A China e o “conceito científico de desenvolvimento”

A proposta de inclusão nos estatutos do Partido Comunista da China (PCCh) – ocorrida no último dia 17 de setembro – da idéia de “conceito científico de desenvolvimento” marca a conscientização, por parte de seus dirigentes, da necessidade de uma nova form

Do ponto de vista ideológico, é bom salientar que tal emenda aos estatutos do PCCh, a ser aprovado no 17° Congresso de outubro próximo, apesar de não conferir ao “conceito científico de desenvolvimento” o mesmo status do Marxismo-Leninismo, do Pensamento de Mao Tsétung, da Teoria de Deng Xiaoping e das Três Representações, coloca-o em destaque como conseqüência prática das inovações teóricas ocorridas desde o 16° Congresso. Assim sendo, da mesma forma como as “Três Representações” são vistas como um “importante pensamento”, o “conceito científico de desenvolvimento” é colocado como “o mais importante objetivo estratégico” (1).


 



Legitimidade política


 


O objetivo desta proposta é o da contínua busca de legitimidade política ao PCCh. No passado, esta legitimidade residia (ainda reside) no papel cumprido pelo PCCh à libertação nacional e social. Em fins da década de 1970, dados os imensos desafios e a perda de prestígio após a trágica Revolução Cultural, o trabalho do PCCh passou a centrar-se em formas de maximizar o desenvolvimento econômico. Aos chineses, o desenvolvimento econômico acelerado era (e é) o único meio plausível para o PCCh cumprir os seus objetivos e promessas anunciadas a 1° de outubro de 1949. Para isto, e corretamente, a idéia da centralidade da continuidade da luta-de-classes sob o socialismo teve de ser revista e disto resultou a inclusão – em 1997 – nos cânones do PCCh – da “Teoria de Deng Xiaoping da Construção do Socialismo com Características Chinesas”. A história demonstrou a justeza desta mudança de foco.


 


O fim da URSS, o recrudescimento do imperialismo norte-americano no mundo e o redesenho das classes sociais chinesas após 1978 levaram os dirigentes chineses, notadamente Jiang Zemin, a elaborar o chamado pensamento das “Três Representações”. Também foi uma adequada resposta ao fato de as reformas econômicas chinesas terem criado novas oportunidades, carreiras e estilos de vida. Tais mudanças concretas – até certo ponto – podem vir a divergir do antigo ideal patriótico (“uma China, uma cultura”) típico das elites confucianas e seguido pelos dirigentes da República Popular. Retornando, conforme já dedilhado em oportunidade anterior, as “Três Representações” indicam que o PCCh deve ser representante 1) do que exige o desenvolvimento das forças produtivas avançadas; 2) do rumo pelo qual há de marchar a cultura avançada na China e 3) dos interesses fundamentais das mais amplas massas populares.


 


Atualmente, o PCCh tem sido afrontado por outros tipos de demandas políticas capazes de colocar em xeque seu status político. Trata-se de demandas em torno de soluções para grandes contradições surgidas como síntese de um processo único na história de uma nação com as dimensões territoriais e populacionais da China. Num outro nível de abstração, são candentes novos ajustes institucionais para a manutenção da harmonia entre uma superestrutura de poder popular e uma cambiante base econômica.


 


É sob essa ótica histórica que se deve analisar a inclusão da idéia de “conceito científico de desenvolvimento” nos estatutos do PCCh. Para tanto, faz-se necessária uma vista em torno dos problemas postos à atual geração dirigente do país.



 


Grandes desafios sociais, naturais e territoriais


 


No início deste século a China realizou, por fim, o maior desejo desde os reformistas do final do século 19, de tornar a China novamente um país rico e poderoso. Porém, nada ocorre sem percalços e o processo de desenvolvimento, que para muitos é um mar de rosas, sem conflitos ou contradições, é na verdade movido por contradições, assim como qualquer processo.


 


Sendo a contradição o motor primário de qualquer processo social, não é de se admirar que inúmeros desafios aguardavam a geração que chegou ao poder do PCCh e da República Popular em 2002. Dentre eles, valem destaque: 1) as grandes disparidades de renda; 2) as grandes disparidades territoriais; 3) a necessária construção de um sistema previdenciário que substituísse o anterior, centrado nas empresas estatais; 3) a necessária construção de um sistema competente em saúde e educação, notadamente no interior pobre do país; 4) ajustes macroeconômicos necessários ao controle do próprio processo de desenvolvimento em si; 5) dar cabo a uma ampla reforma nas obsoletas e deficitárias indústrias de base situadas no nordeste do país; 6) atendimento das crescentes demandas camponesas; 7) o combate à corrupção endêmica e 8) a imperiosidade de um olhar mais atento e firme sobre a explosiva questão ambiental.


