O fim da viagem, o começo de tudo

Entre a informação e a descoberta de si

Em filme sobre a encenação da notícia, cineasta japonês Kiyoshi Kurosawa discute os choques culturais e os costumes nos países ricos e pobres

Há sempre a impressão de que a jovem repórter japonesa Yoko (Atsuko Maeda) se comporta diante das câmeras de TV, neste ”O fim da viagem, o começo de tudo”, como a atriz que torna a notícia um misto de informação e encenação. Lhe cabe torná-la excitante quando se deixa levar pela mini-escada-rolante a sacudir-se de forma acelerada. Mesmo se o medo de ser trucidada lhe vier à cabeça. Ao final, ainda que tentando se recuperar, deve passar a avaliação daqueles minutos a sorrir como se tivesse se divertido à larga para que outras e outros também se arrisquem.

As imagens estão, assim, mais para diversão do que para informação, ainda que completada pela avaliação da repórter. Yoko está ali não só para submeter-se àquele tipo de prova de resistência, mas, sobretudo, deve informar ao telespectador que na verdade se divertiu. E com isto faz propaganda do “brinquedo” e, quem sabe, a emissora ganha um anúncio de seu fabricante. Ela não se atormenta ou se sente pressionada por encenar parte da programação cujo objetivo é informar a quem está diante da TV.

Deste modo, o cineasta japonês Kiyoshi Kurosawa (19/07/1955) tira o espectador da cinzenta zona da suposta ingenuidade. O quadro que ele acabou de assistir integra o programa que deverá ir ao ar pela TV Japonesa. A equipe, da qual Yoko é repórter-apresentadora, está com mais cinco técnicos em Tashkent, capital do Uzbequistão, ex-República da União Soviética (1917/1985) para gravar uma série de programas. Os destaques são o costume, a cultura e a economia deste pequeno país de 2 milhões e duzentos mil habitantes (dados de 2009) da Ásia Central.

Yoko é a personagem catalisadora da ação

Kurosawa vai além da dualidade diversão/informação, centra sua narrativa em Yoko. Daí advém a complexidade da personagem como repórter-apresentadora a cumprir as orientações de seu editor Iwao (Ryô Kase) Ela não se limita a seguir o que está escrito, inclui suas próprias ações. Isto inclui a longa perambulação pelo centro da capital ao qual chega depois de atravessar perigosas rodovias sem passarelas. Inclusive o modo como se veste de bermuda curta e jaqueta chama atenção dos pedestres. Não só homens como mulheres a observam como alguém fora de seu meio.

Ainda assim, ela toma o ônibus lotado apenas por homens que a ignoram. Seus traços orientais e sua ousadia em dividir a condução com eles os surpreendem. Nenhum deles cede espaço para ela passar, se limita a observá-la. O mesmo ocorre em sua caminhada pela rua do chamado “bazar”, a feira-livre de Tashkent, onde se vende de tudo. E ela pode circular, enfim, mesmo sendo observada entre os uzbeques sem receio. Isto a ajuda entender o povo e seu comportamento para melhor transmitir a notícia que irá ao ar em Tóquio e em todo Japão. É a chamada novidade.

O bom achado de Kurosawa ao construí-la como personagem catalizador da ação é poder centrar nela as contradições e as diferenças entre os costumes japoneses e uzbeques. Por ser jovem, Yoko ainda não tem experiência bastante para não reagir ao diferente ou procurar impor nele seus costumes. Este temor se materializa logo na chegada ao restaurante do hotel em que a equipe se hospeda. Mesmo tendo sido orientada por Eimar, guia uzbeque da equipe da TV japonesa, ela insiste em recusar a opção no cardápio do hotel onde estão todos hospedados.

Mulher uzbeque se recusa a ceder

Mas ao invés de torná-la uma personagem antipática, cheia de chiliques de prima-dona, Kurosawa inverte suas reações aos costumes uzbeques. Em uma de suas andanças pelos bairros de baixa classe média baixa, Yoko se defronta com a cabra de pelos brancos presa no cercado de uma rústica casa. Sua reação é inversa ao que se esperava dela. Termina por fazer um arranjo com a dona do animal. É seu instinto de protetora dos animais que a leva a tal iniciativa. E a partir daí, irá defende-la das tentativas de voltarem a aprisioná-la. Prefere mantê-la longe dali.

