“Memórias da Dor” – Mal absoluto

Em adaptação da novela biográfica da escritora Marguerite Duras, cineasta francês Emmanuel Finkel matiza o horror da ocupação de Paris pelos nazistas.

Em meio ao caos e o horror em que se transformou Paris durante a ocupação nazista (26/06/1940 a 26/08/1944), resta ao espectador deste “Memórias da Dor” a sensação de que a perda, o desespero e o vazio se igualam às mortes nos combates nas trincheiras. Não se trata de soldados, mas de pessoas comuns em busca dos seus. Como um deles, a jovem escritora Marguerite Duras (Mélanie Thierry)) perambula pelas ruas até o quartel-general da Gestapo, onde busca informações sobre o paradeiro de seu companheiro Robert Antelme (Emmanuel Bourdieu), desaparecido a dias.

O diretor/roteirista Emmanuel Finkel estrutura sua narrativa a partir da novela biográfica “O Amante (1984)” da também cineasta Duras (1914/1996), como uma complexa personagem em meio a deportações, execuções e corpos incinerados nos campos de extermínio nazistas. Na interpretação de Thierry, ela se torna uma personagem aturdida, de olhar perdido, face contraída a travar desigual luta interior contra os demônios nazistas visíveis e invisíveis. Deste modo, Finkel expõe o que foi a ocupação da França pelas tropas de Adolf Hitler por quatro anos.

Neste impactante “Memórias da Dor” não conta só o diálogo, a busca da superação, mas principalmente a capacidade de o ser humano não se perder em meio à tensão, as ameaças, o extermínio e a irracionalidade. Afinal é disto que trata a narrativa de Finkel. Em meio à busca de Antelme, Duras deixa seu trabalho numa editora e se torna uma entre tantas mulheres e homens desesperados para encontrar seu ente querido. E a todo momento vêm-se diante dos caminhões lotados de prisioneiros cujo destino é a deportação, caso não seja simplesmente a incineração.

Finkel dá visibilidade à multidão de perseguidos

Este é o tratamento dramático de que se vale Finkel para dar conta do que denuncia a partir da obra de Duras. É o recurso à multidão não para tornar as vítimas menos importantes do que os diferenciados personagens. São os judeus, os ativistas anti-nazismo e os membros da Resistência-Francesa. É a estes que Finkel procura dar visibilidade, pois são as

principais vítimas da Gestapo, dos espiões e dos franceses que aderiram ao nazismo. E é com um deles, o membro da Gestapo, Rabier (Benoit Magimel), que Duras travará uma dúbia relação de atração e ódio.

Rabier é daqueles personagens a oscilar entre a víbora e o anjo exterminador. É simpático, atencioso e manipulador, a ponto de mostrar-se interessado no paradeiro de Antelme na Teia de tarântulas do III Reich. E Duras não é menos sedutora, maleável, joga com seu charme, fragilidade, desespero e ânsia de abrir espaço para obter seu intento. O espectador desconfia de Rabier, mas, aos poucos, nota certa tendência de Duras a mostrar fragilidade em demasia e aceitar as investidas do nazista. Ele é charmoso, bem vestido e fala convincente, mas é agente da Gestapo.

São nestas sequências que Finkel monta sua bem articulada trama, tendo como tema central a duplicidade das ações de Duras. Tão bem articulada quanto o próprio Rabier, embora seu objetivo seja localizar seu companheiro Antelme, líder da Resistência Francesa em Paris, na teia de armadilhas montada pela Gestapo. Ela, no entanto, é pressionada pelos companheiros e o equilibrado e articulador Dionys Mascolo (Benjamin Bioley), agora o líder da Resistência Francesa na falta de Antelme. São papeis quase invisíveis, pois nenhum deles pode se mostrar ao inimigo.

Duras dá abrigo a mulheres sem teto

Esta é a forma dramático-narrativa encontrada por Finkel para ligar o tema central conduzido pelas ações de Duras aos da Resistência. E além delas, a subtrama das mulheres a lutar pela localização de seus companheiros, filhos e filhas. Uma delas, já idosa, encontra em Duras abrigo pois lugar algum tinha para ficar. E a outra, em iguais condições clama por sua ajuda para localizar a filha. Forma-se, deste modo, a Rede não só da Resistência, como também da solidariedade, da luta comum contra a ocupação nazista. É quase invisível, pois o abrigo às perseguidas fica em quartos do apartamento, de difícil localização.

Não menos importante para o espectador se situar nesta Rede, é a importante subtrama da multidão de mulheres, crianças, adolescentes, idosos a formar filas e filas em busca de informações ou, no limite, embarcar para onde suspeitam estão seus filhos, filhas, companheiro, companheira ou irmãos, irmãs e os próprios pais. Eles perambulam desesperados pelas ruas e avenidas de Paris em busca de qualquer informação que lhes dê esperança de eles não estarem já incinerados. E, assim, Finkel mostra o quanto a ocupação nazista engendrou o horror.

