Anticomunismo, revolução russa, Guevara e guerra fria

Depois   veio    o   fascismo  e   o   Plano   Cohen.
(Mário Lago, em História do Brasil).


 

Um dos maiores discursos inventados do Século 20 é o de que a chamada “Guerra Fria” iniciou após o final da 2ª Guerra Mundial. Seu significado traduz o que grande parte da intelectualidade e da mídia tem reproduzido até os dias atuais, ou seja, a de que uma espécie de guerra suja acontecia entre os Estados Unidos e a União Soviética em torno da partilha do mundo pós-1945. Raramente a “Guerra Fria” aparece como a síntese ideológica da luta de classes do capital contra o trabalho.


 


Na verdade, o que a visão conservadora e despolitizada, traduzida como “Guerra Fria” sempre escondeu foi uma estratégia sutil de anticomunismo presente desde o Século 19, após o surgimento do marxismo, aprofundada depois da Comuna de Paris e absolutizada com a vitória da Revolução Soviética. A burguesia mundial nunca pôde e não pode tolerar o proletariado e os trabalhadores no poder. 


 


A direita liberal e conservadora, desde então, não mede esforços para desqualificar, atacar e fazer a luta contra a tradição marxista e a visão comunista de mundo. Após o fim da União Soviética, em 1991, então, diferentemente do que se apregoa ela se aprofundou.


 


Todos os símbolos e as conquistas do socialismo no século 20 continuam a ser negados ou ignorados. As derrotas conjunturais das primeiras experiências socialistas foram superlativizadas e seus erros transformados em aporte para a condenação de uma sociedade para além do capital.


 


Nos 90 anos da Revolução Soviética e nos 40 anos da morte de Ernesto “Che” Guevara é interessante perceber este processo historicamente, apenas tendo como exemplo o anticomunismo em nosso país.


 


Logo após a Revolução de outubro, ainda em 1917, as grandes agências de notícias divulgavam comunicados uníssonos para o mundo sobre “o que se passava na Rússia Soviética”. No Brasil, a imprensa liberal divulgava ou abordava-os no mesmo tom em seus editoriais, baseados em falsidades e mentiras.


 


Como já foi demonstrado em obra clássica, “o Brasil acompanhou a queda do Czar e a deposição de Kerenski com a retina de Havas, United Press e outras agências internacionais. A imagem da revolução russa, que projetavam era a imagem que as altas finanças de New York, Londres e Paris dela faziam”.[1]


 


Nelas, as barricadas de Viborg, o bairro proletário de Petrogrado, as greves e as manifestações de rua, como a do Dia Internacional da Mulher, não inauguravam a Revolução de Fevereiro e derrubavam Nicolau 2ª, mas este abdicara do trono em nome de seu irmão Miguel ou de seu filho Aléxis. Estrategicamente, tirava-se o papel político da luta de classes naquele processo, apagava-se da história a aliança de operários e soldados, eliminava-se a liderança dos bolcheviques na conjuntura.


 


Em várias notícias que visavam a cizânia e o descrédito sobre o que acontecia na Rússia, o escritor Máximo Gorki era apresentado como o verdadeiro líder do movimento e inimigo de Lênin;[2] este era colocado como um agente e espião do imperialismo alemão (após 1920 passou a ser chamado de ditador russo), enquanto que os bolcheviques estavam à serviço da Alemanha beligerante; ao mesmo tempo, ao menos enquanto durou a guerra civil e o cerco dos exércitos brancos ao poder soviético, a derrota dos bolcheviques era iminente a cada dia, enquanto a Rússia era qualificada como o reino do terror e da anarquia, pois o Conselho dos Operários e Soldados, os sovietes, uma “idéia diabólica” de Lênin, destruía a disciplina e desorganizava a sociedade; as medidas socialistas, as reformas do novo governo proletário e as conquistas como a reforma agrária e a redistribuição de terras, o trabalho de 8 horas, a paz na guerra e as vitórias contra o cerco das potências imperialistas, etc., eram desqualificadas ou identificadas como um ataque à família e à propriedade privada.[3]


