“A Odisseia dos Tontos”: Trapaças neoliberais

Em ritmo de comédia dramática, cineasta argentino Sebastián Borensztein usa a realidade e o riso para denunciar as trapaças dos planos econômicos

O riso se equivale à vingança neste “A Odisseia dos Tontos”. Não ditado pela violência gratuita, o sentido aqui outro. O cineasta argentino Sebastián Borensztein (22/04/1963) se vale do livro “A Noite na Usina”, de seu compatriota e co-roteirista Eduardo Sacheri para denunciar as tramoias neoliberais do Governo Carlos Menem (08/07/1989-10/12/1999). Não só dele, também de seu ministro da Economia, Domingo Cavallo (21/07/1946), criador do “Plano Conversibilidade”, o Coralito, em 1997. A exigência era converter todo peso em dólar, tornando-o a moeda do país.

Tema sem dúvida árido, não para a dupla Borensztein/ Sacheri. Ao invés de estruturar sua narrativa como drama-político, optaram pela comédia dramática. Isto lhes deu liberdade para construir personagens a justificar o título de tontos ou bobos em português. A propaganda enganosa do Governo Menem levou vários segmentos dos trabalhadores e da classe média argentina a acreditar que o Coralito iria tirar o país da crise econômica em que fora mergulhado. Esta foi a justificativa dada por Menem (08/07/1930) e Cavallo para dolarizar a claudicante economia do país.

Assim o tema central do filme é o esforço dos trabalhadores argentinos para sobreviver em meio à crise econômica. Enquanto muitos optavam pela sobrevivência individual, o ex-jogador de futebol Férmin Pelasio, (Ricardo Darin), decidiu reunir seus amigos para montar uma cooperativa. Cada um iria contribuir na medida de sua experiência, pois a maioria beirava à terceira idade. E para capitalizar o negócio, o dinheiro viria de suas parcas economias. Só a lojista Carmen e seu filho Herman, os irmãos Cláudio e José Gomes e Pelasio, sua companheira Lídia e o filho deles Rodrigo (Chino Darin) podiam contribuir com valores mais altos.

Trabalhador não recebe educação financeira

Com a certeza de que as finanças do pais estavam sob controle da equipe econômica, Pelasio depositou todo capital da cooperativa num banco. As trocas de experiências estruturadas pela dupla Borensztein/ Sacheri mostra-o confiante nas garantias dadas pelo gerente. Mas é também nestas sequências que ela trata da relação do cidadão comum com a estrutura financeira do país.

A maioria dos trabalhadores não recebe educação financeira para dominar o vocabulário e as leis que regulam o sistema econômico-financeiro e as repentinas medidas impostas pelo Governo Federal. Daí Pelasio ser um deles, pois acredita no que lhe dizem.

Deste modo, quando em 1997 Menem impõe a dolarização do sistema financeiro e, portanto, da economia argentina, todas as reservas de Pelasio e seus sócios proletários se esvai. O choque causado pela súbita perda o faz buscar explicações do banco sobre o que realmente ocorreu. As respostas são vazias e protocolares, pura enganação. Enganado, Pelasio e Lídia terminam se envolvendo em grave acidente de trânsito. A câmera de Borensztein capta as reações de seus sócios mostrando-os sem ter a quem pedir ou sair em busca de apoio das autoridades federais do país.

Esta construção dramática diz muito sobre as manipulações que tornam os trabalhadores reféns dos pacotes econômicos. São lançados como a solução para a crise financeira, a inflação e o déficit nas contas públicas do país, mas logo se tornam verdadeiras arapucas. Borensztein não se perde em explicações, encadeia sua narrativa de forma a chocar o espectador. Este, sim, assume toda a frustração de Pelasio e seus amigos pois seu cotidiano é idêntico ao do personagem na tela. Sua luta para construir outra forma de sobrevivência com o filho Rodrigo esboroa.

Na segunda parte do filme só há rancor e vingança

Se na primeira parte de sua narrativa, a dupla Borensztein/ Sacheri destaca o humor do anarquista Antônio e o companheirismo do grupo liderado por Pelasio, na segunda eles são tomados pelo rancor e a vingança. Surge então a trama central mostrando os trabalhadores serem surrupiados pelo banco privado e o Governo Menem nada fazer. Não sem razão o coralito longe de resolver os problemas das camadas desprotegidas da sociedade argentina mergulhou o país numa crise financeira que terminou por enfraquecer Menem e o próprio Cavallo.

