“Encontro com Milton Santos”

Um incentivo à reflexão sobre o mundo necessário. O Documentário do brasileiro Silvio Tendler sobre o geógrafo baiano Milton Santos provoca reflexão ao mostrar a luta cotidiana dos grupos, povos e países marginalizados pelo processo de globalização

Milton Santos se foi em 2001. Seis anos depois, o diretor Silvio Tendler transforma a entrevista feita com ele, semanas antes de sua morte, no documentário: ”Encontro com Milton Santos ou o Mundo Global Visto do Lado de Cá”. O “Lado de Cá” é o do excluídos, dos não integrados ao processo de globalização imposto pelo 1º Mundo. E ganham no filme voz e rosto, sem maquiagem. Seus movimentos afloram em manifestações na Índia, no Brasil, no Equador, na Argentina, com a virulência própria dos marginalizados. Provam que estão vivos e são capazes de indicar caminhos. Incentivam a reflexão. Provocam em quem os ouve a sensação de que algo se move nos subterrâneos da estrutura social das nações onde (sobre)vivem. Junto vem a certeza do entrevistado: ”É deles que virão as mudanças”.


 



                  


Durante os 89 minutos de duração do filme, Milton Santos desfila, com lucidez, os percalços, as incertezas e as imposições das classes dominantes. Faz afirmações peremptórias: ”Jamais houve democracia no planeta”. “Não há liberdade”. Debate como intelectual, não como líder que, no fim da vida, estava se tornando. Sua contribuição para o debate de idéias, de propostas, de temas terminou por identificá-lo como o intelectual saído da academia que refletiu sobre a nova forma de dominação, estruturada pelas corporações intercontinentais e seguida, inclusive, por seus países de origem. Uma globalização que aparentemente integra nações e segmentos sociais, mas que, na verdade, exclui os menos desenvolvidos e despreparados para o embate cotidiano. Continuam a explorá-los, controlando suas riquezas naturais e largas faixas de seu mercado interno, além de pagar baixos salários aos seus trabalhadores.


 


“Jamais houve democracia ou liberdade no planeta”


                  


A aparência de avanço na produção de veículos da General Motors em diversos países do 1º e 3ª Mundo confirma a divisão internacional de mercado e de trabalho. Nesta nova estrutura cada país cumpre um papel nem sempre condizente com suas potencialidades. Os blocos econômicos, como Alca e União Européia, tendem a determinar, geograficamente, o que cada um deles deve produzir. E condenam, assim, seus trabalhadores a exercer o papel de mão-de-obra barata. Ou seja, continuam – países e trabalhadores – condenados à subalternidade e à dependência contínuas, sem direito a mudar de posição. Um destes papéis, talvez o mais humilhante, foi reservado à África, continente que, desde o século 16, vem tendo suas riquezas e povos exauridos até o estágio de miséria em que foi colocado pelas sucessivas potências que o dominaram – e ainda dominam.
                  


 


As exceções existentes em seu continente, casos da África do Sul, do Senegal, da Nigéria, ainda conservam bolsões de pobreza, difíceis de serem transformados em fontes de desenvolvimento. Situação idêntica é reservada à América Latina e à Ásia. Mesmo em se tratando de Brasil e Índia, nações emergentes, às voltas com elevados índices de desenvolvimento, as saídas não são fáceis. Há sempre compromissos fixados de fora para dentro por instituições globais de controle do fluxo de capitais, de mercadorias e de serviços. São o FMI, o Banco Mundial, o BIRD, o BIS, a OCDE, que executam as políticas ditadas pelas corporações intercontinentais e os países do 1º Mundo. E de maneira impessoal, desligada das necessidades de bilhões de pessoas da periferia do planeta. Nenhuma  das necessidades destas camadas são por elas considerada. Quando vão a Davos, na Suíça para trocar experiências, sobram para os países dependentes apenas migalhas.


              


 


Sharon Stone contribui  para ficar bem na foto


              


 


Numa cena que reflete bem o estágio degradante a que chegaram algumas nações dependentes; a atriz Sharon Stone faz um verdadeiro leilão para angariar fundos para um líder africano erradicar a praga, real, que assola seu país. Ela começa com um lance de U$S 10 mil e a eles são acrescentados outros mil, até surgir alguém que oferece U$S 50 mil dólares. Parece irreal, mas ocorreu. Alguém pode dizer que Sharon Stone lutou por uma boa causa, porém, não fez mais do que uma fiel pondo pratas numa sacola de coleta de dízimo durante uma missa ou um culto de domingo numa manhã ensolarada. Cumpre satisfeita a penitência, mas não resolve o problema do miserável. E trata-se apenas de boa intenção. Sharon Stone, enfim, “fica bem na foto”, quer dizer, na imagem do documentário de Silvio Tendler. Mas é humilhante.
             


