Memórias sobre o Araguaia: "Advogado-do-mato"

Advogado maduro com atuação no âmbito da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e já com certa experiência entre os moradores do sul do Pará, Paulo Fonteles é designado em 24 de Outubro de 1980 pelo Conselho Seccional da OAB-Pa a acompanhar os caravaneiros que vinham de diversos pontos do país.

Aquele ano de 1980 foi particularmente duro para o "advogado-do-mato", como era conhecido Fonteles entre as massas campesinas dos sertões do Araguaia.

Em três cartas endereçadas à esposa, Hecilda Veiga, expõe com clareza o ritmo de trabalho. A primeira, de 19 de Março de 1980, revela:

 "(…) o diabo é que estou tremendamente cansado.

Além de farto de direito, processos, advogados e jurisprudências, o trabalho é tanto que me esgoto sem dar conta de todo o serviço. Estive fazendo um levantamento e constatei nada mais que 73 casos (…)".

Na segunda carta, no dia seguinte, continua em desabafo:

"(…) de qualquer jeito a gente vai levando esta luta pra frente; conquistando vitórias importantes, apesar de tudo. De qualquer forma, conseguimos encostar um pouco a ditadura, aqui neste sertão, à parede. O Getat (Grupo de Terras Araguaia-Tocantins) é sua última alternativa. O negócio é continuarmos firmes, ampliando nossos esforços, somando novas forças e corrigindo nossos erros e debilidades, fazer a luta do povo crescer até que ela mesmo engolfe esse regime assassino e maldito."

A terceira, de data imprecisa, apresenta um homem visceral:

"(…) Parece que todos os problemas de terras do sul do Pará desabaram na minha cabeça. De repente, e digo de repente, porque eu só esperava que a situação fosse 'esquentar' a partir de maio. Mas qual nada! A situação esquentou.

Terra, posseiros, grileiros, polícia, cartório, tudo se mistura, numa profusão de casos que me deixa tonto. E se fosse possível ter uma atitude fria, distante, 'marciana', haveria maior tranquilidade. Mas a cada injustiça, a cada abuso e arbitrariedade policial, a cada fraude do aparelho judiciário, sempre contra os lavradores, a gente sente, se exalta e, conseguinte, envolve-se emocionalmente, tem a vontade de partir pro pior. Por isso é que John Lennon, o beatle, disse que "felicidade é um fuzil quente".

E a reação faz carga contra mim. Ontem, conversando com o Dom Joseh, o bispo, a respeito de nosso problema pessoal, ele me disse que muita, muita gente, tem procurado por ele para fazer denúncias contra mim. Que ele estava em Belém, foi procurado por um padre barnabita, parece-me aquele Giambelli de Nazaré, que pediu-lhe uma entrevista com um personagem desconhecido. Esse personagem, que ele não disse quem era, nem lhe perguntei, foi até ele me 'denunciar'. Que eu era comunista confesso, e até já havia escrito um artigo em que me declaro ateu. Ele, o bispo, contou-me que ficou tão irritado que despediu-se imediatamente do alcaguete, de forma intempestiva e até deseducada. Pelo menos isso!

Agora apareceu mais um processo em que um grileiro e uma corja de advogados, altamente comprometidos com o vil metal, oferecem uma denúncia a Polícia Federal acusando-me de ter mandado invadir terras. Na verdade, o sangue começa a me esquentar as veias.

Mas é isso mesmo. E a luta, não? Um dia, eles estarão no lixo da história.

O movimento camponês cresce. Hoje à noite começamos o encontro da oposição sindical, reunindo cerca de 30 a 40 lavradores, que irá até depois de amanhã. Sinto também que começa haver um crescimento qualitativo. O livro de memórias do Gregório Bezerra que trouxe de Belém está sendo devorado por alguns trabalhadores. É a melhor literatura que poderíamos dispor agora. Vou precisar, inclusive de mais seis exemplares (vols.1 e 2), que te pediria pra me mandares com urgência. O vol. 1 tem no Jinkings e o 2 tem na livraria do IPAR. Podes comprá-los nas minhas contas. Ok? Ah! O Gregório cita em suas memórias nominalmente o Zé Basílio, o nosso Doza. Em 1947!!! (…)."

Quando faz referência à oposição sindical, Paulo Fonteles trata das eleições para o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Conceição do Araguaia, presidido então pelo tristemente famoso pelego e grileiro Bertoldo Siqueira, apaniguado do regime militar.

O desenrolar desta contenda produziu o assassinato de Raimundo Ferreira Lima, o "Gringo", principal liderança da luta camponesa em toda a região do  Araguaia e candidato a Presidente da Chapa 2, da oposição sindical, a 29 de Maio de 1980. Diante da eminente vitória da representação legitima dos camponeses o Governo Federal empastelou as eleições através do Ministério do Trabalho; depois da morte de "Gringo", para se ter uma idéia, cerca de 7 mil trabalhadores participaram de diversos eventos da Chapa 2, seja atos públicos, reuniões e etc.

