Unidade e diversidade num projeto de nação

Em 2003, na Itália, num dos congressos do Partido da Refundação Comunista Bertinotti discursava em favor dos movimentos como estratégia política renovadora: o "movimentismo". Dizia ele que os comunistas levavam “chumbo sobre as asas”. Ao meu lado, um operário maduro comentou com o camarada ao lado: “se ele insiste tanto em movimentos, porque não fala principalmente do movimento dos trabalhadores?” – uma bela ironia.

Isso me veio à lembrança em recente debate na Frente Brasil Popular, quando questionava afinal que resultados provocou na esquerda brasileira o Fórum Social Mundial quando insistia em uma apologia dos movimentos sociais e do movimentismo e mais: opondo-os quase abertamente aos partidos políticos. Deu-se balanço nisso?

Pano rápido, para um fenômeno de natureza assemelhada que cresce entre a esquerda brasileira. Nos atos na Casa de Portugal quando da campanha de Haddad em 2016, com a presença de Lula, não há dúvida de que os momentos de maior aplauso do público ocorriam quando se proclamava o orgulho identitário. Nem CUT ou CTB ou UNE ou MST eram tão aplaudidos, com exceção do próprio Haddad e Lula. “Quero proclamar o orgulho de ser mulher, negra e lésbica”, por exemplo, entre outros, indicando o direito de identidade, de reparação e-ou emancipação. Merecia mesmo aplausos, mas: e a condição de trabalhadora e brasileira? Porque não devia provocar um orgulho pregresso à identidade dos lutadores e lutadoras sociais?

Falo aqui de bandeiras emergentes e que cada vez mais enviesam a perspectiva totalizante de um novo projeto de sociedade ou desequilibram o debate ideológico-cultural necessário à esquerda. Questão política chave não é a valorização ou não dos movimentos pelos direitos difusos, integrantes da luta democrática, mas a estratégia visível ou não, embutida ou pressuposta, para uma transformação real das estruturas que exploram e oprimem. Estaria superada a noção classista dos trabalhadores como classe hegemônica da luta por abrir caminho ao socialismo? Estaria superada a noção de nação autônoma e soberana e a necessidade do desenvolvimento nacional para integrar por completo o povo à nação? Ou um Estado Nacional autônomo, democrático e forte para induzir o desenvolvimento e fazer a inteira defesa do interesse nacional face ao poderio da financeirização, que arrasta povos e nações inteiras ao desmonte nacional, sem alternativas para se afirmar? Numa nação submetida ou neocolonizada, que direitos sociais e de identidade nacional subsistirão?

A questão vai fundo, portanto, não é moda passageira. A base dessa visão é uma ideologia determinada, a do multiculturalismo, constituída para contrastar a hegemonia da esquerda nos movimentos sociais e que, ironicamente, penetrou fundo no seio das esquerdas, alimentando essa amputação do sentido de pertencimento nacional e de classe social. Ou seja, um antimarxismo declarado. Uma ideologia transformada em arma poderosa da consolidação do establishment da globalização neoliberal e, como diria Marx, se transformando em força material quando penetra a consciência de largos setores dos movimentos que se querem de esquerda. Infelizmente.

São conhecidas, na literatura especializada, as ações de infiltração promovida por órgãos de inteligência, por meio de ONGs e Fundações junto aos cursos de ciências sociais, financiando programas e concedendo generosas bolsas de estudo e viagens ao exterior para estimular a expansão de ideias multiculturalistas. Zbigniew Brzezinski, um dos principais estrategistas norte-americanos, em seu livro “Entre duas eras” – cuja edição original é de 1971 – preconiza abertamente estratégias geopolíticas de promoção da fragmentação e divisão em países chaves, no contexto da disputa da guerra fria.

