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O caso Morel (ou moral?), de Rubem Fonseca

A instauração da ditadura militar no Brasil, cujo recrudescimento, paulatino até o AI-5, vertiginoso após ele, teve impacto direto, amplo e profundo nos meios artísticos intelectuais, que, tendo vivido um período mais alargado de democracia e liberdade de expressão a partir do final da Segunda Guerra, se viu mergulhado na mais absoluta e truculenta censura desde o golpe do Estado Novo.

Por Jeosafá Fernandez*

Rubem Fonseca

Inicialmente perplexa ante o aziago evento de 1º. de abril de 1964, e acreditando nas promessas de rápida restauração dos mecanismos democráticos institucionais, feitas por Castelo Branco, após a suspensão das eleições diretas de 1966, os meios culturais e a intelectualidade brasileira se dão conta da gravidade da situação instaurada e agravada no decorrer, até o fim e para além da década de 1960.

Se é verdade que não há uma relação automática entre realidade e literatura, é também verdade que determinados processos históricos vazam-na inevitavelmente, em razão mesmo da força de impacto desses processos na vida social e na produção intelectual.

Caso a ditadura militar brasileira tivesse restringido sua permanência aos limites temporais inicialmente apontados pelos chamados “militares da Sorbonne”, Castelo Branco à frente, garantidas as eleições diretas de 1966, certamente o desenvolvimento da literatura brasileira teria percorrido outro trajeto diferente daquele configurado pela perenização da ditadura, representada agora por Costa e Silva.

O fechamento do regime, a censura prévia aos meios de comunicação e a institucionalização da violência e da tortura como mecanismos de ação do Estado criaram um caldo de cultura do qual as letras pretas sobre as páginas brancas não puderam escapar.

Face à censura e ao risco de assassínio sob o manto do desaparecimento político, ou dos "autos de resistência", ao escritor brasileiro alguns poucos caminhos se ofereceram, entre os quais a adesão ao regime, o exílio, a clandestinidade ou marginalização e a subversão da linguagem literária como estratégia de não colaboração com o regime e de sobrevivência autoral, no âmbito da legalidade autoritária possível de ser ludibriada – ainda que com previsíveis riscos.

Interditados certos temas e certas abordagens, as gerações de autores das décadas de 1960 e 1970, submetidas a uma panela de pressão, desenvolveram formas muito características de expressão literária, a partir do material fartamente fornecido pela realidade asfixiante.

Contraditoriamente, exato a partir do fechamento representado pelo AI-5 é que surgem as obras mais incômodas ao regime.

Gestadas no período anterior, particularmente durante a conturbada década de 60, nessa época as formas artísticas em algum sentido resistentes à ditadura expressam maturidade no que tange às técnicas composicionais.

Na canção popular, a linguagem cifrada retrata personagens discriminados socialmente; na televisão, o humor escrachado satiriza o discurso oficial; no cinema, a pornochanchada da Boca do Lixo achincalha o moralismo reinante; na literatura (poesia, teatro e ficção), a pesquisa temática e de linguagem incorpora a violência social – uma vez que a política está sob a lupa e o pente-fino da censura – como assunto e como recurso expressivo, articulados em textos tecnicamente híbridos recheados de inconformismo, solidão, sexo, drogas, corrupção policial, lirismo e muito sarcasmo.

Esses textos maliciosamente fragmentados e embaralhados se oferecem ao leitor como válvulas de descompressão de tensões intelectuais e afetivas tremendas, e como bombas de efeito retardado, a colaborar com agulhadas para o colapso do regime num futuro quiçá a perder de vista.

Boal, Vianinha, Dias Gomes, Guarnieri, no teatro, toda a Geração Marginal ou Mimeógrafo, na poesia, João Antônio, Plínio Marcos, Márcio Souza, Ivan Ângelo, Silviano Santiago, Antônio Calado, na ficção, entre outros compartilham a angústia do escritor brasileiro desse período, e expressam em suas obras as tensões verdadeiramente dramáticas depositadas em seus espíritos e em suas sensibilidades pelas notícias vazadas, à boca pequena e de boca em boca, sobre os martírios nos porões dos DOI-CODI, DOPS, CENIMAR ou do II Exército, da Casa da Morte em Petrópolis, a título de exemplo, mas não somente.

A obra de Rubem Fonseca (questionado de muitos lados por seu envolvimento mal explicado com a ditadura) não se alheia aos mesmos ingredientes que ora salgam, ora azedam, ora apimentam as obras dos autores cuja maturidade literária coincidiu com esse tempo – que não foi ainda de todo superado, haja vista as ácidas polêmicas em torno do direito dos familiares dos desaparecidos políticos ao acesso aos documentos do período, em posse das Forças Armadas.

Se os crimes da ditadura só foram tratados enquanto tema literário ao fim do regime, e ainda assim de forma indireta, como no romance “Em Liberdade”, de Silviano Santiago, o crime comum proliferou enquanto assunto de romances e contos, nos quais a violência policial compareceu, prenhe de ambiguidades, deixando entrever a crítica ao regime – o que nem sempre escapou à lupa disforme da censura, como no caso de “Feliz Ano Novo”, de Rubem Fonseca, cuja circulação foi proibida por despacho direto do então ministro da Justiça, Armando Falcão, em 1975, sob a alegação de “exteriorizar matéria contrária à moral e aos bons costumes”.

