Revolução Cultural similar ao Bolsonarismo?

 Em artigo recente publicado pela revista The Intercept, Rosana Pinheiro-Machado lançou algumas questões polêmicas ao comparar o fenômeno do bolsonarismo, e em especial o movimento “Escola Sem Partido”, com a Revolução Cultural Chinesa iniciada em janeiro de 1966.

Por Luiz Eduardo Motta*

China cartaz

A articulista faz um verdadeiro exercício hercúleo em tentar comparar dois movimentos completamente distintos. A imaginação sociológica, tomando emprestado o termo consagrado por Wright Mills, é sempre bem vinda contanto que tenha bases bem fundamentadas na análise. Mas não é o caso do texto de Rosana Pinheiro-Machado que omite fatos e aspectos importantes da Revolução Cultural Chinesa, e a compara de forma superficial com o movimento da extrema direita brasileira ao afirmar peremptoriamente que o movimento Escola Sem Partido repete as linhas de ação da Revolução Cultural Chinesa. Ao reduzir a problemática da Revolução Cultural Chinesa a seus “métodos”, a articulista deixa de lado um conjunto de fatos e particularidades importantes que destoam completamente do cenário político brasileiro.

Com efeito, Rosana Pinheiro-Machado cita o momento do Grande Salto Chinês na virada dos anos 1950 e 1960, mas deixa completamente de lado e omite o movimento das Cem Flores como também o Movimento de Educação Socialista, este certamente o primado da Revolução Cultural Chinesa embora sem a força política desta. Um aspecto omitido no artigo é a luta interna do PCCh. No artigo de Rosana Pinheiro-Machado, o PCCh parece completamente dominado por Mao Zedong. Se há uma coisa que distingue o grupo de Mao com o grupo de Stalin no PCUS é que este nos anos 1930 já detinha completamente o controle da máquina partidária, enquanto o grupo de Mao se encontrava minoritário e enfrentava uma dura oposição da chamada “ala pró soviética” de Liu Shaoqi, Wang Guangmei e Deng Xiaoping (adeptos da planificação econômica). Luta essa que já vinha se travando desde os idos anos 1950, e bem expresso no texto de Mao Sobre a justa solução das contradições no seio do povo de 1957. O fato aparentemente desconhecido por Rosana Pinheiro-Machado foi a disputa do seio do PCCh sobre qual seria o primado da contradição principal: o das relações de produção sobre as forças produtivas, como defendia a ala maoísta, ou o inverso como era demarcado pela ala moderada (ou de direita como definia Mao)? Essa luta interna terá nos anos iniciais da Revolução Cultural Chinesa o seu ápice, e com o seu término após a morte de Mao e com a ascensão definitiva de Deng, além da prisão da denominada “gangue dos quatro”.

Outro equívoco do artigo: o que diz respeito ao “culto à personalidade” de Mao em …..1949!!! Ora, para quem conhece razoavelmente a história do PCCh sabe que esse culto surge somente a partir da Revolução Cultural Chinesa, lembrando que Mao não era mais presidente da China no início dos anos 1960, cargo que estava sendo ocupado por Liu Shaoqi, o que mostra o quanto havia de luta interna e pouca cristalização de poder entre as correntes do PCCh. O culto à personalidade a Mao foi iniciado em 1966 pelas Guardas Vermelhas, e distintamente do que é suscitado pelo artigo de Rosana Pinheiro-Machado, foi um movimento de base que sustentava e apoiava as diretrizes transformadoras apregoadas pela Revolução Cultural, particularmente nos 23 pontos estabelecidos por Mao que tinham como objetivo a luta contra o autoritarismo e contra o burocratismo do PCCh, e na defesa do controle político pela base**. Posteriormente essas diretrizes definidas por Mao vão estar presentes na Resolução dos 16 pontos que davam a linha mestra da Revolução Cultural, e que foram constituídos na XI Plenária do Comitê Central em agosto de 1966. Se há um equívoco grosseiro no texto de Rosana Pinheiro-Machado é definir numa tacada só ao rotular a Revolução Cultural como um movimento dirigido e criado pela burocracia do PCCh. Desse modo, soa estranho que uma partidária crítica ao socialismo burocrático não reconheça que a fase inicial da Revolução Cultural Chinesa foi marcada por uma infinidade de surgimento de organizações de base que se confrontavam com a burocracia partidária/estatal em nome de uma democracia direta e participativa, além de questionamentos sobre as relações de poder, haja vista que esse tipo de prática faz parte de uma militância ativa e não passiva à verticalização das relações de poder. Não foi casual o surgimento de diversos textos impressos dirigidos criticamente à estrutura burocrática do PCCh, além dos milhares de dazibaos que foram criados ao longo da formação social chinesa. Importa dizer aqui que esse contexto entre 1966-1968 marcou uma luta acirrada dentro da China e do PCCh, levando em conta a entrada do Exército Popular de Libertação dirigido por Lin Biao e pelo próprio PCCh.

