“Querô”: Sem Recompensa

Diretor brasileiro Carlos Cortez usa universo de Plínio Marcos para mostrar mundo dos adolescentes marginalizados pela sociedade brasileira

No universo de Plínio Marcos, ator e dramaturgo santista, os marginalizados estão enredados nas teias de uma sociedade que os trucida sem lhes dar chance de sobrevivência. Prostitutas, assaltantes, ladrões, homossexuais vivem às voltas com situações que muitas vezes não criaram, mas que se tornam, pouco a pouco, parte integrante de suas vidas. Em “Navalha na Carne”, “Dois Perdidos Numa Noite Suja” e “Abajur Lilás”, suas mais conhecidas peças, paredes, luzes e móveis elucidam mais seus desenganos que a enxurrada de palavras brutas e pesadas que jorram de suas bocas. Se existe esperança para eles, ela se esboroa na falta de crença deles mesmos, em escapar do que os aprisiona. Com um universo assim não é de se estranhar que o garoto cuja vida foi gerada nas sombras da marginalidade do cais santista termine por desacreditar de sua própria humanidade, como em “Querô”, de Carlos Cortez, baseado no livro “Reportagem Maldita – Querô”, de Plínio Marcos. Seu grito primal, brotado de uma dor dilacerante, perturba mais que a violência que pontua o filme em algumas seqüências.
              



Desnorteado, ele vocifera contra a mãe que o abandonou, impreca contra o mundo que o ignora e o remete a becos, ruas molhadas, escadas e corredores sujos, cômodos estreitos, janelas e varandas cheias de roupa. Compreende-se que milhares de adolescentes, iguais a ele, vivem nas ruas e passam por instantes de puro horror de viver. Não receberam carinho da mãe, trocaram carícias com o pai e os irmãos e perceberam uma realidade menos crua, do que a que o cerca. E não têm, devido a isto, como crer numa existência para além do que o cerca. Enxerga, assim, apenas uma saída: confrontar-se com o que o perturba, na tentativa de exterminar aqueles que o empurram, cada vez mais, para a violência, o ódio, a vingança. Uma vingança que destoa do acerto de contas, pois não se trata de liquidar alguém para sentir-se satisfeito, sim de matar para livrar-se do que o atormenta.


                 



Universo de Plínio Marcos impregna o filme


              


Um tormento gerado pela marginalidade que o impregna e não pela convivência com jovens delinqüentes, homossexuais e prostitutas; todos vítimas como ele. Todos se tornaram prisioneiros de uma estrutura que não os expele, pelo contrário, os atrai para suas entranhas para devorá-los sem que o percebam. E não se pode falar de marginais, de bandidos, seres que tomaram a si a iniciativa de caminhar às margens de uma estrutura que se pretende ética e moralmente sã. São marginalizados em toda sua extensão. Esta consciência se entranha em Querô (Maxwell Nascimento) quando ele descobre o poder da afeição, do carinho e da paixão. Há, sim, um mundo diferente em que a busca não é pela sobrevivência pura e simples, escapar aos achaques da polícia, a curra numa cela da Febem, à necessidade de ter uma arma, para se sentir poderoso. Neste novo mundo, há crença, confiança, palavras amáveis e quem as profere não tem outra intenção senão de fazer o bem.
             



Nesta relação com pessoas nas quais passa a acreditar; ele percebe a necessidade de construir novas visões, novos espaços. E encontra aliados na afro-descendente que o abriga, a adolescente-evangélica por quem se apaixona e nos amigos conquistados num trabalho diferente do qual se acostumou. Circula com desenvoltura, pensa no outro ser e se relaciona melhor com o mundo que o cerca. Este, no entanto, não é seu espaço; aquele em que a esperteza, a voz alta, a habilidade com uma arma e a capacidade de escapar às armadilhas do inimigo são necessárias. No mundo novo, por ele agora habitado, tem de navegar em águas menos agitadas; nem por isto menos impositivas. Estas visões provocadas pelo enredo que segue em linha reta têm muito do filme policial norte-americano clássico. Neste uma ação provoca a derrocada do marginal, este cumpre uma sentença e depois regressa à sociedade, e tenta, enfim, regenerar-se. Seu passado, porém, o impede de viver longe do crime. Ele então se vê enredado, de novo, no crime, e este o leva a um desfecho prenunciado.