 


Ora, se de um lado as pressões internas redundaram num aferramento ideológico e um combate implacável à corrupção (com direito à destituição do prefeito da maior cidade chinesa, Xangai, algo inimaginável à nossa realidade), por outro, era mister um olhar diferente ante o próprio conceito de desenvolvimento. Os fatos de a China já ter adentrado em muitas cadeias produtivas no que se convencionou chamar de “3° Revolução Industrial”, muitas empresas estatais já estarem competindo em pé de igualdade com oligopólios mundiais e sua renda per capita ter ultrapassado a casa dos US$ 1 mil, demonstram que o desenvolvimento chinês deixou de ser quantitativo para ser qualitativo. Trocando em miúdos, grandes investimentos deixam de ter a capacidade de geração de renda e produto como antes, pois cada vez mais novas tecnologias poupadoras de mão-de-obra vão sendo internalizadas ou engendradas. Novos campos de acumulação faziam-se necessários na mesma medida em que se aumenta a produtividade do trabalho.


 


No campo social, a desarmonia entre o nível de desenvolvimento das cidades e do campo é cada vez mais visível na medida em que as atividades secundárias e terciárias vão incorporando um número cada vez maior de contingentes em relação às atividades primárias, menos rentosas em comparação às demais atividades. Exemplificando de forma concreta, em 2006 os rendimentos camponeses tiveram aumento de 7,4%, enquanto que nas cidades foi de 10,4%. Revoltas camponesas alastraram-se pelo país na segunda metade da década de 1990 por motivos vários, que vão desde a corrupção de funcionários do nível da aldeia à invasão de terras de plantio por novos projetos industriais e urbanos.


 


Agrega-se a isto o fato de apesar de as reformas econômicas terem liberado energia sob a forma de iniciativas individuais e empresariais, o descompasso de renda exacerbou-se na década de 1990 muito em virtude do sucesso de milhares de iniciativas empresariais, mas também pela queda de rendimentos de milhões de famílias dependentes de empregos em empresas estatais deficitárias e que foram afetadas pelas reformas financeiras de Zhu Rougji do segundo semestre de 1997.


 


Sob o ponto de vista ecológico, em adição ao fato de a China ter reproduzido um esquema tradicional de industrialização seguido por outros países no passado, mais a transferência de milhares de unidades produtivas do centro do sistema para a China, acarretou em pressão sobre seus escassos recursos naturais. Exemplo disso é o fato de apesar de a China ser um dos maiores produtores de petróleo do mundo, desde 1993 o país é obrigado a importar esse fóssil. O sinal de alarme há muito tempo já foi disparado. Atualmente 70% das águas subterrâneas chinesas estão contaminadas, nos últimos 10 anos as áreas de cultivo foram reduzidas em 5% e atualmente das 20 cidades mais poluídas do mundo, 15 são chinesas (2). Apesar de contar apenas com 4% das águas doces do mundo, a China consome 15%. É responsável ainda pelo consumo de 28% do aço e 50% do cimento do mundo (3).


 



Surgimento do conceito


 


O “conceito científico de desenvolvimento” foi introduzido por Hu Jintao em 2003 como contraponto às grandes disparidades sociais, à deterioração do meio ambiente e à crescente utilização de recursos naturais. Como temos atestado, o diferencial desta geração com relação à anterior está na consciência dos problemas surgidos do processo de reformas e da necessidade de unificar todo o PCCh em torno do cumprimento de tarefas que ponham termo a determinadas contradições sociais sob o preço da desintegração do seu próprio poder e da estabilidade social e unidade nacional e territorial chinesa.


 


Ora, o “conceito científico de desenvolvimento” pode ser decifrado a partir de uma visão prática de como os chineses historicamente enfrentam seus óbices. Pode ser visto, num outro campo de análise, como a consolidação não do planejamento como um fim em si mesmo, e sim da indigenização de novas e superiores formas de planejamento, ou o mesmo planejamento, agora levado às últimas conseqüências e conectado com outro objetivo estratégico elaborado pela atual geração relacionado à construção de uma “sociedade socialista harmoniosa”, numa clara alusão ao fortalecimento de valores morais confucianos.


 


Isto requer uma ampla coordenação do desenvolvimento, não mais como algo a se perseguir de forma cega e alheia a contradições, e sim como um objetivo coordenado com a necessária reestruturação econômica do país de forma que uma harmonia entre os diferentes setores da economia seja plausível.


 


Assim sendo, o “conceito científico de desenvolvimento” pode ser tanto “um mais do mesmo” do que Marx chamou de superação da anarquia da produção – porém – agora adaptada às recentes demandas chinesas, para quem milhares de cientistas têm sido chamados para a elaboração de soluções de problemas contemporâneos pós-1978, ou algo mais simples, sem ser simplista, que se sintetiza na busca de um desenvolvimento coordenado entre sua rapidez, estrutura, qualidade e eficiência.


 


 
Resultados preliminares


 


Uma série de medidas já expostas por mim em outras oportunidades dá conta da capacidade do atual grupo dirigente chinês em enfrentar seus reais problemas. Aprofundaram-se investimentos no oeste do país, um sistema de educação primária e secundária juntamente com o aparelhamento de um sistema previdenciário e de saúde pública está sendo implementado e impostos recolhidos aos camponeses há mais de 2.000 anos foram abolidos. O resultado imediato desta política foi o início da recuperação das colheitas agrícolas que entraram em queda acentuada a partir de 2000 e passaram a recuperar o passo em 2003, ano em que foram colhidas 464 milhões de toneladas de grãos. Este número chegou em 2006 a 497,4 milhões de toneladas (4).