Rubem Fonseca, cuja carreira literária se inicia com a publicação de contos em princípios da década de 1960, tempera seus enredos mergulhados nas trevas do submundo policial com os ingredientes oferecidos pela realidade repressiva dessa década e da posterior – repressão que via de regra, partindo das motivações políticas, termina por atingir todos os domínios da vida social e individual.

Em seu primeiro romance, de 1973, O Caso Morel, todos os ingredientes da ditadura estão postos: violência e corrupção policial, repressão sexual e pornografia, luta de classes e censura, drogas, desbunde, comunidades alternativas, esoterismo entre outros.

Nesse romance, Paulo Morel, na verdade Paulo Morais, preso por um crime que cometeu ou não, redige uma “biografia” para Vilela, um escritor amigo do delegado Matos, responsável pela detenção do mesmo Morel.

Nessa “biografia”, em que os nomes das mulheres com as quais Morel se envolveu estão encobertos igualmente por codinomes, o prisioneiro revela sua poligamia, aceita com naturalidade pelas parceiras, que convivem com ele no mesmo casarão do bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, em que ele exerce a profissão primeiro de fotógrafo publicitário e depois de artista plástico premiado.

Da relação sadomasoquista mergulhada na violência física com Joana (na verdade Heloísa), ninfeta de 20 anos de idade, “filha de embaixador”, à relação lírica com Carmen (na verdade Lilian Marques), prostituta que posa para fotos publicitárias, Paul Morel (ou Paulo Morais) é a representação do artista dilacerado entre o sucesso burguês, que implica na adesão à lógica da arte enquanto mercadoria (que ele abomina) e a realização da felicidade, refletida na liberdade de criação artística e de exercício da sexualidade (o que ele busca a todo custo).

Não deixa de ser extremamente sarcástico que a personagem Joana, que na “biografia” de Morel manifesta o desejo expresso pelo fim da arte, seja a sadomasoquista assassinada ou pelo mesmo Morel, ou por um faxineiro de hotel, ou por um seu, dela, admirador platônico, ou ainda por um outro agente insabido.

A incapacidade de Joana em se realizar sexual e afetivamente com Morel por meio dos fetiches sexuais – que ao final das contas são encenações voltadas para a excitação da libido – a leva a primeiro pedir, depois como que exigir dele verdadeiras sessões de tortura como mecanismo para atingir orgasmos cada vez mais intensos e arriscados.

Não se trata mais da simulação, da encenação, do fetiche ou do ritual erótico que precede, envolve e culmina no orgasmo, mas do orgasmo impossível de ser obtido sem a estimulação física proporcionada pela dor em doses crescentes, nas quais a hipótese da morte entra como componente de risco.

Rubem Fonseca, aqui, em meio à ditadura do moralismo, tira os véus da perversão sexual e discute, a partir da relação Morel-Joana, os limites entre a arte (o fetiche, o ritual simbólico que envolve o amor) e a realidade (a violência que irrompe da confusão entre a encenação da violência e a própria violência).

Até onde os pontapés de um Morel embriagado foram os responsáveis pela morte de Joana, a ninfeta endinheirada, egocêntrica e sadomasoquista, que desejava a morte da arte e pedia chutes para que obtivesse prazer?

As reflexões suscitadas por essa relação visceral entre os dois são muitas e de diversas naturezas. Há, sem dúvida, o questionamento frontal da repressão sexual, do recalque emocional que a violência física, longe de compensar ou aplacar, agrava. Se estamos aqui a um passo de Freud ou de Reich, é uma questão muito para além da literatura. Mas há também a alegoria do processo criativo na literatura e na arte.

Joana, na "verdade” Heloísa (todas as verdades desses romance precisam ser emolduradas por aspas), que deseja o fim da arte por considerar que ela, a arte, no estágio a que chegou, é incapaz de escapar à lógica da mercadoria, portanto sendo melhor que se acabe de uma vez, deseja, contraditoriamente, o artista, Morel, o qual, por sua vez, para manter viva a arte que pratica, envilece-a entre os tubos de esgoto que formam suas instalações. Sua intenção rebelde em relação ao mercado de artes que o deseja, tanto quanto Joana, é de eliminar toda qualidade artística que possa ser objeto de comércio.

No entanto, o que ocorre é que essa mesma qualidade envilecida e refletida em uma obra feita de tubulações de esgoto é premiada na Bienal de Arte – estamos aqui no terreno do escárnio e do escracho –, do que resulta que sua peça artística, feita para não gerar lucro, lhe rende em dinheiro mais do que lhe rendera suas fotos publicitárias, no âmbito de um mercado publicitário turbinado pelas musas de cerveja – Carmen uma delas.

Poderíamos daí inferir que, alegoricamente, Morel assassina Joana quando na “realidade” quisera destruir a Joana-matadora-da-arte?

