1939: o pacto de não agressão e a hipocrisia anticomunista

Sem surpresa, os oitenta anos do pacto de não agressão assinado em Moscou em 23 de agosto de 1939 pelos ministros do Exterior soviético e alemão, Molotov e von Ribentropp, deram ocasião à direita liberal e aos anticomunistas de todos os matizes (dos fascistas aos social-democratas) a mais uma operação ideológica visando a assimilar nazismo e comunismo, os dois classificados como “totalitários”.

A Romênia, os Estados bálticos e a Polônia emitiram declaração conjunta acusando aquele pacto de ter “condenado metade da Europa a décadas de miséria”. Como o III Reich foi aniquilado em 1945 pelo glorioso Exército Vermelho, as “décadas de miséria” a que a declaração se refere visam exclusivamente a União Soviética.

A declaração é descarada. Os Estados bálticos e a Polônia obtiveram independência no final da I Guerra Mundial, aproveitando a derrota da Alemanha e a desagregação do Império russo, colocando-se logo sob a proteção da França, principal potência europeia após a vitória sobre os impérios centrais em 1918. Para isolar a nascente República Soviética e manter sob controle a Alemanha derrotada, o primeiro ministro francês Clemenceau, com apoio de seu parceiro britânico, estabeleceu em fevereiro de 1919 um “cordão sanitário”, que se estendia da Finlândia e dos Estados bálticos, ao norte, até os países balcânicos, ao sul. Em 1920, a Polônia apoiou-se no cordão de Clemenceau, do qual fazia parte, para invadir a Rússia com ajuda militar francesa, ocupando a região dita Galícia oriental. A Romênia também usou o cordão para garantir a anexação da Bessarábia, que tomara da Rússia em 1918. O governo soviético, cuja prioridade era derrotar os exércitos contra revolucionários que pretendiam uns restabelecer o czarismo, outros a república burguesa, teve de aceitar essas importantes perdas territoriais.

Útil na conjuntura de 1918-1920 para manter os bolcheviques na defensiva, o “cordão sanitário” esgarçou-se quando, ainda em 1921, o governo britânico resolveu estabelecer relações comerciais com a Rússia e, mais ainda quando, em 16 de abril de 1922, a Alemanha sob o regime da Constituição de Weimar, assinou o acordo de Rapallo, que estabelecia relações diplomáticas e comerciais com a República dos Soviets. Lênin desempenhou papel importante nas negociações que levaram a este acordo entre as duas potências europeias mais prejudicadas pelo hegemonismo franco-inglês.

Em meados da década seguinte, a ascensão do nazismo, logo seguida pelo rearmamento acelerado e pelo expansionismo belicoso, mostraram que a extrema-direita hitleriana não se cingiria aos métodos terroristas de aniquilamento de seus inimigos internos comunistas e social democratas, mas pretendia construir, literalmente a ferro e fogo, o “Reich de mil anos”.

Interessados em lançar Hitler contra a União Soviética, os círculos dirigentes das grandes potências liberal-capitalistas fecharam os olhos para essas ameaças. Entre 1936 e 1938, deixaram o Reich nazista e a Itália fascista contribuir decisivamente para o esmagamento da República espanhola e, pelo pacto em Munique, permitiram que a Alemanha, a Polônia e a Hungria esquartejassem a Tchecoslováquia.

Não obstante, durante os onze meses que seguiram a traição liberal de Munique, os dirigentes soviéticos empenharam-se, com o apoio do movimento operário e antifascista europeu, em montar um sistema de “segurança coletiva”. Mas a opção preferencial dos governos britânico e francês era entrar em acordo com os nazistas. Ambos recorreram aos mais cínicos artifícios para não concluir uma aliança militar defensiva com os soviéticos. Somente em 24 de julho de 1939, quando já se tornara evidente que as pretensões territoriais hitlerianas não tinham se esgotado com as anexações concedidas pelos acordos de Munique (agora o Führer exigia da Polônia o corredor de Dantzig), britânicos e franceses decidiram enviar uma missão militar a Moscou. Mas sem pressa nenhuma. Como notou Annie Lacroix-Riz, uma das mais importantes estudiosas das relações internacionais durante a primeira metade do século XX, a missão destinava-se apenas a “acalmar as vozes que, após a anexação alemã da Boêmia-Morávia e a satelitização da Eslováquia, pediam uma frente comum com a URSS”. Tendo à frente o almirante inglês Drax e o general francês Doumenc, a missão só deixou Londres em 5 de agosto, a bordo de um lento cargueiro, o City of Exceter, que levou cinco dias para chegar a Leningrado. Ao chefe do Exército Vermelho, Vorochilov, que lhes propôs, em 12 de agosto, o exame concreto dos planos de operação contra o bloco dos Estados agressores, Drax e Doumenc admitiram que não tinham poderes para negociar.

Cansados de ser cozinhados em água morna, os dirigentes soviéticos replicaram à farsa dos dois impérios liberais com uma brusca inversão de sua linha diplomática: em 23 de agosto de 1939 assinaram o pacto nazi-soviético, réplica, nem mais nem menos imoral, mas estrategicamente lógica, ao pacto nazi-liberal de Munique. Ganharam com isso quase dois anos, já que a ofensiva hitleriana contra o país dos soviets só foi lançada em 22 de junho de 1941.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor