China pede respeito ao direito. Os EUA vêem nisso uma ameaça.

A certa altura do documento “A China e o Mundo na Nova Era”, divulgado por Pequim no esteio das celebrações pelos 70 anos da fundação da República Popular, se afirma: “a partir de meados do século XIX, a China foi explorada pelas potências ocidentais e ficou marcada por lembranças indeléveis do sofrimento causado pela guerra e pela instabilidade. Jamais imporá a outras nações o mesmo sofrimento”.

Ilustração: Tainan Rocha

Esse documento, divulgado como um “livro branco” da política externa chinesa, é tanto uma mensagem ao mundo como uma resposta aos que fomentam a tese de um “perigo chinês”. Mais que a força da mensagem em si, chama atenção que essas considerações sejam necessárias.

O desenvolvimento chinês das últimas décadas não tem precedentes na história humana. Em pouquíssimo tempo, uma economia colonial, retalhada violentamente entre potências invasoras e, ainda, saindo de uma guerra de libertação, conseguiu alçar-se à condição de maior economia do planeta (ou segunda maior, a depender do índice que se use). Mais que isso, a ascensão chinesa é também a responsável pela retirada da condição de pobreza de 750 milhões de pessoas. Além disso, como diversos pesquisadores ocidentais atestam, a China é o país que mais contribui para a ampliação de uma “classe média” no mundo. Ou seja, o crescimento econômico excepcional se deu conjuntamente à efetiva melhoria da qualidade de vida da população.

Diante disso, há, para nós, países em desenvolvimento uma constatação e uma pergunta. Primeiro: a pobreza e a condição periférica não são produtos de um destino imutável. Segundo: sendo assim, como a China conseguiu?

Muito embora o governo chinês e o Partido Comunista insistam que o seu modelo de desenvolvimento não é “exportável”, é impossível deixar de buscar a chave para essa transformação em escala tão monumental. Assim como não deixa de assustar os poderes estabelecidos no cenário internacional. Cada vez mais, o mundo não pode se mover sem considerar os chineses.

Por isso, acompanhando o interesse que já existia em seu imenso mercado, proliferam agora pelo mundo ainda mais centros de pesquisa voltados para a China. Mais que comerciar, há um movimento para se compreender e, nele, se manifestam também correntes obtusas, eivadas de um preconceito que impede, inclusive, a ética que se espera de um esforço crítico e científico.

Há uma enorme curiosidade sobre a experiência da revolução comunista chinesa e há um temor difuso e injustificado quanto ao que a China fará com o poder que acumulou, ecoando a velha máxima de Napoleão: "quando a China despertar, o mundo estremecerá”. A China despertou e o mundo ficou mais rico, mas, ainda assim, permanece a narrativa da desconfiança. Por isso, a pergunta inicial para nós dá um passo atrás e se recoloca: há uma razão objetiva para temer a China? É o que o novo livro branco procura esclarecer.

Sua resposta é, evidentemente, não.

A China recusa o hegemonismo e afirma que imaginar seu crescimento como uma ameaça é medir sua tradição milenar pela régua do “Ocidente”, ou, nas palavras do documento, é fruto de “um desequilíbrio psicológico causado pela perspectiva de queda do poder e distorções deliberadas por interesses”. O modelo de desenvolvimento chinês foi construído passo a passo, sentindo as pedras do rio, e foi bem sucedido também por não ter emulado as experiências do imperialismo e do colonialismo.

Agora, logicamente, a chegada da China à condição de ator de primeira grandeza expõe os limites do sistema de governança internacional e aponta para a necessidade de reformas. É preciso que esse sistema, diz a China, expresse os valores comuns da humanidade (tais como a paz, o desenvolvimento, a equidade, a democracia) de forma equilibrada, sem que alguns atores tenham mais peso que outros e sem que “os fortes tenham a última palavra”.

Assim, em um momento em que desde os EUA partem questionamentos ao multilateralismo e às organizações internacionais, a China surge como a voz em defesa do direito internacional e de suas instituições. O documento pede o cumprimento integral da Carta das Nações e diz que as injustiças do mundo ocorrem não porque a ONU e sua Carta estejam obsoletas, mas sim porque os princípios ali contidos não são respeitados.

Na prática, essa postura transparece na maior iniciativa chinesa para as relações com outros Estados: a Nova Rota da Seda (ou “Belt and Road Iniciative”), por meio da qual os tratados assinados contemplam a realização de objetivos comuns, voltados para a construção de infraestrutura, no qual ambas as partes ganham e tem suas demandas respeitadas. Essa iniciativa é, aliás, exemplar para a forma com que os chineses concebem a sua ideia de uma ascensão pacífica que propicia benefícios para todo o mundo.

Foi Henry Kissinger, uma voz realista de Washington, quem disse que a chave para a compreensão do século XXI não está em como a China se comportará na condição de potência, mas sim como os EUA lidarão com a ascensão da China. Se há algo a se temer, não é o crescimento econômico chinês e a intensificação de sua abertura para o mundo, mas sim a reação de Washington.

A Guerra do Afeganistão, que colocou um enclave militar norte-americano no coração da Ásia, as provocações em torno do Mar da China, a recente guerra comercial conduzida pelo governo Trump, o cerco ilegal à Huawei e, consequentemente, à tecnologia 5G chinesa, são demonstrações de que a instabilidade do mundo não tem origem em Pequim.

Em resposta, a China apresenta o conceito de “mundo harmonioso” e se ampara na defesa do multilateralismo e do institucionalismo. A rigor, pede reformas na governança internacional alegando a necessidade de aprofundar e efetivar, de fato, princípios já incorporados. Condena o uso da força contra outros Estados e advoga pela solução pacífica de controvérsias: associações ao invés de alianças.

Trata-se da defesa de uma visão de mundo construída a partir da perspectiva dos países em desenvolvimento e não das potências centrais. Se a China é uma ameaça a elas, o é exclusivamente nos termos já consagrados do direito internacional.

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