“Eu Não Sou Ele”, duplicidade de intenções

Filme do diretor turco Tayfun Pirselimoglu trata do universo proletário para duplicar busca de identidade e falsas perspectivas

São raras as incursões do cinema atual no universo do proletariado, às voltas com máquinas e tecnologias avançadas. Ele é visto sempre como um ser atormentado pelos baixos salários e desemprego, sem levar em conta seu eu e seu modo de encarar, ele mesmo, seus impasses e ausência de perspectivas na estrutura capitalista em crise. Neste “Eu Não Sou Ele”, o diretor/roteirista turco Tayfun Pirselimoglu inverte este visão, dotando-o de real complexidade, sem estereótipos.

Toda a primeira parte do filme transcorre na caracterização do faxineiro de cozinha industrial Nihat (Ercan Kesal). Entrando na terceira idade, solitário, avesso a badalações, quando não está no trabalho ele se enfurna em seu pequeno apartamento, onde prepara sua própria refeição. Seu contraponto é a também faxineira Ysle (Maryam Zaree), vítima de fofocas dos companheiros, por seu misterioso comportamento. É com estes dois personagens que Pirselimoglu monta sua intrigante narrativa.

Sem fugir ao universo operário, ele desconstrói a fixação necrófila de “Scottie” Fergunson (James Stewart) em Madeleine (Kim Novak), transformando Nihat em seu duplo. Mas as semelhanças com “O Corpo Que Cai” (1958), de Alfred Hitchcock, não se restringem a isto. Vê-se, lentamente, Nihat se mutar-se no outro, numa brilhante composição do ator Kessel, que se vale do minimalismo, com sutis mudanças na face e simples adornos, para efetivá-lo.

Diretor une Kafka, Cortázar e Poe

Nesta mutação, Pirselimoglu envolve o espectador numa trama circular, abrindo cada vez mais janelas, como nas impressões cortazianas. “Há um andar em cima onde moram pessoas que não percebem seu andar de baixo, e estamos todos dentro do tijolo de cristal (1)”. E enovela absurdas situações que levam à outras e outras e outras, tendo o espectador de diferenciá-las para não se perder, entre o real e o imaginário, advindos da situação anterior e da anterior ao infinito.

Nessa junção de Kafka/Cortázar, Pirselimoglu ainda reforça o duplo de William Wilson na criação de Poe e na de Malle, no filme em episódios “Histórias Extraordinárias (*), mostrando o transformar de Nihat no Outro, do qual só conhece o retrato e o que brota da memória de Ysle. ”(…) sua imitação obstinada e sem sentido de meu andar, minha voz, meus hábitos, minhas maneiras! Seria de fato verdade, dentro dos limites da possibilidade humana (…), diz Poe (2). Além disso, Nihat passa a circular pelo meio frequentado pelo Outro, onde o conhece em detalhes.

Esse mutar-se no Outro se torna uma obsessão, pois outras e outras janelas são abertas, numa sucessão interminável, em que Ysle, ela própria como seu duplo, leva-o a reviver situações kafkanianas. E ele tem que se adaptar, para não embaralhá-las. Pode parecer pura metafísica, mas trata-se de trazer o espectador para o mundo da construção da imagem, do mirar-se no outro, para firmar sua identidade, a partir deste. O que inclui perder seu próprio eu, o interior construído pela experiência cotidiana.

Nihat se encontra ao ser o Outro

Deste modo, tornar-se o Outro é, para Nihat, a chance de fugir ao seu eu, à sua vida comum, à solidão e à falta de uma companheira. O Outro leva uma vida agitada, cheia de janelas e perspectivas. Mesmo que seja a de um encarcerado. Ele o percebe ao tornar-se o Outro. A tal ponto que negligencia o preço a pagar. Vê-se nele, embora não o externe, pois é introspectivo, tem certo prazer em fazê-lo. Impossível não ver nisto contradição, mas é desta forma que Pirselimoglu o constrói, e muito bem.

O espectador sempre vê o ambiente da ação. Isto é importante pois ajuda-o a compreender as mutações sofridas por Nihat. Ele sai do apartamento proletário, para o de classe média. Da pobreza de um, para o ter posses do outro. E se apropria do espaço, da companheira, das roupas e do eu do Outro. Porém, Pirselimoglu não descura o papel de Ysle na trama. É ela que o transforma no Outro, pois vê em ambos os mesmos traços.

O mais importante em “Eu Não Sou O Outro” é Pirselimoglu não hesitar no desfecho, cedendo à tentação de torná-lo um acerto de contas violento entre o Nihat e o Outro. Seria hollywoodiano e perderia o sentido. Ele mantém a trama com suas múltiplas janelas, tornando o clima absurdo e desnorteante. Exibido na Mostra de Cinema Mundial – Indie 14, em Belo Horizonte, mostra a boa fase do cinema turco para o prazer dos cinéfilos.

Eu Não Sou Ele. (Bem O Degilim). Drama. Turquia, Grécia, Alemanha França. 2013. 124 minutos. Montagem: Ali Aga. Fotografia: Andreas Sinanos. Roteiro/Direção: Tayfun Pirselimoglu. Elenco: Ercan Kesal, Maryam Zaree, Riza Akin, Mehmet Avci.

Citações:

(1) Cortázar, Júlio(1914/1984), Histórias de Cronópios e de Famas, tradução de Glória Rodríguez, pág. 4, Civilização Brasileira, 1972;
(2) Poe, Edgar Allan, William Wilson, Contos de Imaginação e Mistério, tradução de Cássio de Arantes Leite, pág. 36, Tordesilhas, 2012.

(*) Episódio do filme Histórias Extraordinárias (1968), baseado em três histórias de Poe (1809/1849), dirigidas por Louis Malle (1932/1995), Willliam Wilson, Federico Fellini (1920/1993), Toby Dammit, Roger Vadim(1928/2000), Metzengerstein,

Obs.: O leitor da coluna poderá consultar a programação do Indie 14, São Paulo, 17/09 a 1°/10 próximos, exclusivamente no CineSesc, para ver este filme.

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