 


Não menos degradantes são as imagens de africanos esqueléticos, das hordas correndo para pegar alimentos despejados por aviões da ONU, da mãe amamentando o filho em situação de penúria.  São cenas deletadas pelas emissoras de televisão, acostumadas a só editar o que não causa náusea ao telespectador durante seu almoço ou jantar. Tanto que milhões de pessoas já não lhe dão atenção, pois convivem com a miséria nos centros metropolitanos. Noutras seqüências, não menos estimulantes, surgem os movimentos sociais bolivianos e zapatistas. Principalmente os liderados por Evo Morales, dizendo porque ocupam as ruas. Querem cessar a exploração de suas riquezas e melhorar suas vidas. Saíram vitoriosos.


             


Lideranças populares mostram força nos fóruns internacionais


            


 


É neste momento que se compreende a urgência que eles têm para recuperar o tempo perdido. Radicalizam. Criam novas formas de luta. Um deles; ressurge no Fórum Social Mundial e num encontro que discute a preservação dos mananciais de água. Enfrenta o representante do FMI, fala à mídia com desenvoltura. Sabe, enfim, da força que brota das ruas bolivianas. Outras lideranças aparecem expondo suas idéias. Têm cores variadas. São indianos, negros, místicos, pobres, mas ainda assim vigorosos. Mostram suas faces, sua indignação, de modo aberto.Assim, como os sem terra e os sem teto. Ocupam os espaços que lhes são negados e saem em busca do que lhes roubaram: a dignidade, o direito a terra, à moradia, ao trabalho e a uma vida digna.
             


 


O interessante é que foi nesse processo de globalização e de falência das experiências neoliberais na América Latina que países, como Bolívia, Venezuela e Equador, gestaram amplos movimentos de massa, que chegaram ao poder pela via eleitoral. Mas também possibilitaram que lideranças democráticas e de esquerda derrotassem as forças conservadoras no Brasil, na Argentina, na Nicarágua e no Uruguai. Cada um a seu modo executa políticas de cunho democrático, buscando preservar o espaço nacional, com o Estado exercendo um papel tido como ultrapassado pelos neoliberais. Milton Santos chama atenção para o fato de que o Estado, sempre ele, tem ainda um papel a cumprir. Só ele pode mediar os conflitos e evitar a marginalização de amplos segmentos sociais, excluídos dos benefícios da “sociedade de consumo”.


               


 


Periferia no shopping: excluídos ocupam espaço da classe média


              


 


A seqüência mais elucidativa desse processo de exclusão e de como a classe média vê o povo é a que registra a visita que o grupo de moradores de um aglomerado da periferia do Rio de Janeiro faz ao Shopping da Barra. Ele chega; rapazes, moças, crianças, homens e mulheres, e vai entrando pelos corredores e lojas. Há todo um estranhamento. Os iluminados pelo sol diretamente no corpo se esquivam, olham de soslaio, no entanto, os marginalizados se deliciam com o espaço jamais visitado. Experimentam roupas, indagam sobre o preço e se sentam em cadeiras, em volta das mesas de uma lanchonete, que dividem com os habituais freqüentadores do shopping. A câmera mostra que pouca diferença há entre eles. São todos seres humanos; só os diferencia a tendência burguesa de dividir as pessoas segundo suas posses e poses. 
             


 


O único momento em que se respira em “Encontro com Milton Santos” é quando Tendler abre suas lentes para admirar o crescimento da China. Prédios gigantescos, belos, de arquitetura arrojada se multiplicam na paisagem urbana. As ruas e avenidas estão repletas de veículos e gente, muita gente, em suas coloridas roupas que nada lembram o costumeiro azul das túnicas do período pré-Deng Xiao Ping. E o entrevistado se desmancha em otimistas previsões. O futuro pertence à China, com seus incríveis 9% de crescimento ao ano. E seu socialismo, ainda pouco entendido, mas cujo resultado aparece às claras, com seus produtos inundando o mundo. Ele não sabe bem para onde a ebulição chinesa vai, porém não hesita em admirá-la. É o mínimo que pôde fazer em meio a tantos descaminhos. Algo teria que brotar dos escombros da exploração milenar a que foi submetido o país, cujo líder Mao tsé Tung, criou a “Teoria dos Três Mundos”, para explicar a posição dos países subdesenvolvidos na época da Guerra Fria.


