A “superexploração do trabalho” na China

Chegou o momento de se enfrentar teoricamente a propalada “superexploração do trabalho” na China e sua relação com os índices de crescimento e como instrumento raso de argumentações que buscam desmentir o status quo socialista e desmoralizar aque

A discussão não se pode dar somente sob o ângulo da matemática financeira e da economia, mas também nos campos da história e da categoria de formação social e da própria trajetória da construção do socialismo em formações sociais periféricas.


 



Grande coincidência nos casos da China de hoje e URSS de ontem


 


Interessante notar que nas décadas de 1940-50 quase todas as explicações acerca do crescente poder soviético e dos por quês que envolviam o fato de um país em 1917 pautado por relações semi-servis de produção surgiu outro capaz de derrotar a maior máquina de guerra da história e de se equiparar em variegados campos com a maior potência de então, a explicação mais corrente estava baseada no fato de a URSS utilizar trabalho escravo. Não somente dos gulags, mas também no campo e da cidade. Assim como hoje sobre a China, dados sobre o trabalho necessário para a construção daquela potência jorravam pelos gabinetes de economistas e espiões. 


Exceções à parte a começar pelo notável historiador polonês Isaac Deutscher acompanhado pela capacidade de propaganda do movimento comunista internacional davam conta dos avanços sociais daquele país. Mas os intelectuais orgânicos da burguesia espalhavam seu veredicto. Atualmente se compararmos os editoriais econômicos internacionais ocupados em explicar o sucesso chinês iremos esbarrar exatamente na mesma explicação acerca da URSS: mão-de-obra barata, superexploração do trabalho, etc, etc, etc.


 


 


A grande diferença é, como já dito, naquele momento, todo o movimento comunista estava pronto para a defesa dos avanços alcançados pela Revolução de Outubro, hoje grande parte do nosso movimento – por puro desarmamento teórico e analfabetismo histórico – repete, na maior tranqüilidade, as ladainhas ventiladas pelo imperialismo acerca do trabalho na China (1). Pior, sem ao menos tentar responder como um país mediado por relações de produção semi-escravas pôde retirar 400 milhões de pessoas da linha da pobreza em 25 anos. Até onde sei, este fenômeno de inclusão no mercado consumidor (guardadas suas devidas proporções), não ocorreu nem em meio à escravidão romana e muito menos no Brasil entre os séculos 16 e 18.


 


Sem querer ofender, pois sou amigo e admirador de alguns deles, muitos “intelectuais” radicais, defensores do “socialismo da própria cabeça” nem se dão conta de ao menos estudar a história do país em questão. Daí já é suficiente para desconfiar que algo de errado anda ocorrendo com o método, ou então, por decisão do mercado editorial norte-americano, o materialismo deixou de ser histórico.



 


Capitalistas burros?


 


Pode-se perceber a superficialidade da centralidade do fator mão-de-obra no processo chinês. Tão superficial quanto “recortar” e “colar” um dado que diz 55% das exportações chinesas serem feitas por empresas estrangeiras, quando na verdade este dado, se pesquisado de forma séria, poderá ser alterado, pois 51% das ações de 83% as empresas exportadoras são de chineses (2). Uma coisa é falar em participação de empresas estrangeiras outra é citar a composição de tais empresas na pauta. Pelo amor de Deus!


 


 


Voltando, diz-se que a mão-de-obra é um fator para o sucesso chinês. Isso é verdade, um tanto quanto incontestável (e não estou aqui para isso). Mas acreditar que isso é uma determinação nodal é, no mínimo, para não dizer outra coisa, expressão de uma terrível falta de visão de conjunto. Afinal, se todo o problema é a disponibilidade de uma mão-de-obra tendente a ser barata pela existência de um imenso exército industrial de reserva, acho que os capitalistas do mundo deveriam instalar suas fábricas em países como a Botswana, Guiné-Bissau, Djibouti e até na Nigéria e não na China. Aliás, fora o fator trabalho, os custos de transporte de um país como a Nigéria (dada a proximidade geográfica) para centros de consumo como os EUA e a Europa seriam muito mais baratos do que se partindo da China.


 


 


Ora, uma das determinações é a busca de implantação de cadeias produtivas próxima a um mercado de potencial de cerca de um bilhão de consumidores, somente na China. Isso qualquer aluno de primeiro ano de geografia sabe. E, se elevarmos nossa abstração a outro nível, poderemos perceber que a instalação de fábricas na China é condição objetiva para se alcançar e concorrer pelo consumo de metade da população do mundo encontrada em um mesmo lugar, a Ásia. Quando digo disputar, quero dizer que países como a China têm seu mercado interno cada vez mais preparado para empresas nacionais, dada a incorporação rápida de novas tecnologias de empresas norte-americanas e européias situadas em seus territórios.