 


No entanto, eram os apoiadores locais os mais visados do discurso de direita. Os anarquistas e os maximalistas, simpáticos ao que acontecia na Rússia, eram denunciados como agentes estrangeiros que queriam fazer do Brasil uma Rússia bolchevista. O perigo vermelho ganhava espaço no imaginário conservador. Após 1917, os reflexos da crise econômico-social da I Guerra nas grandes greves não eram considerados e os impactos positivos da Revolução Soviética no movimento operário brasileiro eram considerados como “uma ameaça à civilização”, dirigida “por uma das mais terríveis associações revolucionárias de Moscou”. O caráter de classe e burguês do contra-ataque à Rússia Soviética era evidente, identificando a libertação do proletariado do jugo czarista e burguês, desde o primeiro momento, como uma das “maiores tragédias da história”. As lideranças locais, os anarquistas e socialistas e, sobretudo, os comunistas no pós-1922 eram identificados como “maus elementos” ou “extremistas”.


 


 


No Brasil, o ápice desde primeiro momento se deu após o fracasso da Insurreição Nacional-Libertadora de 1935 e o aumento extraordinário da repressão.


 


O fechamento do regime e a justificativa para isso foram sendo construídos ao longo dos anos 1920 e 1930. Mas se precisava de algo mais forte para ganhar o apoio para as medidas de repressão na consciência da maioria da população. Depois de 70 anos compreendemos melhor aqueles episódios à luz de documentação tornada pública.[4]  Este motivo veio com a “descoberta” de um documento pelo Ministério da Guerra atribuído ao Komintern, dando instruções para mais uma revolução comunista no Brasil. O governo Vargas que tencionava um novo decreto de Estado de Guerra era o maior interessado na “descoberta” de um novo plano de assalto ao poder. E este veio com o chamado “Plano Cohen”.[5]


 


A divulgação do “Plano Cohen” foi precedida de uma reunião no gabinete do Ministério da Guerra, em 27 de setembro, onde estiveram presentes os generais Eurico Gaspar Dutra (ministro da Guerra), Pedro Aurélio de Góes Monteiro (chefe do Estado Maior do Exército), Almério de Moura (comandante da 1ª Região Militar), José Antônio Coelho Neto (diretor da Aviação) e Newton Cavalcanti (comandante da 1ª Brigada de Infantaria e ex-integrante da CNRC), além do capitão Filinto Müller (chefe de polícia do Distrito Federal).


 


Na ocasião, em uma reunião que não se tratava de política, mas “exclusivamente da repressão ao comunismo”, foi decidido promover “uma ação enérgica junto ao governo, no sentido de contrapor medidas decisivas aos planos comunistas e seus pregadores ou adeptos”, a fim de salvar “o Brasil e suas instituições políticas e sociais da hecatombe” que, segundo eles estava prestes a explodir, pois se estava na “iminência de um novo golpe comunista”.


 


Por isso, segundo afirmava Newton Cavalcanti, cabia ao Exército “uma ação enérgica, imediata, capaz de desorganizar o plano comunista e capaz de obrigar os poderes públicos a tomarem medidas mais rigorosas” exigidas para aquele momento, sendo necessário agir “mesmo fora da lei, mas em defesa das instituições e da própria lei deturpada”. Para estes artífices das “instituições democráticas”, a LSN e o TSN[6] ainda eram deficientes, por isso novas leis precisavam complementá-las, impedindo a utilização de hábeas corpus, mandatos de segurança, reclamações do Congresso, etc., etc., através de um movimento que deveria arrastar consigo o próprio presidente da República, cuja autoridade seria por ele fortalecida.[7] Na verdade, a reunião articulava também o futuro Golpe do Estado Novo, iniciado com as intervenções federais nos estados, especialmente no Rio Grande do Sul, e terminado com o ato bonapartista[8] de 10 de novembro de 1937.