Mesmo para autores de pensamento humanista, como o italiano Mauro Maldonato (Na base do farol não há luz, Edições SESC, 2016, SP), "a pluralidade das diversas nações (e eu acrescento, no interior de cada nação) está a uma enorme distância daquilo que hoje é definido como "multiculturalismo, palavra-chave da discussão cultural, moral e política de nosso tempo". De origem democrática nos anos 1970, isso se prestou a muitas tensões e mal-entendidos, mas o eixo de seu significado se deslocou desde então, de modo que, segundo o Autor, "as identidades individuais começam a parecer uma representação da relação entre si e o outro; (…) respeitar o indivíduo significa respeitá-lo por aquilo que o define (sua cultura, comunidade, história, língua). Isto é (…) a sociedade contemporânea aparece não tanto como uma comunidade de indivíduos (e eu acrescento, em relações de classes), e sim como uma união de comunidades".

Lido concretamente: não uma comunidade como nação e em relações de classes sociais, mas a subordinação dos direitos do indivíduo aos do grupo étnico (ou outro) de pertencimento; amplia-se o fosso que separa os cidadãos e acentua a intolerância mútua. Como ironiza Maldonato (e é boa a referência para o Brasil que promoveu a reforma do ensino médio); vamos abolir o estudo de Shakespeare, Aristóteles, Dante e Goethe nas escolas, por que não?

O curioso – e trágico – no caso do Brasil é que essa força de arrasto ideológica sobre a esquerda a faz prescindir de um dos ativos mais poderosos para a luta transformadora, a saber, ser o Brasil uma nação com um povo uno, amalgamado ao longo de séculos em luta, povo miscigenado falante de uma única língua, com território, população e riqueza entre as cinco maiores do mundo. A unidade étnica dos brasileiros, aliás, é um trunfo estratégico na construção da Nação; países com problemas étnicos acentuados, via de regra, apresentam maiores idiossincrasias na coesão em torno de um caminho e de um projeto nacional.

Isso é o que abre possibilidades de lutar pelo desenvolvimento soberano e democrático do país, a base para o atendimento a qualquer e todas as demandas sociais por igualdade de oportunidade, terreno por excelência onde podem vigorar os direitos civis, humanos e de identidades que são reclamados.

Curioso também que tendências de negação de povo e nação em setores de esquerda cresça no Brasil quando surgem novos impasses da globalização neoliberal e nova escala de ameaças às nações por sua afirmação. O Brexit na Inglaterra, a eleição de Trump nos EUA, o crescimento da direita xenófoba na Europa e da antipolítica no Brasil, deviam servir de alerta. A direita empalma o ressentimento e os anseios nacionais de recusa a certo cosmopolitismo ilustrado que proclama a desconexão entre novos movimentos (identitários) e os movimentos sociais e dos trabalhadores.

Nos EUA isso foi claramente estabelecido. Nancy Fraser, professora da New School for Social Research (Nova Iorque), analisando a derrota de Hillary Clinton, aponta para a derrota do “neoliberalismo progressista, aliança entre, de um lado, correntes majoritárias dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBT) e, do outro lado, um setor de negócios baseado em serviços com alto poder 'simbólico' (Wall Street, Vale do Silício e Hollywood. (…) Embora involuntariamente, o primeiro oferece ao segundo o carisma que lhe falta. Ideias como diversidade e empoderamento, que poderiam em princípio, servir a diferentes fins, hoje dão brilho a políticas que destruíram a indústria e tudo aquilo que antes fazia parte da vida da classe média”. Segundo a autora, isso “se deveu à ausência de uma esquerda genuína”.

Isso nos EUA. Mas fica o alerta: será devastador que as possíveis relações entre a luta identitária e por direitos difusos se desconecte de uma agenda classista e nacional.

No Brasil é diferente? Pela positiva, sim, pois não somos um melting pot (como no EUA); ao contrário, formamos um povo uno, como já se disse. Pela negativa também, dada a falta de consciência de nação de grande parte da elite brasileira e da classe média alta -– algo inimaginável que qualquer outro país do centro do sistema e mesmo na Rússia, China e Índia.

Portanto, o risco é real e pode se impor por “deslizamento”, se forem desatentas as correntes de massas e as forças consequentes da esquerda sobre a penetração ideológica liberal e aquela multicultural fragmentadora da identidade social e nacional.

