Os bons velhinhos da ditadura

Nestes 40 anos da Lei da Anistia, é impossível não lembrar os torturadores que também foram anistiados.

Aqui no Recife, conheço um momento inesquecível da boa-vida e vida boa que levam os velhinhos assassinos da ditadura no Brasil. Sei de um caso que, bem explorado, poderia aparecer nas páginas dos melhores ficcionistas. Ou em imagens que, se fossem levadas para o cinema, exigiriam o talento de Marlon Brando e Francis Ford Coppola em O Poderoso Chefão. Aquela cena do velho mafioso brincando com o netinho no jardim, ao final do filme, lembram?

Vocês não vão acreditar, como falaria o poeta Miró no Recife. Foi assim, acreditem. Uma ilustre descendente de Francisco Julião, filha do intelectual e agitador das Ligas Camponesas, possuiu a sorte de morar no mesmo edifício do coronel Vilocq, quando o torturador estava velhinho, em 2012. Naquele ano, o bárbaro militar não era mais uma fortaleza de abuso e violência. Os mais jovens não sabem, mas Vilocq foi quem arrastou Gregório Bezerra por uma corda, Vilocq foi quem espancou o bravo comunista sob cano de ferro, e esteve a ponto de enforcá-lo em praça pública, no Recife, em 1964. Quanta força ele possuía contra um homem rendido e desarmado! Pois bem, assim me contou a privilegiada.

Muitas vezes, a ilustre filha de Francisco Julião viu conversando, em voz amena e agradável, lado a lado, em suas  cadeiras de rodas, quem? Que triste ironia. Lado a lado, batiam papo Darcy Vilocq e Wandenkolk Wanderley. Ela e eles moravam no mesmo edifício e destino. Olhem que feliz coincidência, lado a lado, a ferocidade e o terror. Um, Wandenkolk Wanderley, havia sido delegado da polícia civil em Pernambuco, um sujeito especialista em usar alicate para arrancar  unhas de comunistas no Recife O outro, Vilocq, um lendário fascista que Gregório denunciou nas memórias. Pois ficavam os dois companheiros a cavaquear, pelas tardes, na paz do bucólico bairro de Casa Forte. Quanto sangue impune havia naquelas tardes de paz burguesa.

De Vilocq, a minha privilegiada amiga informou um pouco mais, neste brilho de ironia involuntária da cena brasileira. Acompanhem, pois seria nessa altura onde poderia entrar a câmera de Francis Ford Coppola : uma empregada doméstica, no prédio em que Vilocq morava,  dizia que ele parecia um bebê, de tão inofensivo  e pacífico na velhice. Mas era tão gracioso – atenção, ficcionistas, atentem para as perdas dos dentes e garras das feras na velhice –, ele era tão convidativo para o coração bondoso da moça, que ela brincava, muitas vezes com Vilocq, dizendo:

– Eu vou te pegar, eu vou te pegar.

E o  bebezinho, o bom velhinho sorria diante do terror de brincadeirinha, sorria simpático já sem a força de espancar com ferro e obrigar um homem a pisar em pedrinhas descalço, em carne viva, depois de lhe arrancar a pele  dos pés com fogo de maçarico.

Mas para infelicidade geral, já em 2012 os dois bons velhinhos deixaram de existir. Wandenkolk, o que gostava de unhas com pedaços de carne, foi para o céu aos 90 anos, em 2002. Vilocq, o que tentou enfiar um cano de ferro no ânus de Gregório Bezerra, seguiu para Deus aos 93 anos, em março de 2012. E deixou um vazio nas tardes da história onde morava a minha amiga, que descende de Francisco Julião, o humanista das Ligas Camponesas. Como poderá a justiça humana agora alcançar os velhinhos do verde bairro de Casa Forte? Com quem a esta altura brincará mais a boa moça, empregada doméstica, que de nada sabia?

Eu então meditava, pelo que me lembro, nestes termos: pensemos nos torturadores envelhecidos, pensemos neles, por eles e para a justiça que não lhes chegou, quando recuperarmos para o olhar os idosos Carlos Alberto Brilhante Ustra, David dos Santos Araujo, Ariovaldo da Hora e Silva, Maurício Lopes Lima, Carlos Alberto Ponzi, Adriano Bessa Ferreira, José Armando Costa, Paulo Avelino Reis, Dulene Aleixo Garcez dos Reis. E outros velhos, muitos outros de Norte a Sul do país, que no tempo de poder absoluto foram o terror do Estado no Brasil. Eles ficaram apenas mais velhos, os bons velhinhos assassinos.

E concluo enfim, depois da morte de Ustra: morrem na cama, de velhinhos, bem aposentados, todos os torturadores brasileiros. Tudo tão Brasil, não é? Por isso, retifico ao fim: a velhice desses torturadores brasileiros não daria um filme de Francis Ford Coppola. Essa é uma história de horror, real, muito real e verdadeira,  digna da união de todas as artes, do cinema, do teatro e da literatura. Um possível título da obra múltipla seria: os bons velhinhos assassinos. Os bons, pelo menos até o dia em que a justiça os alcance. Chegará esse dia?

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