Regulação da mídia: de volta ao passado

 Para muitos de nós que participamos dos movimentos civis a favor da democratização das comunicações antes mesmo do processo Constituinte, retornar aos temas anteriores à Constituição de 1988 tem um desconfortável sentimento de déjà vu.

O ministro Paulo Bernardo, em audiência pública da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTC&I) da Câmara dos Deputados, realizada no dia 6 de março de 2011, afirmou que o projeto para um marco regulatório das comunicações "se centrará em modernizar a legislação defasada e regulamentar os artigos da Constituição que tratam da comunicação" [ver aqui matéria da Agência Câmara].

A lembrança da afirmação do ministro das Comunicações, oito meses atrás, vem a propósito de proposta que está sendo feita pelo ex-ministro da SECOM-PR, Franklin Martins. Em seminário promovido pela AJURIS, em Porto Alegre [3 de novembro] e no seminário do Partido dos Trabalhadores em São Paulo [25 de novembro], ele reiterou: “Podemos construir um terreno comum para o debate do marco regulatório das comunicações no Brasil: a Constituição Federal. Podemos assumir o compromisso de não aprovar nenhuma regra que fira a Constituição e de não deixar de cumprir nenhum preceito constitucional. Nada aquém, nem nada além da Constituição” [cf. http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18897].

Celebrando a CF88 como portadora de princípios e normas que, por óbvio, deveriam já estar sendo cumpridos, se pensarmos em perspectiva histórica, não deixa de ser emblemático da situação em que nos encontramos que princípios e normas promulgados há mais de 23 anos e, na sua maioria, não regulados – sejam ainda objeto de proposta para se constituir “no terreno comum” para um marco regulatório das comunicações. 

Não deveríamos estar hoje em outro patamar, tratando de regular as transformações tecnológicas e suas imensas implicações para o setor nas últimas décadas?

O tamanho do atraso
Quando do pronunciamento do Ministro Paulo Bernardo na CCTC&I, em artigo publicado no Observatório da Imprensa nº 637, comentei: “regulamentar os artigos da Constituição já seria um avanço importante (…) o atraso do Brasil no que se refere à regulação do setor de comunicações continua extraordinário. Tanto é verdade que apenas a regulação de normas e princípios que estão na Constituição há mais de vinte e dois anos já significaria um avanço importante” [cf. http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/mais_de_duas_decadas_depois].

Não se pode esquecer que as normas e princípios que estão na CF88 foram resultado de um dificílimo embate entre os interesses em avançar na democratização do setor e aqueles que, àquela época e ainda hoje, defendem o status quo legal. Tanto isso é verdade que, na Constituinte, a Comissão onde estava o tema da comunicação foi a única que não chegou a ter um relatório final. Os acertos para a redação do capítulo V (do Título VIII) – Da Comunicação Social – foram feitos já no âmbito da comissão de sistematização. 

Além disso, o que finalmente se conseguiu inscrever na CF88 em termos de avanço para a área, resultou de anos de articulação da sociedade civil em torno de bandeiras concretizadas através de Emendas Populares e pressão diuturna durante todo o processo constituinte. Nada veio de graça [http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_comunicacao_na_constituinte_de_8788].

Existe “consenso” em torno da CF88?

A CF88 seria hoje aceita como um “terreno comum” pelos atores que tem sido determinantes na formulação das políticas públicas para o setor de comunicações?

O que tem acontecido em relação aos princípios e normas constitucionais nos últimos 23 anos?

(1) A maioria das normas e princípios referentes às comunicações que estão na CF88 não foram regulamentadas [cf. http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_comunicacao_tem_algo_a_comemorar]. A situação é tão grave que, desde novembro de 2010, está no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (AD0) pedindo que se declare “a omissão inconstitucional” do Congresso Nacional [cf. http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/tres_boas_noticias].

(2) O artigo 222 foi alterado em momento de crise dos grandes grupos de mídia para atender a seus interesses, isto é, permitir a entrada de capital estrangeiro em até 30% na propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão (EC n. 36/2002).

