Temperatura elevada na transição

Quando a sociedade brasileira ainda vivia os primeiros impactos da espetacular assunção do operário Lula à presidência da República do maior país da América do Sul, o pensamento político avançado punha como hipótese o provável início de um novo ciclo de transformações econômicas, sociais, políticas e culturais, mediado por uma transição da ordem neoliberal vigente a um novo projeto de nação.

Essa transição – necessariamente complexa, conflituosa – teria conteúdo e ritmo em grande medida determinados pela correlação de forças nas esferas política e social. O seu aspecto conflituoso se manifestaria de múltiplas formas, ora aparentemente morno, ora acirrado, reflexo do confronto de interesses de classe entre a elite dominante – o setor rentista em especial – e a maioria dos brasileiros.

Passados doze anos há, sim, a materialização de mudanças substanciais, ainda que insuficientes, na direção de um novo projeto de desenvolvimento. As conquistas sociais inequívocas, mormente a ascensão social de mais de quarenta milhões de pessoas muito pobres ou que viviam abaixo da onda de pobreza, às quais se associam elementos essenciais de afirmação da soberania nacional e da democratização das relações entre a instituição governamental e o conjunto da sociedade, conformam, no seu conjunto, um tempo de progresso.

Entretanto, a realidade impõe a continuidade dessas mudanças, em patamar superior. A manutenção das conquistas sociais, por exemplo, reclama o crescimento econômico apoiado em extensiva ampliação da infraestrutura e dos empreendimentos produtivos industriais, pontas de lança do desenvolvimento economicamente sustentável. Isso esbarra em obstáculos de natureza macroeconômica, que envolvem poderosos interesses da oligarquia financeira e aliados. Implica transferência de renda, operação que jamais se deu pacificamente em nosso país.

Assim, vivemos uma fase de acirramento desmedido do entrechoque entre a elite rentista e conservadora versus trabalhadores, camadas populares e empresariado do setor produtivo. Esse entrechoque esteve na essência da tremenda disputa pela presidência da República, em outubro passado; prossegue no que se tem chamado de "terceiro turno" e se expressa em verdadeira queda de braço em torno de iniciativas que o governo promove no sentido de destravar o crescimento econômico.

A peleja em torno da mudança da regra de cálculo do superávit primário, por exemplo, que transcorreu a mil graus no Congresso Nacional, tem nesse conflito de classes sua essência. Não se trata de mudar a Constituição, nem de escapar de "crime de responsabilidade fiscal", como acusa tendenciosamente a oposição. Trata-se de retirar, com justeza, os valores correspondentes às desonerações fiscais adotadas face à crise global co o estímulo à indústria e garantia do emprego e do poder de compra dos brasileiros; e os investimentos do PAC, destinados ao incremento da infraestrutura para a retomada do crescimento econômico e melhoria de serviços públicos essenciais. A pressão da oposição partidária e midiática, sob o manto de uma suposta “defesa da legalidade”, para manter a regra anterior, pretende garantir a drenagem de recursos públicos para os bancos privados que especulam com a dívida pública.

Tal como Lula, que se elegeu duas vezes presidente da República em minoria no Parlamento e teve que efetuar muitos acordos políticos para alargar a sua base de sustentação, Dilma agora, mais até do que no seu primeiro governo, é desafiada a manobrar com extrema flexibilidade e amplitude para alterar a correlação de forças inicialmente muito difícil. E acrescentar à cena política um apelo efetivo à mobilização da sociedade – a exemplo do que fez no último fim de semana ao se reunir com as centrais sindicais. (Publicado no Blog da Folha).

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