 


 


Outra demonstração de “insanidade” dos capitalistas mundiais é o fato deles estarem escolhendo um país para instalar suas fábricas, sendo que este país tem aumento médio da produtividade de trabalho para os últimos dez anos da ordem de 4,3% ao ano. Até aí tudo bem, mas por outro lado com aumento médio de salários (nos últimos dez anos) de 10,4% nas cidades e de 7,4% no campo (3). Caso o aumento da produtividade do trabalho, na China, não tivesse aumento correspondente nos salários, um grande problema de harmonia das forças produtivas em relação às relações de produção estaria em marcha colocando em xeque o poder do Partido Comunista da China (PCCh) da mesma forma que milenar e ciclicamente o poder imperial foi chocado com revoltas camponesas.


 


 


É mister notar que marxismo sem história é algo minimamente suspeito. Pior ainda é se explanar sobre a China sem o auxílio da ciência histórica. Vejamos a qualidade das explanações em voga na praça.


 



A relação entre o socialismo e a taxa de exploração: quem financia?


 


A China não é socialista porque tem uma mão-de-obra superexplorada por empresas estrangeiras. Se o problema é esse, deixemos a palavra para, nada mais nada menos, que o maior revolucionário de todos os tempos, Vladimir Lênin:


 


“Os EUA e a URSS se complementam – disse ele – A URSS é uma nação decadente com tesouros imensos, na forma de recursos inexplorados. Os EUA podem, encontrar aqui, matérias-primas e mercado para máquinas e, depois, para produtos manufaturados. Acima de tudo, a URSS necessita da tecnologia e dos métodos americanos, como também de suas máquinas, de seus engenheiros e instrutores.” (4)


 


 


Lênin fala abertamente em parcerias com empresas estrangeiras para a exploração de “tesouros inimagináveis”. Raciocinemos, caro leitor, o preço da mão-de-obra em um país destruído como a URSS de então. Pare para pensar e compare com a China de hoje e se pergunte: proporcionalmente, seria diferente tal preço?


 


Retornando, a questão que se coloca é que poucos raciocinam com o socialismo sendo um modo de produção e que como modo de produção guarda todas as características de seu predecessor, o capitalismo, com uma única diferença, a forma de apropriação do excedente econômico (5). Para quem não sabe, no socialismo continua existindo linhas de produção e também, por mais horripilante que pareça: mais-valia. Esse é o “x”.


 


 


Olhando historicamente a empresa que foi a construção do socialismo na URSS e hoje na China, cabe uma “pergunta mágica” típica dos economistas: quem financiou a construção de uma indústria de base com capacidade de produzir tanques e aviões capazes de destruir o exército alemão ou mesmo quem financiou as pesquisas que culminaram na ida do primeiro ser-humano ao espaço? Ou sobre a China, quem financia um trilhão de dólares de infra-estruturas em apenas dez anos, sendo que mais de 80% deste financiamento é totalmente estatal ou de onde sai o dinheiro para a implantação de sistema de proteção social que só este ano vai consumir US$ 200 bilhões?


 


Um estudo mais de fundo acerca da relação entre o socialismo, e sua construção, e a taxa de exploração (6), pode-se auferir que dada a necessidade de, cada um ao seu tempo, alcançar rapidamente o nível de desenvolvimento dos países capitalistas centrais, tanto a URSS quanto a China caracterizam-se por ter economias caracterizadas por uma altíssima taxa de exploração e também  por um índice enérgico de formação de capital, afinal sem concentração de mais-valia carreada para o sistema financeiro (a economia monetária e a macroeconomia não é socialista nem capitalista), o investimento torna-se algo, simplesmente impossível.


 


Essa taxa de exploração verificada no socialismo tende a ser mais indigesta (para quem idealiza a construção da nova sociedade) na medida em que nenhum país socialista dispôs ou dispõe de colônias externas, logo todo o peso de se desenvolver a “passos de cavalo” recaiu ora nos ombros camponeses (no modelo soviético), ora nos trabalhadores urbanos e com um duro preço político a se pagar (7). Enfim, olhando por esta ótica a “superexploração do trabalho” não é privilégio da China, mas também da URSS e de qualquer país socialista que queira se desenvolver partindo de atraso absoluto. Infelizmente (ou felizmente) a natureza, a sociedade e economia são regidos por leis objetivas e espontâneas e fora de alcance de alteração pelo homem. Não existe “fórmula mágica”. Quem as tiver descoberto sugiro que a envie ao Conselho de Estado da República Popular da China.


 



O trabalhador chinês é ultraexplorado?


