Cheiro de mudança no ar

A cada novo dia que passa, a cada nova semana que avança, percebe-se que algumas das bases de sustentação do modelo em que se apoia o atual sistema do capitalismo global começam a apresentar suas fissuras. Apesar de não oferecer nenhuma novidade para os que sempre denunciamos esse regime injusto e excludente em escala mundial, é importante sim reconhecermos a gravidade da crítica que vem sendo lançada mais recentemente por gente de distintos perfis.

Uma das muitas maneiras para explicar as mudanças reside na identificação das consequências provocadas pela crise financeira internacional, que teve seu início no ambiente econômico os Estados Unidos em 2008. A eclosão descontrolada de alguns dos principais símbolos da chamada “economia de mercado” teve um efeito tão ou mais devastador, inclusive do ponto de vista icônico, do que o bombardeio das torres do World Trade Center no coração de Manhattan em 2001.

Afinal, o que se viu a partir da quebra em cadeia das principais instituições financeiras que operavam no mercado estadunidense foi a colocação em xeque da própria estrutura de funcionamento da ordem liberal capitalista. Em 15 de setembro de 2008, a falência do banco Lehman Brothers oferece o primeiro susto, logo depois da estatização preventiva de alguns dos gigantes do mercado imobiliário de hipotecas, como Fanni Mae e Freddy Mac. Em seguida, o Tesouro daquele país injeta um volume considerável de recursos públicos para salvar o Bank of America e o Citibank de quebrarem. O argumento para justificar a medida, que se apresentava inclusive na contramão dos dogmas do livremercadismo, era o famoso “too big to fail”. Ou seja, de acordo com o contorcionismo retórico de nova ordem, elas seriam instituições tão grandes que sua falência deveria ser evitada a todo custo.

Crise de 2008/9: início das mudanças

Ainda na sequência, em 2009, o governo norte-americano injeta bilhões de dólares nas simbólicas corporações gigantes do mercado automobilístico. A estratégia era também salvar da falência empresas do porte de General Motors e Chrysler. É verdade que a narrativa do liberalismo, sempre tão propagada pelo mundo afora pelo establishment ianque, na verdade nunca foi aplicada com todo o rigor no seu próprio território. Para tanto, basta considerarmos as políticas de subsídios aplicados em setores politicamente sensíveis (como agricultura e energia), as políticas especiais oferecidas ao complexo bélico militar ou a proeminência de oligopólios em inúmeros setores da economia norte-americana. Receita de liberalismo é bom para se aplicar na grama do vizinho.

Porém os efeitos da crise operaram como um questionamento profundo de alguns dos dogmas basilares do modelo que vinha funcionando desde o início dos anos 1980. O Estado foi obrigado a intervir no jogo econômico de forma explícita e ultra evidente. A política de austeridade ortodoxa teve de ser revista em uma jogada de “pragmatismo realista”, de forma a que as políticas monetária e fiscal foram subvertidas em relação a tudo aquilo que as instituições difusoras do neoliberalismo sempre haviam apregoado nos Estados Unidos e pelo mundo afora. Uma das razões mais importantes para a crise no âmbito financeiro foi identificada como sendo a ausência de regulação das instituições e das operações de risco elevado. Tanto que uma das primeiras medidas consideradas como “saneadora” foi a Lei Dodd Frank, que pode ser considerada a primeira grande regulação do mercado financeiro norte-americano desde a década de 1930.

Essa contradição entre o discurso liberal e a prática de governos e instituições revelou-se insustentável. Estados Unidos, União Europeia, Japão, Canadá e outros países são afetados por essa necessidade de adaptação. Abre-se, assim, uma brecha para o surgimento de visões e propostas alternativas, ainda mesmo no campo do conservadorismo. A hegemonia demolidora exercida pelos dogmas do neoliberalismo começa a perder o vigor que sempre havia caracterizado esse período. Questões como distribuição de renda, desigualdade social e econômica, regulamentação e regulação das atividades na economia, política fiscal contracíclica e outros temas “heréticos” passam a fazer parte do cardápio dos próprios economistas que defendiam o modelo da ortodoxia até poucos meses antes.

