do Golfo, em 1991. Na verdade ela se inicia quando Saddam ocupa o Kuwait sob o argumento que esse país era completamente artificial e sempre tinha sido a 19ª Província do Iraque e da antiga Babilônia. Isso tem suas razões históricas, na medida em que praticamente a única saída para o mar dessa potência que já foi o Iraque, ficara reduzida ao estreito de Ormutz. Independente das razões históricas, Saddam comete um erro histórico de tencionar ao máximo o enfrentamento com os Estados Unidos, que já se encontravam, desde agosto de 1990, em manobras e operações militares de deslocamento de tropas, preparando a invasão do país, que ocorreria a partir de 16 de janeiro de 1991. Saddam não fez nenhum gesto de negociação, de acordo. Não procurou aliados, isolou-se e isso facilitou a sua derrota.
Aqui, mais uma vez, dizemos que não possuímos o dom da profecia. Não há como prever os desdobramentos dessa cartada iraniana. No entanto, Ahmadinejad mostrou-se um sábio. Aponta a negociação, mas com soberania, com altivez. Amplia seus apoios e deixa os americanos em situação difícil. O linguajar reacionário e direitista da secretária Condoleeza não será suficiente para isolar o Irã e insistir no caminho da força. Seguimos

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