Pode ser, e pode não ser, pois não é seguro sequer que seus chutes a tenham vitimado, uma vez que pertences da moça foram encontrados com o faxineiro do hotel, fugitivo de crime anterior, que habita escusamente com a esposa um barraco em frente a uma então distante praia da Barra da Tijuca, local em que o corpo da moça teria sido encontrado sem vida, ou não.

Tal como a instalação premiada de Morel, esse romance de Rubem Fonseca se estrutura de maneira inusual, destila violência e tensões-limite, e se constroi de matérias díspares, inclusive estercorária.

Em meio a descrições entrecortadas, surgem laudos periciais em linguagem tecno-científica, à guisa de notas de rodapé. Às descrições similares às de boletins de ocorrência seguem-se frases e parágrafos de lirismo comovente. No auge do prazer sexual de Joana, descrito com luxúria, comparece no discurso do narrador fescenino a preocupação de Morel em “brochar” no mento mais crucial do orgasmo.

A estratégia de espelhamento empregada no romance instaura uma duplicidade labiríntica: Joana é Heloísa; Ismênia é Aracy; Elisa é Marta; Zé, o cineasta, é Khaiub, o falso vidente; a negra Lurdes é Rosário; Carmen é Lilian Marques; Paul Morel é Paulo Morais e ainda Vilela, já que ao final do enredo o texto explicita que ambos são um só.

A certa altura, um tanto agastado com o proselitismo de Joana-Heloísa em torno das modas artísticas expostas em museus, que ao fim e ao cabo testam os limites entre a arte e a própria vida, Morel diz em sua “biografia”:

“Sentia raiva desses sujeitos que tinham uma dose de cretinice e idealismo suficiente para continuar tentando tudo, inclusive ‘acabar’ com a arte”.

Porém, a arte contra a qual Joana investe é a mesma contra a qual Morel produz seus simulacros cheios de sarcasmo, que no entanto são assimilados por galerias e marchands em termos de “arte de vanguarda”, potencialmente valiosa, uma vez que sob império do capital tudo se transforma em mercadoria.

Em seu livro “Argumentação contra a morte da arte”, Ferreira Gullar aborda esse beco sem saída em que a arte contemporânea se exilou: para fugir à prostituição do mercado, tornou-se efêmera e ensimesmada, de modo a se oferecer publicamente como irreprodutível. Todavia, esse exemplar efêmero e irreprodutível, portanto único, por essa mesma razão, vale milhões, e por isso mesmo não é exposto, mas guardado em cofre bancário.

Nesse livro, o poeta-crítico de arte arremete contra um tipo de fazer artístico que, para fugir à reificação, confundiu a arte com a própria vida, a exemplo de performances cênicas automutilatórias que só podem ocorrer uma única vez, já que o pedaço do corpo, um pênis, por exemplo, autoextirpado e atirado à plateia, implica na possibilidade de morte do próprio artista.

O dilema de Joana e Paul Morel é o do próprio escritor contemporâneo: como, a um só tempo, dizer artisticamente a verdade do artista, sem se prostituir, mas vivendo do dinheiro proporcionado pelo exercício da profissão, que na era do capital implica em comércio e coisificação da obra?

No romance em questão, aqueles que têm dinheiro para fruir a obra de arte são os mesmos que o artista detesta com todas as suas vísceras. E, assim como Morel torce, distorce e retorce seus materiais para dar origem a uma obra escatológica ou explicitamente pornográfica, Rubem Fonseca contorce, retalha, cola, monta, desmonta e reorganiza as informações em seu romance para tentar atingir “zonas” não prostituídas do leitor.

As cenas verdadeiramente orgiásticas por ele descritas, como em um filme da Boca do Lixo, assumem, à luz do contexto ficcional, dimensões estranhamente líricas. O palavrão, o baixo calão, situado milimetricamente na frase, ganha sentido e, se em uma primeira leitura choca, em outras posteriores, se afigura exato e insubstituível.

Mesmo a poligamia por ele, Morel, praticada, termina por se dar ao leitor como natural e até mesmo ingênua, nos mesmos termos das comunidades alternativas que pelo Brasil e pelo mundo viscejaram entre hippies e “bichos grilos” da contracultura durante a década de 1970, todos em busca de novas formas não autoritárias de convívio humano.

Nesse romance tudo é excessivo, chocante e imoral, como as performances magníficas tidas igualmente como exibicionistas e imorais de Ney Matogrosso, dessa mesma década.

Se o caldo de cultura que os contextualiza – a realidade repressiva , violenta e sufocante, bem representada pelo despacho de Armando Falcão – é o mesmo, as posturas também são similares: um, a desafiar o falso moralismo da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” com suas máscaras, figurinos e rebolados andróginos, outro, a fazê-lo com sua sintaxe e linguagem provocativas, irmãs da Nouvelle Vague, do "Bandido da Luz Vermelha", das pornochanchadas Boca do Lixo, mas também das neusas suelis de Plínio Marcos.

Fonte: Fonseca, Rubem. O caso Morel. São Paulo, Cia. Das Letras, 1995.