Piketty e Lara Rezende – críticas ao modelo

Um dos formuladores que ganhou mais notoriedade ao longo dos últimos anos foi o francês Thomas Piketty e seu livro “O capital no século XXI”, lançado em 2013. Oriundo de uma escola conservadora no ambiente universitário francês, ele foi um dos criadores e dirigentes da polêmica “Paris School of Economics” (PSE), iniciativa claramente inspirada no modelo da coirmã britânica, “London School of Economics” (LSE). Mas o fato é que a emergência da crise e a investigação de assuntos como concentração de renda e patrimônio levaram o economista a apontar o dedo para a necessidade de mudanças profundas na questão da tributação e da regulação da economia, entre outros aspetos.

Por outro lado, a brecha aberta no debate pós crise 2008 permitiu também a recuperação de debates do campo da macroeconomia. Voltaram à baila questões que haviam ficado no esquecimento, em razão do esmagamento ideológico promovido pelo establishment neoclássico há décadas. Essa foi a oportunidade para o ressurgimento de vários pesquisadores agrupados em torno daquilo que passou a ser chamado de “Teoria Monetária Moderna” (MMT, da sigla em inglês). De acordo com tal interpretação do fenômeno econômico, faz-se necessário um repensar a respeito de dogmas como déficit público, função da moeda e capacidade de endividamento do Estado.

Apesar da relevância do tema, as elites do financismo tupiniquim não parecem nada entusiasmadas em oferecer espaço para esse tipo de autocrítica. Um dos poucos pensadores e operadores da economia que ousaram furar a bolha e trazer luz a esse importante debate tem sido André Lara Rezende. Apesar de toda a sua formação no campo do conservadorismo, bem como sua atuação no mercado financeiro e sua participação como formulador de política econômica nos governos de FHC, ele teve a coragem política e intelectual de reconhecer os equívocos. Em seus artigos mais recentes, o economista carioca traz informações sobre o andamento do debate da MMT nos fóruns internacionais e aponta os enganos da continuidade da opção pela austeridade em nossas terras. Essa nova abordagem proposta por um importante formador de opinião postula uma forte crítica à política monetária de juros altos praticada há duas décadas e também a essa verdadeira obsessão do financismo com o corte generalizado de despesas como sendo a única saída para a crise fiscal.

Draghi , Martin Wolf e o Reino da Dinamarca

No espaço europeu a polêmica também avança, uma vez que a política de austeridade levada a cabo pelo Banco Central Europeu (BCE) e pela Comissão Europeia (CE) não produziu os efeitos desejados pela maioria da população da maior parte dos países da região. A sequência interminável de planos de ajuste recessivos e destruidores (como ocorreu com Espanha, Grécia, Irlanda e Portugal no passado recente) parece que agora cede espaço para uma reflexão de matriz diferente. O próprio presidente do BCE, o economista italiano Mario Draghi, reconheceu há poucos dias a necessidade de abrir um diálogo para examinar as propostas da MMT como alternativas para o aperfeiçoamento dos mecanismos de política monetária no espaço europeu. Vindo de quem vem e do cargo que ocupa, esse gesto não é nada desprezível.

Outra iniciativa relevante foi um artigo de autoria de Martin Wolf, importante jornalista e economista conservador, que é conhecido por suas atividades como editor do jornal “Financial Times” (FT). Ali também se identifica um desconforto do autor com os rumos da própria economia capitalista nos tempos atuais. Nesse caso mais recente, o autor chega ao ponto de identificar na natureza rentista do capitalismo contemporâneo uma ameaça para a sobrevivência da democracia liberal. Ora, chegamos a uma situação em que um dos maiores baluartes de defesa da ordem capitalista como FT se vê obrigado a reconhecer a necessidade de mudanças de rota. Talvez seja mesmo o caso de recordarmos o que escreveu há mais de 4 séculos atrás outro inglês, William Shakespeare, em sua peça “Hamlet”: há algo de podre no Reino da Dinamarca.

É bem possível que estejamos mesmo vivendo um momento de mudança de paradigma. Esses períodos de transição podem oferecer espaços para o novo ainda em gestação. Às forças progressistas cabe uma intervenção nesse processo de disputa de ideias. Com isso, assegurar que o novo caminho seja na direção de um mundo mais justo, menos desigual e que esteja assentado na sustentabilidade.

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