             


 


China constrói sociedade exemplo para as nações do Terceiro Mundo


             


 


 


Nas décadas de 60 e 70, a China tentava sobreviver entre duas superpotências: União Soviética e Estados Unidos. Entrou em conflito armado com a primeira e, nos anos 70, apaziguou os ânimos geopolíticos com a segunda. Criou as Zonas Especiais de Exportação (ZPEs), semente de sua atual expansão econômica. Uma tática incompreendida na época, mas que hoje lhe rende gigantescos dividendos. Um “socialismo de mercado” ou de “face chinesa”, como se quiser, pois, sobre os escombros da Revolução Cultural brotou uma cultura, que assombra pela força e potência de suas criações. Chegou com os filmes de Yang Zhimou e Chan Kaige e hoje se multiplica em obras várias que discutem a mutação do país de forma aberta e ousada. Aos poucos outras facetas culturais emergem com a literatura, as artes plásticas, o teatro, a dança e o esporte.
              


 


 


Uma lição para se refletir em pleno refluxo das concepções revolucionárias. Milton Santos nada avança neste sentido. A revolução chinesa tem mesmo uma face diferente de todas as transformações sociais já registradas pela história. É assim mesmo nenhuma mudança se parece; não se repete modelos ou há fórmulas para a revolução socialista. Cada país é um continente, cada continente é o espaço a ser moldado pelo povo que o conquistou. Dito assim; parece que o documentário de Tendler insurge-se contra o estabelecido. Pelo contrário, sofre influências de várias escolas: a do registro direto dos fatos, a do depoimento dos envolvidos no processo de construção da obra, a da montagem dos registros existentes para estruturar sua tese.  Tem vozes e faces diversas, mas sua câmera está sempre fixada nos marginalizados e na face ainda vivaz do geógrafo que ensinou a europeus e brasileiros a pensar na globalização como “globalitarismo”, ou “totalitarismo global”.


              


 


Marginalizados mostram sua face real no filme


               


 


Refere-se a todo instante às elites, às classes dominantes, com destaque para as grandes corporações; apoiadas que são por seus países de origem, na maioria nações imperialistas. São eles, cheios de mazelas que datam da época das grandes descobertas marítimas, no século XVI, mas herdeiros dos impérios antigos, que cruzaram mares e oceanos para dominar outros povos, como gregos, romanos, persas, egípcios e mouros. Nada de novo surge, então, só mudaram as formas de dominação. “Encontro com Milton Santos” provoca, assim, inusitada ebulição reflexiva. Tem-se a sensação de que se está em outro planeta, uma vez que os temas ali expostos não estão na pauta política e seus personagens, reais, foram excluídos também da grande mídia e dos corredores do poder. Difícil é dizer que não os vêem, dado que sempre aparecem na mídia como caso de polícia. Diferente do que mostra o filme, que os flagra em ação, em luta por seus direitos. Este é seu mundo real.
                  


 


Outra constatação ao se ver “Encontro com Milton Santos” é entender o papel que o documentário assumiu hoje nas artes visuais brasileiras. Tem uma força que a obra de ficção não tem. Sua matéria prima é bruta, como a mostrada por Silvio Tendler. Às vezes têm-se a impressão de que suas imagens deveriam ser melhor trabalhadas, com melhor enquadramento, a luz no lugar certo. Nada disto ocorre por outras razões. Talvez a urgência de registrar o grupo de ficcionistas da periferia de Brasília ou de ordenar a sucessão de imagens que explode na tela, o tenha impedido de trabalhá-las com perfeição. Nada disso, porém, o impede de contribuir para o debate sobre as conseqüências da globalização a partir das reflexões e palestras do geógrafo baiano Milton Santos.


                  


 


Milton Santos identifica poder das corporações


                  


 


Este mesmo, em sua apresentação, se identifica como intelectual negro, independente, sem crença religiosa, grupo social, inclusive sem partido. Poderia surgir daí um franco-atirador, alguém que, ao descompromisso com uma organização partidária ou corrente de pensamento – ele se revela marxista -, pudesse se posicionar para atirar por todos os lados. Ele, no entanto, sabia mirar e o momento certo para atirar. E o fazia em direção aos reais causadores da miséria, do analfabetismo, da fome e do subdesenvolvimento: as grandes corporações, as elites de todos os matizes, credos e caixas-fortes, os países do 1º Mundo e os grupos que nas sombras controlam riquezas e mentes pelo planeta afora. Assistir ao filme que revela parte de suas idéias é obrigatório para os que ainda conseguem se indignar e ver nos marginalizados não uma ameaça, mas um aliado para as transformações sociais e políticas ainda possíveis e necessárias.


 


“Encontro com Milton Santos – ou o Mundo Global Visto do Lado de Cá”. Documentário. Brasil. Duração: 89 minutos.

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