Não há como escapar da centralidade nesse debate: o Brasil não completou sua construção nacional, malgrado as condições que detém para tanto (diferente, portanto, até de outros países “em desenvolvimento” como China e Rússia entre os BRICS). O centro da questão será, neste marco histórico, um projeto nacional e uma estratégia madura para alcançá-lo. O horizonte imediato da luta transformadora será, ainda uma vez, o de forjar um projeto nacional de desenvolvimento com um Estado nacional capaz de fazer a inteira defesa dos interesses nacionais, populares e democráticos – sob direção progressista –, mediante um projeto de Nação que abra caminho para novos patamares civilizatórios e para alcançar a alternativa socialista. Desse modo, tal projeto deve incorporar e subordinar a si a luta pelos direitos democráticos e cidadania, os direitos de identidade, reparação e emancipação, a um todo coeso. Entre os diferentes fins a que pode servir a luta identitária, só este parece de fato consequente e democrático.

Os impasses da globalização neoliberal significam novos desafios para isso, mas também novas oportunidades para o Brasil. Se a esquerda não empalmar a questão nacional ela será instrumento da direita contra o interesse nacional. De modo que se impõe à esquerda compreender como marca de sua identidade a bandeira do projeto de Nação soberana, democrática e a favor dos interesses do povo, apoiada na mobilização do patriotismo popular.

Será a esquerda no Brasil capaz de formular tal projeto? Esse é o verdadeiro desafio. Ela sempre se confundiu, desnorteou ou dividiu quanto à bandeira nacional. Mas a experiência é rica e acompanha todo o século 20, de luta anti-imperialista e antineocolonial – a Aliança Nacional Libertadora, ou a tática frente à ditadura de 1964, unir o povo contra a crise, da ditadura e da ameaça neocolonial; hoje, na luta por um novo projeto nacional de desenvolvimento como caminho e estratégia para o socialismo.

A experiência de outros povos também é importante: a URSS uniu todo o povo para a grande guerra patriótica; a China e Vietnã também, para se livrar dos grilhões neocoloniais; mesmo em terreno capitalista, assim também foi a experiência da Índia. Foram os comunistas que empalmaram a bandeira anti-imperialista e forjaram uma estratégia de frente ampla de forças, como no Uruguai (o Frente Amplio) e na África do Sul (o CNA) – aliás as duas experiências remanescentes até hoje, embora sem hegemonia dos partidos comunistas.

Sem ilusões, certamente. A sociedade brasileira é complexa, nela ocorrem diversas mutações sociológicas e, sem dúvida, tal projeto de nação encerra contradições em sua formulação e construção por longo tempo. Mas podemos ser capazes de entender que elas não devem se transformar em contradições principais e muito menos antagônicas, mas sim, como diria Mao Zedong, em contradições no seio do povo.

É pela experiência que o povo aprende e forja opiniões próprias. Desde que uma esquerda madura eduque politicamente os largos contingentes sociais, pela persuasão como também “a quente”, na disputa política de ideias, das mentes e corações sem recusar as manifestações espontâneas, mas demarcando com clareza política e ideológica contra ilusões liberais ou influências multiculturalistas na estratégia a seguir. É preciso dar nova escala a esse debate, para não enviesar os eixos da luta.

É preciso unir forças, em torno de um projeto nacional, não fragmentar as perspectivas segundo identidades demarcadas; é preciso respeitar e valorizar a alteridade, não pôr no centro das relações sociais as identidades acima daquelas de brasileiros ligados à missão da luta dos trabalhadores pelo socialismo. Proclamar o orgulho de sermos brasileiros, e, ao lado disso, celebrar a diversidade e plasticidade de nosso povo amalgamada em torno de um projeto universal que se realiza no seio de cada nação.

Os comunistas no Brasil têm isso em seu DNA. Como no hino oficioso deles, do grande gênio brasileiro Jorge Mautner: “A bandeira do meu partido, vai entrelaçada com outra bandeira, a mais bela, a primeira, verde-amarela a bandeira brasileira”.

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