“O Cavalo de Turim”: Armadilha dos tempos

Diretor búlgaro Béla Tarr discute os efeitos das mudanças sociais numa área rural de seu país no final do século XIX e suas consequências para dois solitários camponeses

     O que Nietzsche tem a ver com “O Cavalo de Turim”? Aparentemente nada. Aparentemente tudo. Nada pelo que supostamente teria presenciado o filósofo alemão em O3 de janeiro de 1889 em Turim. Tudo, pois é sua ideia que permeia o filme do cineasta búlgaro Béla Tarr na transição do século XIX para o século XX. Ou seja, Deus deixou o homem entregue à própria sorte. Mas Tarr, a co-autora do argumento Ágnes Hranitzky e o co-roteirista László Krasnahorkai transfiguram sua visão, mostrando o quanto o homem independe de Sua ação. Ele, o homem, engendra os fatos que influenciam sua própria vida.
 

      Embora estas ideias matizem o filme, o que predomina é a percepção do pai (János Derzi) e da filha (Erika Bólk) de que algo muda em torno deles. Esta mutação, simbolizada pelo vento incessante, vai aos poucos mostrando decadência de crenças, de costumes, do meio em que vivem. Ela é perceptível na mudança de comportamento do cavalo, na chegada súbita do vizinho (Mihály Kormos) que faz a ligação do choque sofrido por Nietzsche e a visão filosófica de Tarr, na buliçosa passagem dos ciganos e na perda de suas condições de vida. E sem interferência alguma deles, salvo uma rápida reação, que em nada resulta.
 

    Durante 146 minutos, o espectador fica preso à vida do pai, da filha e do cavalo no campo. Pai e filha vivem do que transportam numa velha carroça. Seu cotidiano é marcado por raras frases e ações repetitivas. Seus bens se restringem ao necessário. A única memória que as filha guarda é da mãe, numa foto. Porém Tarr, como de costume, estrutura o filme de forma a dar sentido às ações submersas. Muitas vezes nada acontece nos entrechos. Mas cada um deles acrescenta um detalhe, que esclarece o todo.
 

    Nas seis partes de “O Cavalo de Turim”, Urso de Prata no Festival de Berlim deste ano, isto é mais que perceptível. Apenas três exemplos: a cisterna que seca, a escuridão súbita, a fome que desaparece. É a metafísica se mesclando ao materialismo. Fatos externos, ação do homem, perda do sustento, logo a sobrepõem. E pai e filha, numa reação ao que lhes acontece, decidem escapar. Esta é a única ação que se impõem, assim mesmo destituída de revolta. Eles não podem nem conseguem mais alhear-se ao que ocorre em seu entorno. Decisões tomadas distantes deles mudam radicalmente sua existência, no entanto quando percebem é tarde.
 

     O pai, que desconfia do que o vizinho diz, só demonstra preocupação quando é atingido pela desagregação. Segundo o vizinho, “ela foi provocada por seres maus, que a tudo dominam, sem interferência de Deus. Os seres bons foram largados, ninguém mais os protege. Tudo, ele diz, está decadente, podre, desmoronando. O fim, decreta, está próximo”. Então, o caos se estabelece. Os próprios ciganos, provocativos, anunciam o mesmo, mas em clima de festa. Estão partindo para outro continente. O pai não consegue captar sinais e verdades: para ele tudo continuará igual, mesmo ruindo à sua volta. É uma boa metáfora para a crise sistêmica-estrutural na União Européia e nos EUA.
 

     Mas é o cavalo, um dos personagens emblemáticos do filme, que melhor traduz as metáforas embutidas em “O Cavalo de Turim”, exibido no Indie – 11ª Mostra de Cinema Mundial de BH. Ele é o terceiro vértice do trio, o que garante a sobrevivência de pai e filha. É, em suma, o cavalo maltratado que tanto indignou Nietzsche. Quando não mais suporta a carga e as ações externas o paralisam, ele passa a merecer atenção do dono e seu comportamento é levado em conta. Não mais sustenta o que restou da família, pode, enfim, descansar, ainda que em meio ao caos. Desnecessário dizer a classe que ele representa.
 

      Pelo que se vê; o filme discute a incapacidade do capitalismo atual de escapar à armadilha por ele criada. Outros dois filmes, de modo adverso, trataram do mesmo tema. Lars von Trier, em “Melancolia”, radicaliza ao propor a extinção do planeta, Terence Malick, em “A Árvore da Vida” (veja na próxima semana), prefere soterrar o criacionismo, apoiando-se no darwinismo. A visão de Tarr é menos provocativa. Prende-se mais à reflexão, à crítica à indiferença, ao comodismo, à ausência de buscas de alternativas. Sem dúvida contundente, mas sem as mesmas repercussões que os dois outros filmes citados.
 

     O cinema reflete desta forma sobre a falta de perspectivas do capitalismo atual. Traduz o que se vê nos movimentos político-sociais no Oriente Médio,  na Europa, na América Latina (Chile). Nenhum deles tem o viés político-ideológico. Não põem em cheque o sistema capitalista. Reivindicam apenas reformas pontuais. Mesmo que percebam a crise do neoliberalismo, a falência do Estado burguês, a ensandecida luta do capital financeiro, e não só ele, para não sucumbir, e o esgotamento do próprio capitalismo. Não enxergam, assim, alternativas político-ideológicas ao sistema capitalista. Sem apontá-las, ele terá sobrevida na UTI, onde já se encontra.
 

      “O Cavalo de Turim”. (“Wa Tornirói Ló”). Drama. 2011. Hungria/Alemanha/Suiça/EUA. 146 minutos. Preto e Branco. Fotografia: Fred Kelemen. Música: Mihály Vig. Argumento: Ágnes Hranitzky/ Béla Tarr. Roteiro: László Krasnahorkai/ Béla Tarr. Direção: Béla Tarr. Elenco: János Derzsi, Erika Bók, Mihály Kormos.

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