 


A mentira do “Plano Cohen”, a pretexto de combate ao comunismo, uma das maiores farsas da formação social brasileira, divulgado especialmente pelo jornal O Globo, mesmo diante de um movimento comunista conjunturalmente derrotado no Brasil (pois a maioria das lideranças do Partido Comunista do Brasil ou estava presa, morta ou no exílio), utilizou como manobra o perigo vermelho e o anticomunismo para aprofundar o projeto ditatorial das classes dominantes brasileiras, instaurando o regime de terror após o 10 de novembro de 1937.


 


Mesmo com o papel fundamental da União Soviética na derrota do nazi-fascismo juntamente com os aliados, o anticomunismo não deu tréguas. Aliás, aumentou. Entre o final da 2ª Guerra Mundial e o fim da União Soviética, registrado pela historiografia oficial como “Guerra Fria” nunca o comunismo teve um combate tão intenso, um aprofundamento das práticas anteriores a 1945.[9]


 


Com a expansão das experiências socialistas para além da URSS, sob a direção dos Estados Unidos e seu instrumento primordial, a CIA, o combate ao comunismo foi aprofundado em nosso País. Não bastaram o retorno à ilegalidade do PCB em 1947, a clandestinidade de seus militantes, a repressão aos movimentos dirigidos pelo Partido e suas organizações; não bastaram os milhões de dólares destinados à preparação do Golpe de 1964, através do IPES e do IBAD, através de intensa propaganda político-ideológica que reafirmava o perigo comunista e o caminho da comunização do Brasil pelo governo de João Goulart; não bastaram a Ditadura Civil-Militar e a escalada de violência do terrorismo de Estado contra todas as correntes de esquerda brasileiras; não foram suficientes o fim da União Soviética e a derrota do socialismo no Leste Europeu.


 


Não! A ofensiva neoliberal do imperialismo necessita destruir e oprimir todos os símbolos da tradição libertadora do marxismo, apresentado esta como repressora no lugar da intensa guerra de posição e de movimento do capital contra a liberdade da opressão de classe. Não basta negar a experiência soviética e sua trajetória; não basta negar os acertos das teorias de Marx, Engels e Lênin; não basta negar a resistência de Cuba, a ascensão revolucionária dos anos 1960 e 1970 e o exemplo de Che Guevara.


 


É preciso destruí-los, desqualificá-los e desmerecê-los historicamente para que não tenham sentido para a atualidade. Após 40 anos da morte de Guevara o discurso sobre ele é semelhante ao que se fazia mundo afora sobre Marx no século XIX; idêntico ao que se dizia de Lênin após 1917; igual a todo o palavrório que mostra o líder revolucionário latino-americano como sanguinário, assassino e manipulador, pois necessita esconder a liberdade coletiva dos trabalhadores composta em suas teorias e práticas contrárias ao capitalismo. Desmerecê-lo, através de distorções históricas, manipulações factuais e mentiras, como fez recentemente a revista (?) Veja, é parte da estratégia anticomunista, iniciada no século 19 e permanecida até hoje, desqualificando os revolucionários como utópicos,  anarquistas ou terroristas, buscando desacreditá-los e silenciá-los na memória da juventude e dos explorados do mundo.


 


Tal é a estratégia permanente da “Guerra Fria” burguesa, no plano político-ideológico, através da tática de negação da luta de classes, a qual coloca em seu lugar o idealismo reacionário da “harmonia social”, buscando como definitivo o que é histórico e transitório, a trajetória de dominação de classe do capital sobre o trabalho.


 


Notas


 


Este artigo é dedicado a Lygia Prestes, comunista convicta, irmã de Luiz Carlos, uma das grandes lutadoras brasileiras do século 20, falecida aos 94 anos, em 28 de setembro, co-responsável, juntamente com sua mãe Leocádia, pela libertação de prisão nazista de Anita Leocádia Prestes, filha de Prestes e Olga Benário.