 


Que existe uma alta taxa de exploração na China, isso é de comum acordo, dada as circunstâncias históricas, a luta-de-classes em âmbito mundial e a necessidade de se indigenizar tecnologias concentradas no exterior, pois sem tecnologia é impossível superar o estágio da exploração do trabalho (não da exploração do homem pelo homem). Agora daí a argumentar que o trabalhador chinês é ultraexplorado é uma distância considerável, pois nesse cálculo devem ser auferidas as múltiplas determinações que envolvem a produção e o consumo de mercadorias, entre elas: a capacidade de consumo que seu salário permite, as escalas de produção, da quantidade de crédito à disposição para consumo das massas populares e, também se levar em consideração que a lei do valor pode ser universal, porém sua aplicação deve se levar em conta as vicissitudes da formação social. Exemplo disto é o fato de se calcular o PIB em concordância com o poder de compra da população, o PIB chinês fica somente atrás do PIB norte-americano, afinal um dólar na China, não é mesma coisa de um dólar nos EUA ou na Europa ocidental.


 


A análise pormenorizada de todas as determinações elencadas acima e outras não incluídas em comparação com outros países em tempos históricos diferentes, não dá margem de manobra para dizer que o trabalhador chinês é ultraexplorado.


 


Uma consideração histórica pode se remeter à já citada relação entre quebra de status quo e milenares revoltas camponesas na China. Caso a China seja realmente um “campo de trabalho quase forçado” em que as multinacionais extraem até a última gota de sangue do trabalhador, é estranho não haver grandes reações a isto, inclusive de contestação do poder do PCCh. As recentes revoltas em curso na China são muito mais relacionadas com problemas do próprio desenvolvimento como a contaminação de mananciais, infra-estruturas ocupando áreas de plantio do que com “excesso de trabalho mal pago” em si. Desta forma é bom nos perguntarmos antes de ficar na defensiva toda vez que alguém fala em superexploração na China, se o trabalhador médio chinês vive melhor ou pior hoje com relação há 30 anos atrás.


 


Conheço a China, estive por lá duas vezes e na primeira viagem que fiz em 2004 pude visitar pelo menos 30 residências de trabalhadores da indústria, seja estatal ou privada e em todas as casas pude observar equipamentos como geladeira, televisão, liquidificar, DVD, ventilador, máquina de costura etc. E dada uma taxa de juros atraente ao crédito, fruto de uma política de acúmulo de reservas cambiais, todo trabalhador industrial na China pode adquirir sua casa própria, via crédito estatal, utilizando somente 4,7% de seu salário (8). Essa realidade é a mesma de um trabalhador brasileiro ou mesmo latino-americano?


 


Dois em cada cinco operários fabris chineses fazem uma viagem de trem de ao menos 500 km. em uma das chamadas “semanas de ouro”. Aqui no Brasil para um trabalhador que reside na Grande São Paulo, qual a possibilidade dele levar sua família a um passeio de final de ano às praias da Baixada Santista, dista 70 km. da capital?


 


Enfim, pelos poucos dados expostos, acredito dista da realidade a idéia de uma superexploração do trabalho na China. Tentei pelo menos abrir a polêmica. Que o debate caminhe, sem preconceitos.


 


Notas:


 


(1) Não vejo nenhum comunista comentar que a mão-de-obra média na Índia, em determinados localidades com mais de 10 milhões de habitantes (Bombaim, Madras e periferia de Nova Dhéli) é até 70% mais barata que a verificada na China. E para a direita a Índia é um exemplo de crescimento atrelado a um regime democrático. Mas se esquecem que enquanto a “escravista” China saiu de um patamar de 94% de analfabetos em 1949 para menos de 4% hoje, a “livre” Índia contava com 89% de analfabetos em 1945 e hoje “caiu” para 35% da população, sem contar que 55% da população indiana é classificada como “analfabeta funcional” segundo dados fornecidos pela ONU.


 


(2) China Statistical Yearbook 2006.


 


(3) China Statistical Yearbook para todos os anos.


 


(4) HAMMER, A. & LYNDON, N.: “Hammer: um capitalista em Moscou”. Best Seller. São Paulo, 1988, págs. 121-130.


 


(5) Se o socialismo é ou não um modo de produção é cada vez mais uma falsa polêmica. É só observarmos as formas de estrutura produtiva e a divisão social do trabalho nas experiências socialistas passadas e presentes.


 


(6) A taxa e exploração é um conceito marxista cujo objetivo é determinar a correlação entre a parte do dividendo nacional que vai às mãos dos trabalhadores, sob a forma de capital variável, e a parte que o empresário (ou Estado socialista) retém como lucro.


 


(7) Sobre as vicissitudes do modelo soviético de desenvolvimento um anexo de meu livro (“China: infra-estruturas e crescimento econômico”. Anita Garibaldi, 2006. 256 p.) é dedicada a este tema.


 


(8) “The Bank of China Journal”. Number 677, 08-15 April, 2004.


 

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