A exemplo dos filmes que seu diretor-roteirista é mestre em construir complexas narrativas. Neste “A Odisseia dos Tontos”, Borensztein utiliza variadas técnicas de localização dos personagens centrais. A exemplo das panorâmicas, planos fechados e planos médios para identificar parte da trama em campo aberto. Há uma variedade deles nas escadas a levar ao subterrâneo e nele mesmo para desmontar a ardilosa armação de Manzi. Não são utilizados só para localizar uma ação e outra do filme, não sendo, portanto, decorativos. Fazem o filme avançar.

Além disso, a dupla Borensztein/ Sacheri divide a trama central em três subtramas: I – Pelasio e seu grupo buscam organizar sua vingança; II – O estelionatário e influente banqueiro Manzi continua influente no sistema financeiro e na sociedade argentina; III – Pelasio e seus sócios se mostram capazes de espionar o que Manzi continua a fazer para ocultar sua riqueza; IV – Pelasio infiltra seu filho e sócio Ricardo nas ocultas estruturas empresariais de Manzi. E a trama em fortes imagens termina por estimular o suspense e a vingança.

Manzi é vítima de suas artimanhas

O que era na segunda parte da narrativa tão só a denúncia da espoliação dos trabalhadores e da classe média argentina, na terceira envereda para o choque de classes. São os destituídos de poder e riqueza que montam o ardil perfeito para tornar a existência de Manzi literalmente um inferno. Não fica mais sossegado em lugar algum sem que o celular denuncie o toque do alarme em seu cofre secreto. É agora vítima de seus próprios golpes. A riqueza obtida através do dinheiro roubado dos proletários torna-se seu algoz.

Esta é parte moral deste “A Odisseia dos Tontos”. Como sempre o estelionatário, seja de que classe for, tem seu ponto fraco. Dele se serve Borensztein para desenvolver a sequência melhor estruturada nos 116 minutos da narrativa. Manzi se vê fragilizado e humilhado perante aqueles que ludibriou ao transformar o que seria a fonte de sustentação deles num pesadelo e na perda de uma vida. E Pelasio e seus sócios ao estarem diante de Manzi sentem-se vitoriosos pelo banqueiro não ficar impune e eles terem pego o que lhes é devido. Mesmo que o Governo Menem nada tenha feito.

Por fim, a quarta parte do filme mostra ao espectador que os planos financeiros salvacionistas impostos pelos governos neoliberais são formas de liquidar o patrimônio público e enriquecer ainda mais os conglomerados nacionais e multinacionais. Aos trabalhadores manuais e intelectuais só estão reservadas as perdas de seus direitos e a pressão para não se organizarem em entidades de classe. Só lhes restam ser vítimas de contínuo desemprego para aceitar baixas qualificações e serem o exército de reserva do capital.

Luta organizada pode ser mais benéfica

O desfecho de “A Odisseia dos Tontos” põe o espectador numa vastidão de terra abandonada ao sol. Nela só existem árvores amarelecidas, pois o especulador a deixou apenas para se valorizar. E Pelasio e Antônio, o anarquista gozador, a enxergam como área ideal para, enfim, terem onde seus sonhos possam se concretizar. Com isto, a dupla Borensztein/Sacheri atesta o quanto a luta organizada pode ser mais benéfica do que aceitar o populismo e o salvacionismo como solução para resolver o impasse dos trabalhadores manuais e intelectuais no liberalismo.

A Odisseia dos Tontos (La Odisea de Los Giles). Drama. Comédia dramática. Suspense. Argentina/Espanha. 2019. 116 minutos. Trilha sonora: Federico Jusid. Montagem: Alejandro Carrillo Penovi. Fotografia: Rodrigo Pulpeiro. Roteiro: Sebastián Borensztein/Eduardo Sacheri. Direção: Sebastián Borensztein. Elenco: Ricardo Darin, Chino Darin, Luiz Brandoni, Veronica LLinas, Daniel Arioz, Rita Cortese, Luciano Cazaux.

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