 


[1] As considerações sobre como a grande imprensa via a Revolução Russa, imediatamente após o 1917, podem ser vistas em BANDEIRA, Moniz; MELO, Clovis; ANDRADE, A. T. O ano vermelho: a Revolução Russa e seus reflexos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 73 passim.


[2] Em algumas notas, os maximalistas (que defendiam o programa máximo da revolução), os bolcheviques, tinham este nome devido à liderança maior do escritor, o qual daria nome ao movimento.


[3] A tentativa de desmerecer o novo governo tinha como um dos principais motes a família burguesa como instituição basilar da sociedade democrática. No Diário do Interior, periódico de Santa Maria – RS, como em jornais estaduais e nacionais, chegou a ser divulgado que Lênin havia proclamado a “Semana do Amor”, na qual, as mulheres de menos de 45 anos eram obrigadas a casar com quaisquer homens que as quisessem. Ou seja, como em várias “notícias”, o Estado havia “socializado” as mulheres. Ao mesmo tempo, divulgava-se que não haveria mais nomes de famílias, pois as pessoas passariam a ser identificadas por números. Daí para os comunistas comerem criancinhas foi um passo.


[4] As considerações a seguir são extraídas de minha tese de doutorado O fantasma do medo: o Rio Grande do Sul, a repressão policial e os movimentos sócio-políticos (1930-1937). Campinas: IFCH-Unicamp, 2004. Tese de Doutorado (mimeo.), p.  535-9.


[5] Getúlio Vargas e o general Eurico Dutra divulgaram o Plano Cohen em 30/09/1937, mas na verdade ele foi forjado pelo capitão Olímpio Mourão Filho, a partir de um exercício em um curso de formação integralista sobre uma hipotética forma de defesa caso o Brasil fosse tomado por uma “invasão comunista”. Nesta “aula”, destacou-se o trabalho de um jovem militar integralista, de onde Mourão Filho se apropriou do “estudo” e levou até o alto comando. Sobre este episódio, ver mais em KONRAD, Glaucia Vieira Ramos. Os trabalhadores e o Estado Novo no Rio Grande do Sul: um retrato da sociedade e do mundo do trabalho (1937-1945). Tese de Doutorado. Campinas: Unicamp-IFCH, 2006, p. 35-7. A tradição golpista de Mourão Filho se repetiria de 1961 a 1964, como um dos principais articuladores militares da Ditadura Civil-Militar.


[6] A Lei de Segurança Nacional (LSN) e o  Tribunal de Segurança Nacional (TSN) foram criados em 1935 e 1936, respectivamente. O primeiro para aprofundar a repressão aos chamados crimes políticos e sociais e impedir a participação de militares na política partidária; o segundo, inicialmente, para julgar e condenar os integrantes ou apoiadores do Movimento Nacional-Libertador de 1935.


[7] Ver a íntegra da ata da reunião, em documento de cinco páginas, no Arquivo Eurico Dutra, ED vp 1936.01.07, doc. V-32, CPDOC/Fundação Getúlio Vargas.


[8] Aqui colocado em um dos sentidos dado por Karl Marx, em O 18 Brumário de Louis Bonaparte, quando uma classe dominante se torna incapaz de manter a dominação política na sociedade capitalista por meios parlamentares e constitucionais, processo que vinha acontecendo com o governo de Vargas mesmo antes do 10 de novembro, no qual a constante busca pela supressão da luta de classes era ponto de partida para a permanência do ditador, do seu grupo de apoio e dos próprios segmentos de classe que ele expressava na manutenção do poder político.


[9] Sobre o anticomunismo no Brasil ver MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho. O anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 2002. Sobre o mesmo tema, em relação ao Rio Grande do Sul, cf. RODEGHERO, Carla Simone. O diabo é vermelho: imaginário anticomunista e Igreja Católica no Rio Grande do Sul (1945-1964). Série Ciência História. Passo Fundo, Ed. da UPF, 1998.

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