Dorival Caymmi Eterno

Neste 16 de agosto, faz 11 anos que Dorival Caymmi partiu num tempo desses e não voltou.

Então eu peço licença, até dos ouvidos, para falar de um Caymmi nosso, privado, falsamente privado, porque sempre julgamos que a melhor música é assunto íntimo. Quando é assunto íntimo de toda a gente.

Não sei por que razão, mas acredito que as músicas, as composições de que mais gostamos, trazem e traçam um destino prévio para o nosso ser, para a nossa conformação de espírito. Digo mais, se não me internam em um hospício, se prometem que com isto eu não receberei um atestado de louco, digo mais, como um doido varrido de pedra: acredito que as músicas, as composições de que mais gostamos, traçam até mesmo um destino, elas fazem o nosso destino. Nós gostamos delas sem saber que esse afeto vai nos marcar indelével por toda a vida. Nós amamos essas humaníssimas canções sem saber que elas são proféticas. Digo isso, escrevo, e cá dentro há um ser agitado, convulso entre a dor e o riso, como naquelas máscaras antigas do teatro. Pois com abalos no fígado, no ventre e no peito, quero apenas dizer:

“Ai, que saudade eu tenho da Bahia
Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia
‘Bem, não vá deixar a sua mãe aflita
A gente faz o que o coração dita
Mas esse mundo é feito de maldade e ilusão’

Ai, se eu escutasse hoje não sofria
Ai, esta saudade dentro do meu peito
Ai, se ter saudade é ter algum defeito
Eu pelo menos mereço o direito
De ter alguém com quem eu possa me confessar

Ponha-se no meu lugar
E vejam como sofre um homem infeliz
Que teve que desabafar
Dizendo a todo mundo o que ninguém diz
Vejam que situação
E vejam como sofre um pobre coração
Pobre de quem acredita
Na glória e no dinheiro para ser feliz”

Sem comentário, deveríamos passar para uma linha adiante. Mas não, voltamos, porque como burro teimoso não arredamos do canto. Por que essa composição nos toca tanto? Há nela, é certo, uma lembrança antiga de infância, em que cantávamos a simplicidade mágica sem nunca ter ido à Bahia, sem compreender mesmo o sentido de saudade. Cantávamos pela música, pela melodia, deveríamos dizer. Ou porque, talvez, as crianças compreendam sem saber a razão.

Às vezes, mal conseguimos falar, e já cantamos coisas tristes, bem tristes, de um mal e desengano do qual ainda não possuímos nem a experiência. Cantamos como papagaios? Não, até onde lembramos, cantamos com sentimento, e sentimos um desejo imenso de solidão, quando ainda mal possuímos o sentido disso.

Sim, poderia ser dito, cantávamos pela melodia, nada a ver com a letra. Mas há uma cor nessa melodia, sentimos, que vem como réstia amarela de raio de sol

Depois, aí sim, com as perdas que começamos a somar, melhor, a integrar nos músculos que ganhamos, compreendemos a letra, julgamos. Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia! Deve então ser isto, julgamos que atingimosa compreensão. É a falta dela que nos faz dizer, ai, se eu escutasse aquela que não tenho ao meu lado. Mas não podemos, por mais memória que tenhamos, não podemos viver sempre assim. Viver sob o signo da perda é o próprio sinônimo da maldição.

Mas Caymmi resiste, enquanto avançamos no entendimento. Então chega ao ponto de ser uma canção profética, que cantamos com voz dura, como homem de fato, durão, grosso, estúpido e burro, quando temos o peito mole, feito em pedaços: “que teve que desabafar, dizendo a todo o mundo o que ninguém diz”. Vejam que situação. Que vergonha. Foder-se calado parece mais forte e másculo. Então que se fodam as forças físicas, que vá à merda o homem que nega o sentimento. Porque “pobre de quem acredita na glória e no dinheiro para ser feliz”. Sim, tomamos isso para nós, quando nem temos a glória nem o dinheiro, mas acreditamos nisso, como se o tivéssemos. E sentimos assim porque sabemos, agora, de viva experiência, que o fundamental mesmo é o indispensável sempre estranho à gorda conta bancária, ao bom restaurante, ao carro do ano. Pobre de quem acredita nesse ouro. Pobre de quem só tem esse ouro. Vejam que situação.

Então chegamos ao específico, ao profético da canção, que cantávamos quando de nada sabíamos, há muito tempo, e pelo que nos ocorreu depois, dizemo-nos:

“Ponha-se no meu lugar
E vejam como sofre um homem infeliz
Que teve que desabafar
Dizendo a todo mundo o que ninguém diz
Vejam que situação
E vejam como sofre um pobre coração”

Isso foi, era e é o meu destino, dizemo-nos. É por isso que eu o cantava, desde a infância. Sim, foi isto, sim… Mas despertamos, será mesmo uma profecia pessoal, uma antecipação do destino só meu e de mais ninguém? Ou será, mais propriamente, uma antecipação de toda a gente, um fiel a marcar a esperança e desesperança de toda uma humanidade? Nisso não estará mesmo a vitória da arte, o de falar a uma só pessoa, quando fala a todas as pessoas? Isso me ocorre, porque agora vejo que todo homem tem um menino dentro, que deve ter sido feliz algum dia. Até mesmo em meio ao maior desassossego, alguma breve felicidade o menino teve. Todo homem. Daí que a gente, com esse exclusivismo besta, fica a pensar que Caymmi é o mestre, o menestrel somente da gente, e de mais ninguém. Marina:

“Marina, morena
Marina, você se pintou
Marina, você faça tudo
Mas faça um favor
Não pinte esse rosto que eu gosto
Que eu gosto e que é só meu
Marina, você já é bonita
Com o que Deus lhe deu
Me aborreci, me zanguei
Já não posso falar
E quando eu me zango, Marina
Não sei perdoar
Eu já desculpei muita coisa
Você não arranjava outra igual
Desculpe, Marina, morena
Mas eu tô de mal
De mal com você
De mal com você”.

A música de Caymmi lembra para nós o que é fundamental, cheiro, cheiro como beijo, cheiro de aroma, primário e sofisticado que ele é a um só tempo. Agora mesmo, chove na rua, em pleno verão, e esta chuva lembra Caymmi. Porque há um cheiro de água a molhar a terra quente, que remete a cuscuz no fogo, de manhã. E vem com a chuva um cheiro de mar, de vento no mar, que ele cantou como ninguém. Coisas fundamentais que ouro nenhum compra, pobre de quem acredita.

Há, certo, um outro Caymmi, que todo o mundo estrangeiro conheceu no estilo Carmen Miranda, cheia de bananas na cabeça, turbante, olhinhos virados e saracoteios. Mas esse é melhor deixar para as citações exóticas em filmes de Woody Allen. De “O que é que a baiana tem?” guardamos tão só estes versos que cantamos baixinho, quando a moça bonita passa na praia, bem baixinho nos falamos , cá íntimo:

“Quando você se requebrar, caia por cima de mim, caia por cima de mim”.

Isso bem baixinho, sem ninguém ver. Em voz alta gostaríamos de cantar, acompanhando aquela voz retumbante de Nana Caymmi. Salve, salve, ó gênio do Brasil. Salve, salve, Caymmi. Desde que nos entendemos de gente, nós gostamos muito de você. Desde quando tínhamos saudade da Bahia, sem conhecer a Bahia, porque pensávamos que a Bahia fosse a nossa mãe. Só louco.

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