 


Tais medidas encampadas pelos chineses terão com grande impacto de médio prazo, no que cerne a uma mais eqüitativa distribuição territorial e social da renda nacional.


 


O enfrentamento da questão ecológica com o programa de substituição do carvão mineral e o petróleo por gás natural, energia hidrelétrica e nuclear resultou – no primeiro semestre deste ano – em decréscimo de 0,8% de energia utilizada para cada 1% de crescimento do PIB com relação ao mesmo período do ano anterior (5). O tensionamento em torno desta problemática levou o Conselho de Estado a elaborar o 1° Plano Qüinqüenal de Proteção ao Meio-Ambiente aprovado no dia 25 de setembro último. O principal objetivo deste plano é o de reduzir em 20% a utilização de determinados poluentes para cada 1% do crescimento do PIB e em 10% a utilização de poluentes de maior nocividade (6).


 


No que cerne ao efetivo controle macroeconômico por parte do poder central, atesta-se que na década de 1990 uma série de construções ditas “duplicadas”, ou em reles palavras, “fora do planejamento”, tiveram lugar nos setores de aço, cimento e alumínio, acarretando em grandes prejuízos financeiros e sociais. Em contrapartida, com sucesso, o governo tem aumentado a taxa de depósito obrigatório de instituições financeiras, o que diminuiu em 19% – no presente ano – o fluxo de crédito para essas indústrias, expressando assim um maior controle por parte do governo dos investimentos em ativos fixos (7).



 


Menos pessimismo


 


Como se pode perceber, não são pequenas as dificuldades no percurso chinês no rumo da construção de uma nação socialista, moderna, próspera e democrática. Mas nos atenhamos ao fato de que o sucesso atestado da política de Reforma e Abertura inaugurada em 1978 demonstrou que os chineses e seu partido dirigente acabaram por encontrar meios e maneiras de lidar com seus próprios problemas. E a melhor maneira para isso é o de encará-los, afinal já nos ensinava Marx, “o homem não cria problemas que ele mesmo não possa ter capacidade de resolvê-los”.


 


As seqüentes transformações institucionais e, também, de seus arcabouços teóricos é demonstração sistemática desta capacidade em lidar com ventos contrários. E a implementação do “conceito científico de desenvolvimento” e seus resultados preliminares são prova concreta desta tendência. Neste rumo de superação de contradições, a China adentra o século 21 como a candidata natural de ocupar o posto de maior potência econômica do mundo. E com capacidade de mudar o curso natural da barbárie que impera em nosso mundo.


 


Com um passado singular, os chineses terão um futuro único. Isto serve para demonstrar duas reflexões: a primeira, relacionada à não mimetização de modelos prontos, no máximo a adaptação, pois historicamente o povo chinês, sempre muito cultivo, acabou achando as soluções para seus problemas à sua própria maneira. Isso se remete diretamente tanto às tentativas de “ocupação cultural” pelo ocidente, quanto à pueril visão do que é o socialismo e como construí-lo adotada por centenas de intelectuais, muitos deles alojados em nossas pobres escolas de sociologia do eixo Rio-SP.


 


E a segunda, que pode parecer messiânica, mas não é na medida em que a ciência histórica a comprova, relacionada ao fato do futuro trágico reservado à humanidade (relacionado principalmente à questão ambiental) e a participação da China neste “fim de mundo”. Sou menos pessimista: acredito que a capacidade de sobrevivência e resignação demonstradas pelos chineses em mais de cinco mil anos de história é um grande fator de ânimo e de crença num futuro muito mais colorido, vivaz, feliz…


 


E socialista.


 


Notas:


 


(1) “‘The Scientific Concept of Development’, The Rule of Law and the Proposed Amendments to the Constitution of the Chinese Communist Party”. Disponível em: http://lcbackerblog.blogspot.com/2007/09/scientific-concept-of-development-rule.html


(2) WATTS, Jonathan: “100 Chinese Cities Faze Water Crisis, Says Minister”. The Guardian. 08/07/2005. Disponível em: www.guardian.co.uk/international/story/0,,1501312.html


(3) “'Scientific Concept' Key to Strategic Plan”. Disponível em: http://www.china.org.cn/english/GS-e/144516.htm 10/10/2005.


(4) JABBOUR, E.: “A China e a ‘nova luta pelo socialismo (4)’”. Disponível em: http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=24406 05/09/2007.


(5) “Top legislator Stresses Scientific Concept of Development”. Disponível em: www.china.org.cn. 14/09/2007.


(6) “China approves five-year plan for environment protection”. Disponível em: http://news.xinhuanet.com/english/2007-09/26/content_6797209.htm 26/09/2007


(7) “China Questions and Answers”. China has recently advocated a “scientific concept of development.” What is the concept aimed at? What problems can it solve? Disponível em: http://www.china.org.cn/english/features/Q&A/161758.htm

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