São nestas sequências que os temidos choques de costumes se impõem. Acertadamente a civilizada Yoko entra em colisão com a pobre senhora uzbeque. E lhe diz que a cabra deveria ser mantida solta. E a mulher lhe dá uma resposta lapidar: “Isto não estava em nosso contrato! Meus costumes não são como os de vocês! Como se vê, milenarmente, a briga entre os povos continua a ser simbolicamente em torno das cabras. Aqui, porém, a cabra simboliza o sustento de toda uma família e, embora a senhora tenha se desfeito dela, continua sendo seu alimento. E, com certeza, a metropolitana Yoko, mesmo cheia de vontade, não a entende.

Com este acerto dramatúrgico, a narrativa de Kurosawa se expande. Deixa o espectador torcer pela libertação da cabra por achar mais acertado ela viver livre na montanha. E a forma de ele resolver este impasse beira a opção dos protetores de animais. Um ótimo método para indagar se a pobreza não extermina as cabras ou os burgueses lavam as mãos, por explorar os proletários e preferirem não entrar em polêmicas sobre se elas devem ser sacrificadas ou não, porquanto eles já optaram por fazê-lo ao seu modo: não garantir o emprego e servir a fome a todos os pobres.

Interpretação de Yoko emociona

Com estas construções dramatúrgicas e dando subsídios para o espectador refletir sobre as dualidades expostas, Kurosawa preenche duas partes deste ”O fim da viagem, o começo de tudo”. Ainda assim é na terceira parte que sua narrativa põe Yoko em contato com o inesperado. E lhe permite estruturar as longuíssimas sequências no histórico Teatro Naoz, de Tashkent, em que muda os ângulos de câmera para mostrá-lo em toda sua imponência e suavidade. À medida que avança silenciosamente, Yoko sente estar em seu habitat. Ouve-se primeiro uma ária, depois vê-se a orquestra sinfônica e a jovem jornalista nipônica em completo êxtase.

É na sequência a seguir que Kurosawa torna este ”O fim da viagem, o começo de tudo” num indiscutível clássico. Sua narrativa começa com abordagem social, se transforma em drama romântico e termina em desabalado suspense. Sozinha no palco, Yoko caminha lentamente. Ouve-se primeiro a tocante voz de Edith Piaf a interpretar seu clássico “Hino ao Amor”(Lá Vie Em Rose)”. E aos poucos sucedem as entonações das mesmas estrofes em japonês na emocionante voz da jovem Yoko. Lágrimas rolam, não só por Piaf, mas porque a japonesa traz outro tipo de emoção.

Tashkent ajuda Yoko a encontrar seu espaço

Nesta variação temática, Kurosawa, sem perder o fio narrativo, dota sua personagem principal de faro de repórter investigativo. Munida de uma câmera de TV, ela surge no imenso galpão do bazar coberto para consumidores de alta classe média. E começa a andar e filmar o que lhe interessa sem dar-se conta dos policiais civis a observar seus movimentos. Nem se dá conta de que poderia estar numa área de segurança nacional. A narrativa assume então as matrizes do suspense com a chegada dos policiais, até ser sacudida por uma tragédia no Japão.

Nesta emblemática sequência, Kurosawa levanta a polêmica sobre o direito de o repórter de TV e da mídia em geral poder gravar com sua câmera o que o sistema e seus líderes escondem do cidadão comum e da sociedade como um todo. O debate gira em torno do direito de cada um deles ter acesso ao que de uma forma ou outra atenderá interesses escusos que irão mantê-los na eterna dependência da boa vontade do “líder supremo de plantão” O poder da informação deve em defesa do povo.

Ao espectador atento as mudanças temáticas e narrativas podem tirar o tema central de foco. Entretanto, Kurosawa constrói cada bloco de sequências num contínuo, o que significa não haver ruptura da ação entre uma transição e outra, ainda que a estruturação mude de um gênero para o outro. E no desfecho, ainda mais surpreendente, Yoko se revela não uma jovem preconceituosa ou repórter investigativa persistente, a experiência em Tashkent ajudou-a descobrir seu real espaço de vivência e felicidade. Pode parecer história de fotonovela, mas este é o encanto deste filme.

”O fim da viagem, o começo de tudo”. (Tabi no Owari, Sekai no Hajimari) Drama: Japão, Qatar, Uzbequistão. 120 minutos. 2019. Ficha técnica: Música: Yusuke Hayashi. Montagem: Koichi Takahashi. Fotografia: Akiko Ashzawa. Roteiro/direção: Kiyoshi Kurosawa. Elenco: Atsuko Maeda, Shuta Sometami,Tokio Emoto, Adiz Rayabou, Ryo Kase.

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