(3) Dispositivos regulamentados não são cumpridos. É o caso do artigo 224 que prevê a criação do Conselho de Comunicação Social como órgão auxiliar do Congresso Nacional, regulamentado por lei em 1991 e que não vem sendo cumprido há mais de cinco anos [cf. http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/cinco_anos_de_ilegalidade].

(4) Dispositivos regulamentados são considerados – pasme-se – “inconstitucionais”. O exemplo emblemático é a “classificação indicativa”. 

O inciso I, do § 3 ao artigo 220, diz: 

Compete à lei federal:

Regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendam, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada(grifo meu).

Além da CF88, a classificação indicativa se apóia no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), nas Portarias MJ nº 1.100/2006 [regulamenta a Classificação Indicativa de diversões públicas, especialmente obras audiovisuais destinadas a cinema, vídeo, DVD, jogos eletrônicos e de interpretação (RPG)] e nº 1.220/2007 e no Manual da Nova Classificação Indicativa – Portarias SNJ nº 8/2006 e SNJ nº 14/2009 [regulamentam as obras audiovisuais destinadas à televisão].

Apesar disso, o presidente do conselho editorial e vice-presidente das Organizações Globo afirma: “ao longo dos anos, legislações infraconstitucionais e até mesmo portarias ministeriais, ao vincular as faixas etárias a horários de exibição, tornam impositiva uma classificação que deveria ser indicativa. (…) É verdade que o Ministério da Justiça aceitou um sistema de autoclassificação. (…) os encarregados do Ministério da Justiça de aceitar a classificação de programas ou de reclassificá-los se julgam sabedores do que é ou não tolerado pela sociedade, dentro de um padrão estreito que em tudo faz lembrar a censura” CONAR, “Autorregulamentação e Liberdade de Expressão”; 2011; p. 48).

Já o diretor da Central Globo de Comunicação é mais direto. Afirma ele: “É uma grande ameaça à liberdade de expressão. O que foi feito é que deram um golpe ao se vincular classificação de idade com faixa horária” [cf.http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/classificacao+de+idade+com+faixa+horaria+e+ataque+a+liberdade+de+expressao/n1597097958685.html].

(5) Alguns dispositivos ainda não regulamentados são implacavelmente combatidos pelos grupos de mídia. Um exemplo é o § 5º do artigo 220 que reza “Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. 

Como se sabe, o caminho mais curto para a concentração da propriedade no setor é a “propriedade cruzada”. Sem a sua regulamentação, portanto, não haverá como impedir a continuidade da oligopolização e/ou da monopolização, características históricas do setor no nosso país. No entanto, a principal associação representativa dos concessionários de radiodifusão, a ABERT, considera que, em relação ao marco regulatório, “discutir (sic, discutir!) temas como propriedade cruzada, significaria um retrocesso” [cf. ABERT, Contribuições para o Seminário do PT; in Seminário “Por um novo Marco regulatório para as Comunicações: o PT convida ao debate”; Partido dos Trabalhadores, 25/11/2011].

Déjà vu

Para muitos de nós que participamos dos movimentos civis a favor da democratização das comunicações antes mesmo do processo Constituinte, retornar aos temas anteriores à Constituição de 1988 tem um desconfortável sentimento de déjà vu. Reaviva-se o clima de intolerância que caracterizou as disputas daquele período e que, infelizmente, tem caracterizado boa parte dos raros debates em torno da formulação de políticas públicas com a participação dos grupos privados de mídia, desde então. Lembre-se, por exemplo, a retirada da maioria dos grupos empresariais da comissão de organização da 1ª. CONFECOM, e o boicote e a satanização dela que se seguiram.

De qualquer maneira, se o “terreno comum” possível para a negociação democrática de um marco regulatório para as comunicações for a CF88, que assim seja. 

O fundamental é que, a exemplo do que ocorre nas principais democracias contemporâneas, a sociedade brasileira também encontre seu caminho para a efetivação do direito à comunicação, vale dizer, da presença e da participação de mais vozes no espaço público brasileiro.

A ver.

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