Relatos da Ação Popular de Fernando Santa Cruz

Entre as calúnias faladas pelo presidente breve sobre Fernando Santa Cruz, morto por torturadores na ditadura, encontro esta:

“Um dia se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade…. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá em Pernambuco.”

A indignidade do presidente breve contra Fernando Santa Cruz foi tamanha, que não se destacou o outro lado da cínica mentira, a saber: “O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá em Pernambuco” . De imediato observo que não vem ao caso separar, por partidos e organizações, o valor de militantes que deram a vida contra a ditadura. Todos são dignos e eternos. O que desejo agora é mostrar o despropósito absoluto em apontar Ação Popular como o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha.

Na ditadura, lembro um tempo de sectarismo, um tempo de guerra, em que militantes de AP chegavam a ser discriminados pelos combatentes da luta armada, a quem chamávamos de foquistas. De modo mais simples, AP não era um grupo guerrilheiro. E se me perdoam duas invocações mais claras, pego primeiro um trecho do meu livro “Soledad no Recife”. Entre as páginas narradas, existe uma reunião com o personagem inspirado no Cabo Anselmo, sob o nome de Daniel:

“- Sei, entendo, respondo. A poesia é maior que a fissão nuclear.

Pelos cantos dos olhos noto que Daniel sorri. Diria mesmo, há movimentos em seu diafragma, como se abafasse uma gargalhada.

– Sim, mas eu me refiro à teoria revolucionária, companheiro, Soledad repõe. Eu me refiro ao pensamento de Marx, entende? Percebe?

Sim, percebo. Chamado à ordem pelo nome do Papa, eu, cristão-novo confesso, percebo, entendo e me calo. O que posso dizer do homem cujos livros sacodem o jugo da humilhação? Isso também é poesia, tenho vontade de lhe dizer. Mas me calo, porque não sou um homem livre. Nem mesmo tenho a graça da liberdade mais simples, para lhe cantar, ‘Sol, vamos fazer amor no jasmineiro?’.

– Voltando ao chão, Daniel fala. Temos tarefas mais práticas.

– Certo, Ivan fala. Não sei como a Organização vai encarar esse lance de armas.

– Você é do Partidão?

– Você é louco? Sou da Ação Popular Marxista do Brasil!

– Ah! Os olhos amendoados de Daniel mais se apequenam, como num reflexo de hilaridade.

– Ah! Vocês não partem para ações armadas?

– Estamos construindo isso. Mas não é um foco, entende?

– Claro. Mas armas não fazem mal, não é, companheiro? Hoje ou amanhã, elas servem. Para atacar ou defender… – e virando-se para mim: – é como poesia…… “

Depois, no romance “A mais longa duração da juventude”, consegui narrar um momento mais preciso dessa diferença e discriminação na luta:

“- Che é o revolucionário dos nossos dias. Ele é a tradução da América Latina para os clássicos, hoje. Só partidão não vê. – E me apontando o dedo: – Você é partidão?

Assim, em interpelação direta, de dar vexame. Eu respondo:

– Não. Eu não tenho partido.

– Não tem?! Eu não estou entendendo. Como é possível um socialista sem partido? Algum deve ter.

– Não… pois é, ainda não tenho.

Vargas olha para Alberto, como a lhe exigir explicação, uma vez que o mundo não admite semelhante vacilação, ‘que só serve aos opressores’, seu olhar diz.

– Ele é um companheiro de AP – Alberto fala. – Militamos juntos no mesmo partido.

Eu fico sem palavras. Aquilo, se por um lado me salva por momentos da condenação de Vargas, por outro me condena frente aos ouvintes das mesas próximas. Cruzo uma vista raivosa para Alberto, que entende e me responde:

– Ninguém sabe o que é AP. É Ana Paula, rapaz. Estamos falando de Ana Paula – e sorri, achando muito engraçado o codinome da Ação Popular Marxista Lêninista do Brasil.

Mas é nada engraçada a ligeireza com que ele disfarça a sua imprudência. Ele fala como se a direita fosse um feixe de porrada. Como se não houvesse infiltração, ou o que o regime batiza com o pomposo nome de Serviço de Inteligência. E por eu me achar petrificado, ele repõe:

– Besteira. É carnaval. Será que não se pode mais falar de Ana Paula?

– Segurismo total – concorda Vargas.

Eu me mordo. Alberto, já vimos, é o militante dono de uma desastrosa precocidade. Ou de um desastre precoce. ‘Genial e irrefletido’, diria Zacarelli. Nós, que ainda não percebemos a extensão da sua imprudência, o vemos como um gênio, um jovem dos melhores do Brasil. Os sinais da sua precocidade são patentes. Aos 19 anos discute filosofia como se fosse um intelectual experimentado em muitos estudos e pesquisas. É capaz de sustentar a linha justa da revolução segundo AP, ao mesmo tempo que contraria na prática as normas da organização, que a esta altura chamamos de partido. Como agora, neste noite da sexta-feira de carnaval com Vargas, cuja militância vem da VPR. Mas não só pela conversa, a direção falará adiante. É a própria amizade com Vargas, pois AP tem como norma de segurança não manter contato com os companheiros foquistas, como os chamamos, ou da guerrilha urbana, da luta armada, como esses militantes aguerridos se veem. A razão da norma, falam os dirigentes de AP, é que os foquistas atraem a repressão, porque são liberais, irrefletidos, militaristas em vez de soldados da insurreição popular. Por sua vez, os foquistas veem os subversivos da linha de massa como um bando de reformistas, covardes. Mas os partidos não percebem que as pessoas dos militantes são um caráter que se alinha às vezes com organizações impróprias. Assim, Alberto desde os 18 anos era uma natureza foquista, apesar da filiação ao trabalho de agitação popular.

– Está explicado, é de AP. Segurismo total – Vargas fala.

– Isso não é verdade – Alberto responde. – Pelo menos com AP, não é.

Aguento o insulto. E não falo, nada posso falar na mesa, das tarefas inseguras, de risco que tenho vivido. Em parte, eu sei por quê: não poderia falar, evidente, das novas tarefas para as quais serei exigido daqui a menos de um ano. Nem dos desastres amorosos que cometerei em razão da política de massa de AP. Todos cometemos erros, até mesmo os partidos socialistas, que podem ser criticados à distância pelo espelho retrovisor, porque na hora, não, têm o dom da infalibilidade. Mas para todos é impossível esse conhecimento em fevereiro de 1972. Ora, conhecimento, não possuímos nem mesmo a perspectiva de conhecer. No momento, sentimos apenas um desconforto, um mal-estar, enquanto a discussão levanta a voz. Olho para dentro do bar Aroeira que aparece em penumbra, em contraste com as luzes de fora no Pátio de São Pedro. As mesas redondas têm cor negra, um verniz escuro, e nem posso dizer, como um supersticioso, que as mesas fazem um luto prévio. É superstição, eu sei, mas pressinto e fico numa estranha associação entre o que se discute e a cor da mesa. Como podia adivinhar? Se por acaso erguesse a voz do meu pressentimento, receberia de volta a cláusula pétrea dessa hora: ‘e daí, não vamos fazer nada?’. Então os presságios, as intuições também se calam. Olho para o fundo do Aroeira, recuo da indistinta penumbra, e na volta desse percurso do olhar encontro a Igreja de São Pedro. Tão bela, tão insensível ao drama dos homens”.

Desse modo associo agora o tempo de Ação Popular ao presidente breve. Mas há o mais grave, crimes insepultos como o de Fernando Santa Cruz que voltam e se voltam contra o torturador no poder. O breve, que a justiça não pode largar impune.

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