Desta maneira, o tema central da persistência de Duras para encontrar Antelme se mostra como um dentre milhares. A diferença fixada por Finkel desde o início da narrativa é de que ela pertence à Rede. E, em determinado momento, é alertada por Dionys para não servir de isca para Rabier descobrir quem de fato é ela. E por mais que seu líder insista, ela lhe responde de maneira categórica: ”Palavras não dizem o que os olhos não viram”. Quem, na verdade, pontifica é ela, não o francês da Gestapo.

Filme trata da perda do ente querido

A sequência crucial a justificar esta frase transcorre num luxuoso restaurante francês, lotado de oficiais nazistas. Tanto ela quanto Rabier jogam em duplicidade, cada um a lançar o charme e o laço para o outro. O espectador em certa cena tem a impressão de que ela cedeu ao charme dele. É o cinema a justificar o encantatório, o medo, o horror, o temor de que ela cedeu aos encantos dele. Finkel sabe jogar com o suspense e o desenvolvimento da ação com gestos, olhares, frases curtas. Inclusive com sua câmera postada a poucos centímetros do inviável “casal”.

Este “Memória da Dor” é não só um filme sobre a sensação da perda do ente querido, mas também sobre a forma como o inimigo-invasor se apodera do/a cidadão/dã para liquidá-lo/a. Inclusive do importante líder da Resistência Francesa num instante de fragilidade dos nazistas na França. Mas também joga com a possiblidade de Duras não voltar a ver Antelme. E ela em certo instante hesita, o que leva Dionys a lhe repreender: ”Você não tem o direito de fazer isto”. Não é só o individual que está em risco, mas também o coletivo deve ser fortalecido para não ser derrotado.

Com tantas subtramas e fios dramáticos a tecer sua narrativa, Finkel não perde o eixo central da narrativa. E conta para sustentá-lo a invejável e criativa intepretação de Thierry. Desde o instante em que a câmera se mantém nela, sua voz, olhares e semblante vão de uma emoção a outra. E acaba por envolver o espectador, pois transmite o vazio, a perda, a urgência de rever o amado, sem saber onde ele se acha. É a emoção a brotar no momento em que a dor, a tensão e o medo afloram. Notadamente na sequência principal da trama central quando as informações rareiam.

Filme não é só a história de Duras

Como em todo filme há um arco dramático na narrativa, Finkel o articula com a subtrama dos integrantes da Resistência Francesa. Não é apenas o risco da perda do companheiro por Duras, mas de a célula da Resistência não conseguir localizar onde os nazistas o confinaram. O filme ganha não só em suspense como deixa o espectador agoniado, torcendo para eles terem sucesso. E, como não poderia haver buraco na trama, Finkel fecha o arco se valendo da busca frenética e desesperada por Antelme. E neste instante percebem o quanto perigoso é Rabier.

É o desfecho natural para a narrativa centrada na primeira e segunda parte apenas nas relações de Duras com Rabier. E ao longo dos 126 minutos da trama central, Finkel introduz as ações das subtramas da multidão agoniada nas ruas de Paris e das mulheres abrigadas por Duras, como forma de sustentá-las e dar-lhes veracidade. Não se trata de apenas da história particular da escritora e cineasta famosa, mas também a de milhões de franceses e francesas cujas vidas foram destroçadas pela invasão da França pelas tropas de Adolf Hitler (1889/1945).

Embora a narrativa seja complexa, Finkel faz o espectador perceber o que de fato está em jogo. E isto o faz introduzir duas rápidas menções: I – O General Charles De Gaulle (1890/1970) lidera a Resistência Francesa na liberação da França e de Paris com apoio dos países aliados em 25/08/1944; II – A chegada do Exército Soviético a Berlim em 25/05/1945, pondo fim à II Guerra Mundial (1939/1945). O que punha a liberdade e a democracia sob risco não eram os judeus, os comunistas e os libertários em si, mas sobretudo o Nazismo e seus aliados, entre eles o Fascismo. Qualquer semelhança com a extrema direita atual não é mera coincidência.

Memórias da dor. (LA Douleur). Drama, guerra. Bélgica, França, Suíça. 126 minutos. 2017. Montagem: Sylvie Lager. Fotografia: Alexis Kauyrchine. Roteiro: Emmanuel Finkel, baseado na novela “O amante”, de Marguerite Duras. Direção: Emmanuel Finkel. Elenco: Mélanie Thierry, Benoit Magimel, Benjamin Bioley, Emmanuel Bourdieu, Shulamit Adar.

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