             



Passado o impede de recomeçar vida comum


             


Em “Querô” esta situação se faz presente na transição do personagem, da marginalidade para a tentativa de regeneração e, por fim, a compreensão de que o convívio com “pessoas de bem” está distante de sua realidade. Não é que ele não queira, o quer, o redemoinho do crime, seu passado, é que o impede de recomeçar em bons termos. Até chegar a este ponto; Querô perambula por delegacias, celas, ruas sombrias, obtendo seu aprendizado de vida e de delinqüente. Não é um aprendizado qualquer; Querô é adolescente, nasceu na área do meretrício do cais, e, acaba na Febem. O filme é, portanto, sobre um menor que circula pelo inferno da instituição que, supostamente, deveria recuperá-lo para uma vida saudável. Seu aprendizado, pelo contrário, se dá de forma inversa; ao invés de aprender como integrar-se à sociedade ensinam-lhe a reagir em condições totalmente adversas. Vira um animal em toda a sua extensão.



             


Estas seqüências são as menos elucidativas de “Querô”. Não têm o impacto das cenas veiculadas pelos jornais da TV. Perdem com isto a veracidade. Tornam-se meras cenas de prisioneiros insurgindo-se contra as más condições carcerárias. Mesmo que os personagens sejam menores de idade. Ao que parece, o diretor Cortez os quer equiparar aos adultos, com as mesmas responsabilidades. Eles não discutem, como o fazem seus congêneres reais, o Estatuto da Criança, a necessidade de tratamento melhor na cela e no pátio da Febem; apenas se revoltam. O garoto Querô só provoca emoção ao deixar a “prisão da Febem” e regressar às ruas, aos becos, bares, ao cais, às ruas. Então, é visto como uma criança perdida em meio a barcos, navios, balsas. Não um jovem perigoso, capaz de matar sem nenhum remorso. É neste momento que a crítica chegou a falar em lirismo. Mas nada há de lírico numa existência em que circular por belas paisagens não é nela está integrado.


            



Personagem não se integra a nenhuma paisagem


         


''Queró'' não se integra a nenhuma paisagem. Ele não pertence a ela. Está ali como alguém que, quando em trânsito ocupara, momentaneamente, um espaço. Mas não o desfruta. A beleza do ambiente então se perde, torna-se supérflua. Resta, assim, a brutalidade. A mesma vista em obras mais viscerais, contundente, que mergulharam fundo na infância, na marginalidade e no desencanto: “Pixote, a Lei do Mais Fraco”, de Hector Babenco, e “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles. Diante destes, a visão de Marcos/Cortez é romântica, piedosa. Em comum com os garotos destes filmes só a capacidade de matar sem remorso. “Querô” é mais próximo, como já dito, dos policiais americanos das décadas de 40 e 50, que das obras citadas. Principalmente quando lembra a máxima de que a prisão é uma fábrica de bandidos. E da ausência de espaço para redenção, porque ele deve ser punido no final. Babenco e Meirelles lançaram mão de desfechos criativos, mais próximos da realidade.



         


 “Queró”, porém, é um filme a que se assiste com atenção, às vezes com sofreguidão dada às situações enfrentadas pelo garoto. No entanto, não provoca impacto ou vai além do sabido pela platéia. Talvez porque o menor marginalizado como tema não provoque mais tanto impacto, embora devesse ser prioridade de toda a sociedade. Esta se acostumou a ele, a sua presença nas ruas, à falta de proteção à infância, à falta de perspectiva para seus pais e para eles mesmos e, sobretudo, à freqüência com que surge nas salas de milhões de lares brasileiros, via televisão, em situações violentas. E em todas as camadas sociais: na alta burguesia quando queima índio em ponto de ônibus, no meio operário ao arrastar criança pela via pública, durante roubo de carro, e na classe média ao roubar apartamentos.


         



Repetição da violência embrutece sensibilidade


          



Vê-se que a repetição cria costume, embrutece a sensibilidade, desvia a atenção e cria a imagem de que ele é parte do que deve ser extirpado da sociedade, quando esta é quem os cria e os abandona. E até isto já é compreendido pela população que, no entanto, não reage à altura. Faltam então ações políticas para, de fato, evitar que toda uma geração se perca nas estatísticas de marginalizados transformados em cadáveres. Não pode ser esta uma política – a de deixar o próprio crime resolver os problemas da marginalidade, pois esta não o soluciona, pelo contrário, o agrava porque não se defronta com políticas de Estado em suas comunidades.  O desfecho de “Querô” contribui para a necessidade de que algo precisa ser feito e rápido. O que já é muito para um filme.


 



“Querô”. Drama.Brasil. 2007. Duração: 90 minutos. Direção/roteiro: Carlos Cortez. Baseado “Reportagem Maldita – Querô”, de Plínio Marcos. Elenco: Maxwell Nascimento, Maria Luisa Mendonça,Aílton Graça.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor