A China e a “nova luta pelo socialismo” (4)

A marca e o exemplo que a China deixa para os povos nesta nova quadra de lua-de-classes no mundo é a espantosa marca – amplificada pelo Banco Mundial – das 400 milhões de pessoas alçadas (entre 1980 e 2005) da linha da pobreza à dignidade do consumo. Enqu

Tal comparação entre China e EUA é válida em uma conjuntura de propagação de idéias-força do tipo “democracia”, “direitos humanos” e “liberdade de expressão”.  Porém, acredito que o central é ainda nos atentarmos ao paradigma maior da humanidade resumida na escolha entre capitalismo ou socialismo.


 


Mais alguns dados


 


 


A comparação com os EUA é válida para demonstrar a grandeza e o alcance do fenômeno chinês. Mais, segundo a Organização Mundial da Saúde, entre 1980 e 2005, no mundo inteiro, cerca de 100 milhões de pessoas saíram da pobreza. Ora, se retirarmos a China deste cálculo exato, concluiremos que mais de 300 milhões de habitantes no mundo adentraram o andar de baixo da linha da pobreza, ou melhor: deixaram de ter acesso aos direitos humanos básicos. Voltando, isso sem falar que o Vietnã (no mesmo período) andou retirando mais de 30 milhões de pessoas da tal linha da miserabilidade. Somente no ano de 2006, 2.176.000 de camponeses chineses saíram da linha da pobreza (1). Ainda existem cerca de 21 milhões de camponeses chineses em condições de extrema pobreza, porém algo muito distante dos cerca de 475 milhões existentes em 1978.


 


 


Dado importante se encerra no fato de a China contar com mais de 20% da população mundial e com apenas 6% das terras agriculturáveis. Enquanto isso o Brasil com terras e tecnologias capazes de gerir alimentação para mais de um bilhão de pessoas ainda convive com mais de 20 milhões de pessoas que não sabem se irão ter acesso a um prato de comida no dia de hoje.


 


 


Na África sugada até a última artéria pelas “democracias defensoras dos direitos humanos e liberdade de expressão”, a cada seis minutos uma criança morre por decorrência de doenças provocadas pela fome. Por outro lado, se em 1978 para cada quatro miseráveis no mundo um era residente na China, atualmente essa proporção caiu de trinta para cada um (2).


 


 


E se compararmos, por exemplo, os índices de analfabetismo entre a China e a Índia – sabidamente ostentadores de índices análogos de crescimento nos últimos anos – perceberemos que a “ditadura sanguinária” chinesa decresceu para 4% seu índice de analfabetos, enquanto que a “maior democracia do mundo” convive em seu território com cerca de 35% de analfabetos, número que ultrapassa os 55% entre a população pobre (3).


 


 


Com um olhar mirado na história recente, percebe-se que em 1949 o índice de analfabetismo na China era de 94%, caiu para 22.2 em 1980 e diminuiu em 2005 para os já referidos 4% (4).


 


 



Questão camponesa e avanços sociais


 


 


Auferir os avanços sociais na China passa de forma necessária pela análise da espinhosa e histórica questão camponesa. Bom lembrar que a legitimidade do status quo reinante na China se baseia – antes de qualquer coisa – pela situação de sua massa camponesa. Neste caso, além de questões de ordem histórica, questões de ordem econômica imediata devem ser pinceladas. Principalmente acerca da produção de grãos na China. As altas e as baixas na colheita de cereais indicam – e muito – o estado de espírito do camponês chinês para com o regime (5).


 


 


De imediato, a ampliação da renda camponesa no ano passado manteve-se dentro da média dos últimos 25 anos, 7,4%, enquanto que a renda urbana expandiu-se em 10,4% denunciando, o que é óbvio, que as atividades urbanas são mais rentosas que as praticadas no meio rural e que a manutenção das diferenças campo-cidade redundam em cada vez maiores disparidades regionais seja na China, seja no mundo (6). Daí a necessidade de se criar condições políticas, econômicas e infra-estruturais para uma cada vez maior absorção de mão-de-obra sobrante no campo para grandes centros urbanos, sejam eles centros já existentes ou em construção (7).


 


 


Pois bem, a primeira medida de fundo com vistas a engrenar o processo de modernização do país pós-1978 teve os camponeses como alvo. Trata-se da liberalização da comercialização dos excedentes agrícolas. Comercialização proibida desde a década de 1950. Sob o ângulo da história, ocorreu o destampamento de uma panela de pressão, afinal para um país acostumado ao comércio camponês há mais de 3.000 anos, tal medida surtiu um efeito espetacular.


 


 


Para termos uma idéia, a produção agrícola de cereais em 1984 saltou de 284 milhões de toneladas para 407 milhões em 1984. Este desempenho repetiu-se somente em 1989 e chegou a 508.4 em 1999 (8). Entre 1978 e 1984 a produtividade aumentou mais que no período entre 1952 e 1978. Tal é a raiz do “milagre chinês” da retirada de mais de 400 milhões de pessoas da linha da pobreza. Foi um grande gol político, pois redundou na repactuação do pacto de poder de 1949 e apoio ao regime para o aprofundamento do processo de Reforma e Abertura.


 



Ângulo mais estratégico e o consumo


 


 


Enxergando de um ângulo estratégico, tais colheitas (e o fomento mercantil) serviram para a formação de um mercado interno para produtos industrializados e bens de consumo. A expansão da formação bruta de capital intensivo na agricultura permitiu a redução da pressão populacional sobre terras agriculturáveis (9). Outro ângulo desta explicação consiste em perceber as diferenças entre as reformas chinesa e soviética: na URSS as reformas iniciaram-se por setores onde o investimento maciço de capital não redundava na formação massiva de empregos (indústria pesada), enquanto que na China investiu-se em setores em que pequenos investimentos são capazes de gerar fortes rendimentos marginais e milhares de empregos: na indústria leve.


 


 


A formação massiva de empregos – e seu alcance – na indústria leve deve ser vista também pela leitura do papel das exportações na demanda efetiva no país: enquanto entre 1985 e 1985 o crescimento econômico chinês teve média de 10,2%, as exportações tiveram média de crescimento de 10,2 ao ano (World Bank, 1995). Agrega-se a este dado, que a moeda chinesa teve a partir de 1994 desvalorizações sucessivas, o que permitiu, por um lado, maior remuneração de suas exportações e impedimentos à importações predatórias e por outro, uma inclusão considerável de pessoas no mercado consumidor. Aliás, a história econômica atesta que o sucesso de uma política que vise colocar pessoas no mercado consumidor depende em grande medida da capacidade de um governo manipular – de acordo com os interesses nacionais e sociais – o instrumental do câmbio. 


 


 


Como resultado desta política econômica aplicada, e em contraste com as afirmações de muitos especialistas, segundo dados disponíveis pelo Banco Mundial, atualmente o consumo é o componente mais dinâmico da demanda efetiva chinesa, contribuindo com 68% desta (demanda) no ano de 2004.


 


 


Muito imprudente – teoricamente – atestar o modelo chinês como um modelo “exportador”. Como se uma política agressiva comercialmente não contribuísse para a formação de um mercado interno…


 


 



Desafios chineses atuais


 


 


O grande desafio chinês da atualidade é o de dar termo às grandes diferenças de renda e no âmbito territorial (não é nenhuma novidade as diferenças regionais na China). Mas é bom que se diga, que a contradição é o motor primário do processo.


 


 


Para todas estas questões deve-se perguntar se o governo chinês está, ou não, reagindo a elas. Digo de forma categórica que sim. Mas temos de ter em mente (acerca da questão das diferenças de renda) que enquanto houver uma maioria camponesa no país, a tendência é de aumento das diferenças. Afinal, as leis de desenvolvimento humano são dadas e não criadas, logo é evidente que as atividades industriais são muito mais rentosas que as verificadas no âmbito do cultivo e colheita de grãos. O planejamento se impõe com uma deliberada política de transferência de renda das cidades para o campo. Nunca é demais atestar que entre 1997 e 2005 cerca de US$ 500 bilhões foram investidos no interior do país (Jabbour, 2006).


 


 


Além disso, políticas públicas para a formação de um sistema nacional de previdência social prevêem para este ano a injeção de US$ 200 bilhões neste sistema que foi criado para substituir o antigo sistema que tinham nas estatais seu centro (10). Sabendo-se que revoltas camponesas derrubaram dinastias no passado e inclusive pôs o PCCh no poder, em 2005 todos os impostos vigentes há mais de 2000 anos foram revogados.


 


 


O resultado imediato desta planejada política de relaxamento de relações de produção foi o início da recuperação das colheitas agrícolas que entraram em queda acentuada a partir de 2000 e passaram a recuperar o passo em 2004. Foram colhidas em 2003 464 milhões de toneladas de grãos. Este número chegou no ano passado a 497,4 milhões de toneladas. Dado este demonstra que um novo ciclo de estabilidade social se abre após a irupção de revoltas camponesas em massa no início da presente década.