Quadros de estatura do regime militar prestavam total apoio à Chapa 1, oficial, dentre eles estavam Jarbas Passarinho e o Major Curió. Naquele processo político-sindical os arautos do regime pregoavam uma paranóica campanha anti-comunista, com amplo apoio da Polícia Federal e até da Rádio Nacional que de Brasília fez intensa campanha para a Chapa 1, completando toda uma operação militar-ideológica no processo eleitoral. Tal empreendimento reacionário assegurou a direção do STR de Conceição do Araguaia até 1985, quando foram definitivamente banidos junto com os militares encastelados no poder desde 1964.

Em 1980, ano da Primeira Caravana ao Araguaia, foram registrados 56 conflitos pela posse da terra apenas na região do Araguaia e adjacências onde ocorreu a guerrilha. Tais conflitos produziram 30 mortos entre camponeses, pistoleiros e grandes latifundiários com amplo apoio da ditadura militar, como Fernando Leitão Diniz e Elias Uliana.

Vale ressaltar que a grande maioria dos mortos eram pistoleiros que atuavam a soldo dos grandes empreendimentos agropecuários que ensejavam retirar os lavradores de suas posses, o que representava uma ofensiva do movimento social camponês naquela imensa região.

Na base dessa disputa estavam inseridas visões diferenciadas sobre a Amazônia. Sabe-se que desde o fim da década de 1960 a Amazônia vem sendo objeto de uma insana espoliação e de uma intensa devastação de seus recursos naturais. Suas terras têm sido griladas ao longo de mais de 40 anos ou cedidas a poderosos consórcios como também a grupos estrangeiros.

A ditadura militar promoveu a expansão da empresa capitalista no campo, momento em que a terra passa a ser mercadoria e ocorre a transição do predomínio econômico e político do latifúndio ao predomínio econômico e político da empresa agropecuária.

E com a derrota militar das Forças Guerrilha do Araguaia, as terras, antes largas e prenhes de fartura, são inseridas nas relações capitalistas de produção controladas pela grande empresa privada e o poder dos generais vai favorecer e acelerar o malsinado modelo. E essa mudança radical vai alimentar uma profunda revolta na imensa massa camponesa pelos sertões do Araguaia.   

A geração de "Gringo" foi de lavradores que conheceram os insurgentes do Araguaia e por conta da luta pela posse da terra promoveram a "Guerra dos Perdidos", em 1976. Tal geração de camponeses resistiram à instalação de diversos grupos financeiros que ocupavam vastas áreas, tais como Sul América, Atlântica, Boa Vista, Peixoto de Castro, Bradesco e Bamerindus; os alemães Atlas e Volkswagen; os norte-americanos King's Ranch, United Steel Corp. e John Davis.

No caso de John Davis, coronel aposentado do Exército dos Estados Unidos, dezenas de posseiros realizaram ação coletiva armada, na PA-70, próxima à região do Araguaia, depois das provocações do militar ianque que, pela força, tentava desalojar os lavradores de suas posses. Do choque resultou a morte do norte-americano bem como de seus dois filhos.

O fato é que os projetos instalados pós-64 preconizavam a internacionalização da Amazônia, através das enormes facilidades dadas pelo governo central, através da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e do Banco da Amazônia S/A (Basa), para a instalação de transnacionais e a medida de força para varrer quaisquer surto de rebeldia se confirmava pela teoria da Lei de Segurança Nacional (LSN).

A partir do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), que teve vigência de 1974 até 1984, portanto 10 anos, a LSN foi redirecionada a fim de facilitar que empresas nacionais e estrangeiras pudessem obter imensos benefícios legais e tributários, promovendo a concentração da terra e a expropriação dos camponeses numa verdadeira aliança, cuja concepção leva-nos a conclusão de que os pobres do campo eram uma grande ameaça à segurança nacional para os generais encastelados no poder.

A criação de órgãos executivos voltados para a questão de terras, como o Getat, ensejava a militarização da política fundiária e este instrumento da repressão era dirigido diretamente pelo Conselho de Segurança Nacional (CSN). O famigerado Getat interferiu direta e militarmente sobre as terras conflagradas de todo o sul do Pará.  Um dos resultados foi a célebre garimpo de Serra Pelada, maior garimpo à céu aberto que se têm notícia no mundo, dirigida pelo Major Curió. Como se sabe com rigor documental, a Serra Pelada fora pródiga para pouquíssimos e calvário para milhares de brasileiros.  

É nesse ambiente, explosivo e brutal, que os familiares dos mortos e desaparecidos na guerrilha do Araguaia, jornalistas, militantes de direitos humanos e membros do clero percorreram as currutelas, matas e rios caudalosos do sul do Pará.

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