Blo(G)queado(S) sobre a ditadura civil-militar pós-1964

Devemos insistir em uma memória que, em primeiro lugar, construa o lugar da violência e do arbítrio em nossa história recente
(Francisco Carlos Teixeira da Silva – Historiador)

Passados 47 anos do Golpe de 1964, cada ano aumenta a rememoração, a qual ganha lugar em relação à comemoração. A exceção são alguns que, ou se locupletaram e foram coniventes com o período, ou têm uma saudade ideológica dos tempos da Ditadura e até hoje não se arrependeram, pois continuam comemorando o Golpe como se fosse uma “Revolução”. Pior, uma “revolução democrática”.

Alguns blogs têm divulgado um convite no qual o Comando Militar do Nordeste, através do general Américo Salvador de Oliveira, estaria convidando para a solenidade militar alusiva à “revolução democrática de 31 de março de 1964”. Um deles, o Resistência Militar. Este se autodenomina “um espaço democrático, onde a voz da caserna tem peso e qualidade. Um espaço anticomunista e contrário a tudo que de ruim está sendo feito pelo PT e seus agrupamentos do mal”.

Em outro, de Lício Maciel, é postado um texto de um tal de Ivo Salvany, protótipo do discurso de direita, no qual o autor afirma: “Em 31 de março próximo, todos aqueles que foram terroristas , bandidos, guerrilheiros, cruéis comunistas, mercenários apátridas (…) que estão hoje vivos, bem espertos e se locupletando no poder, na presidência, no congresso, nos mensalões, nas indenizações indecentes, na orgia dos ministérios, nos imorais cartões corporativos, ONGs fantasmas, fundos de pensão, etc, em Brasília e alhures , por dever de justiça e reconhecimento moral aos misericordiosos, ímpios e santos militares da revolução de 1964, deveriam se reunir e em grande romaria irem se ajoelhar, em ato de contrição, em frente ao Quartel General do Exército, no SMU, para penitencialmente saudarem e agradecerem de coração aos santos militares, daquela época, que os deixaram vivos para que, hoje, se bamburrem e enriqueçam nas esbulhadas tetas deste desgoverno”.

Mas como a História contada é disputa, é luta, inclusive de classes, vamos ao outro lado.

Em 1964[1], no Brasil, João Goulart foi deposto por Golpe Civil-Militar; Miguel Arraes, governador de Pernambuco, foi preso pelas tropas do IV Exército; o prédio da União Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro, foi destruído por um incêndio criminoso; iniciaram censuras, prisões, torturas, desaparecimentos e exílio de lideranças políticas, camponesas, sindicais, estudantis, funcionários públicos e intelectuais, além da suspensão de direitos políticos de ex-presidentes e outros políticos; a polícia militar invadiu a Universidade de Brasília (UNB); foi criado o famigerado Serviço Nacional de Informações (SNI) … Viria muito mais.

Como já disse o cientista político Caio Navarro de Toledo, 1964 foi um Golpe contra a “INCIPIENTE DEMOCRACIA POLÍTICA BRASILEIRA”, contra as reformas políticas e sociais, contra a politização das organizações da sociedade civil (Ligas Camponesas, CGT, UNE, Partidos de esquerda como PCB ou PCdoB) e contra o debate cultural e intelectual que vivia o País (CPCs e MEBs, revistas como a Brasiliense e muitos jornais populares), destruindo as organizações políticas e reprimindo os movimentos sociais progressistas.[2] Foi também um golpe reacionário da direita e das classes dominantes e seus ideólogos, civis ou militares, como explicou o filósofo João Quartim de Moraes, tendo atrás de si o suporte estratégico, político e militar dos Estados Unidos.[3]

O saudoso René Dreifuss demonstrou, em 1964: a conquista do Estado, com farta documentação, como empresários, banqueiros e outros, nacionais e estrangeiros, contribuíram para a fomentação do Golpe no Brasil. Entre eles, o Banco Itaú, a Sul-América Capitalização, a Esso, a Companhia Merck do Brasil, a Ultragás, as Lojas Americanas, a Antártica Paulista, a Brahma, a Coca-Cola, a Kibon, a Souza Cruz, a Melhoramentos, a H. Stern, a Klabin Celulose, a Companhia Doca de Santos, a Light Serviços de Eletricidade, a Votorantin, o Estado de São Paulo, a Folha de São Paulo e muito outros.[4]

Como na Alemanha nazista, que teve o suporte da Wolkswagen, da Lufthansa, da Bayer e tantas outras grandes empresas, mas responsabilizou apenas o hitlerismo, no Brasil, certa visão de história ainda reproduz a versão da responsabilidade da Ditadura apenas aos militares, através de categorias conceituais que pouco explicam a aliança civil-militar que governou o Brasil de 1964 a 1985, como “Anos de Chumbo” ou “Guerra Suja”. Esta estratégia discursiva, calcada nas meias-verdades direcionadas para os interesses das classes dominantes, de forma idêntica como fazia a propaganda dirigida por Joseph Goebbels, na Alemanha pós-1933, apenas mostra a “ponta do iceberg” da Ditadura de Segurança Nacional no Brasil, quando os militares foram a parte visível de um enorme bloco de gelo, sustentado pelos interesses estrangeiros e seus sócios nacionais.

Por que, então, a saudade daquele período? Militares ou civis, que nada têm a ver com o período devem sentir-se orgulhosos de seus colegas de armas e comandantes que não compactuam e defendem a Ditadura e a repressão, porque sabem do seu papel constitucional desde 1988.

Nosso País deve consolidar sua democracia, sob o ponto de vista político, social e econômico, através de outro projeto de desenvolvimento que não repita o elitismo, o entreguismo e a eliminação de brasileiros que lutavam por um Brasil democrático e igualitário. Lutavam sim pela democracia e por isso chegamos até aqui, com todos os limites e as conseqüências históricas daquele Brasil que a maioria negou politicamente há tantos anos, nos idos de 1985, um Brasil que até hoje continua buscando a verdade sobre o período e não a vingança como certos blo[g]queados teimam em argumentar.

 [1] A sequência do artigo tem a contribuição decisiva para a sua elaboração da historiadora Glaucia Vieira Ramos Konrad.

[2] Cf. 1964: o Golpe contra as reformas e a democracia. In. Revista Brasileira de História. Dossiê Brasil: do ensaio ao Golpe (1954-1964), v. 24, n. 47. São Paulo: ANPUH-CNPQ, jan. a jun. de 2004, p. 13-28.

[3] Esta temática foi desenvolvida por Quartim de Moraes em Liberalismo e ditadura no Cone Sul. Coleção Trajetória, n. 7. Campinas: IFCH/Ed. da Unicamp. 2001.

[4] Ver DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 1987.

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