 


Muita ainda há de se explanar sobre a realidade social chinesa. Algo que não se encerra em apenas uma conversa. Mas o fato de o poder ainda estar nas mãos do PCCh é mostra evidente que legitimidade lhe é conferida. Caso contrário, já estariam apeados desta condição conferida pelo próprio povo, que é o revogador em última instância do “mandato delegado pelos céus”.


 


Fé naquela gente


 


Para encerrar esta breve conversa disponho observação de Pearl Buck feita em palestra nos EUA no ano de 1948, intitulada “A Terra e o Povo na China” (11). Buck prefaciou a versão americana do clássico de Josué de Castro, “A Geografia da Fome”:


 


“Termino dizendo que confio plenamente nos chineses. Viveram por muito tempo e há longos anos tem resistido a tudo. Eles existem, apesar de seus contemporâneos da Grécia e de Roma terem desaparecido. Não acreditam na guerra agressiva, porque possuem grande dose de senso comum. Vivem e viveram muito mais do que qualquer outro povo, talvez excetuando-se o da Índia. Não são fracos, nem decadentes. O povo chinês que vive na terra é enérgico e prático. Nada pode destruí-lo. Os levianos somente são os que podem ignorá-los, e só a estupidez e a ignorância pode desprezá-los. Eles acreditam em seu destino, com todo o senso da proporção que a sua maior sabedoria. Conhecendo-os, eu também creio em seu futuro e sei que ele é grande”.


 


Muita atualidade se encerra nesta breve exposição de Buck e a maior delas reside no necessário e prévio conhecimento da história de lutas daquele povo. Encerra também o papel a ser cumprido pela China nesta contenda que envolve a “nova luta pelo socialismo”.


 


Nossa próxima conversa terá o “Príncipe Moderno” (leia-se PCCh) como o centro da discussão.


 


Notas


(1) Discurso proferido pelo Secretário-Geral do PCCh, Hu Jintao, em Reunião Plenária do CC do PCCh realizada no mês de maio do presente ano.


(2) China Statistical Yearbook para todos os anos.


(3) “Educação, direito fundamental para todos: especialistas católicos avaliam o desenho-de-lei do governo sobre a reforma do setor escolar”. Agenzia Fides. 22/06/2004. Disponível em: http://www.fides.org/por/news/2004/0406/22_2361.html


(4) Idem ao 1.


(5) Infelizmente para o imperialismo os camponeses chineses nunca tiveram aumentos de rendimentos tão grandes como o verificados entre os anos de 1980 e 1992. Daí pode-se se explicar um dos por quês de o regime não ter sucumbido à contra-revolução de junho de 1989. Muitos “especialistas” ao analisar aqueles fatos esquecem que a China não se resumia (nem se resume) a Pequim, nem a Xangai. Naquela época, cerca de 80% da população chinesa eram residentes no interior. Atualmente a população rural da China é de (redondando) 737 milhões de habitantes, ou algo em torno de 65% da população total do país.


(6) Existem na China cerca de 160 cidades com mais de um milhão de habitantes. O governo central desde 1999, no bojo do “Programa de Desenvolvimento do Oeste” planeja e executa a construção de outras dezenas de cidades com o objetivo de absorver populações rurais. Saliente-se aqui o papel da urbanização como um dos objetivos a serem atingidos na longa transição capitalismo – socialismo em formações sociais periféricas. Para Marx, o fim das diferenças entre campo e cidade é uma das tarefas da transição do socialismo ao comunismo.


(7) Aos que acreditam na propaganda cerca de um “inchamento” das cidades litorâneas na China, lembro que Pequim planeja saltar dos atuais 10 milhões de habitantes para 15 milhões em 2015. Até o citado ano o metrô da cidade (que atualmente conta com apenas 70 quilômetros de extensão) alcançará 500 quilômetros de extensão.


(8) idem ao 2.


(9) Esta lógica de comercialização e reaplicação de excedentes agrícolas teve na formação de complexos como as Empresas de Cantão e Povoado sua maior expressão e também a grande novidade chinesa no período. Responsáveis diretas – estas empresas – pela geração de milhões de empregos no campo e parte de um todo que envolve o acoplamento pela China de considerável fatia do mercado mundial de brinquedos, têxteis, etc.


(10) idem ao 1. A falta de um sistema nacional de previdência social é a maior causa dos acúmulos de centenas de bilhões de yuans em bancos, formando a maior taxa de poupança do mundo, de forma que tais poupanças são revertidas – pelos camponeses – para tratamento de saúde na velhice.


(11) Reproduzido em: Revista de Geografia Econômica. Dossiê Ásia-China 1. Edição Piloto. Núcleo de Estudos Asiáticos do Depto. de Geociências do CFH-UFSC. Junho de 2007.

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