Outro aspecto omitido pela articulista é ignorar a mobilização da classe trabalhadora chinesa a exemplo da ocupação das fábricas de Xangai, movimento este constituído por trabalhadores independentes do PCCh. Afinal de contas, onde está o total controle da burocracia partidária sobre esse movimento complexo e diferenciado expressado pela Revolução Cultural Chinesa? Para autora, é suficiente para a nossa compreensão desse fenômeno complexo e contraditório (toda complexidade tem múltiplas contradições, como diria o próprio Mao) é reduzir tudo à “perseguição aos professores e intelectuais”. A educação, com efeito, foi um dos principais aspectos da bandeira da Revolução Cultural Chinesa, mas não foi o único. O antielitismo intelectual nesse contexto foi direcionado aos intelectuais tradicionais, mas não como uma oposição ao saber. Ao contrário, o estímulo era de que os camponeses e operários também estivessem integrados à leitura e aos debates, e que o conhecimento não ficasse restrito ao saber “douto”, e tampouco a classe trabalhadora ficasse limitada as suas tarefas de produção nas fábricas e no campo. No texto Conversa entre as pessoas responsáveis e representantes das Guardas Vermelhas da Capital , Mao se reporta aos extremismos aplicados pela militância das Guardas Vermelhas, e de fato desvios ocorreram ao distorceram em alguns casos o que seria uma crítica à postura de determinados intelectuais e artistas para questões subjetivas de caráter pessoal, o que levou à perseguição injusta de intelectuais. Mas desprezar os princípios de uma nova democracia aos moldes da Comuna de Paris (fonte inspiradora da Revolução Cultural Chinesa) seria o mesmo que jogar a água da banheira com a criança junto. Nessa conversa Mao também cita a importância do conhecimento tecnológico, como também das ciências humanas, não obstante faça algumas ressalvas aos limites dessa área de conhecimento quando esta se limita aos muros acadêmicos, e sem uma objetividade transformadora. Daí a sua defesa pelo autoaprendizado. O próprio Mao comenta numa passagem que nunca tinha lido diretamente Sun Tzu, e apenas o conhecera de forma indireta. Nem por isso a sua contribuição à teoria da guerra deixou de ser importante, pois como o próprio Carl Schmitt destaca em sua Teoria do Partisan, Mao era o Clausewitz do século XX devido à magnitude da sua obra sobre esse tema.

No mais, podemos questionar o que avança em termos de percepção do fenômeno do Bolsonarismo essa comparação forçada com a Revolução Cultural Chinesa? Não seria mais procedente uma comparação com a Alemanha no início dos anos 1930 quando o nazismo foi se afirmando no campo ideológico, pautado por um irracionalismo característico do Bolsanarismo? Ou com o Macartismo dos anos 1950 nos EUA em sua implacável perseguição a acadêmicos, jornalistas e artistas? Ou mesmo uma comparação do avanço da direita ultraconservadora brasileira com o movimento Tea Party? Sabemos sim que a Revolução Cultural Chinesa foi a fonte inspiradora dos movimentos estudantis de 1968/69. Então também condenaríamos esses movimentos estudantis de autoritários por quererem revolucionar o sistema de ensino nas universidades das formações sociais capitalistas? Talvez o mais interessante seria analisar como segmentos da esquerda que se filiam no campo marxista optaram em determinadas conjunturas se aliarem com a direita ultraconservadora em oposição a governos rotulados de burocracias autoritárias, a exemplo de determinadas correntes trotskistas terem apoiado o Movimento Solidariedade da Polônia e ter desembocado num governo de direita com elementos xenófobos e com uma pauta neoliberal. O mesmo diante do apoio a Otan contra o governo Kadafi na Líbia. Sabemos que Kadafi tinha as suas limitações, porém era inexistente a venda de escravos como há hoje por lá, sem falar que havia liberdade religiosa e feminina naquela formação social. E o mesmo se repete hoje na Síria e na Ucrânia. E se nos ativermos em nossas terras tupiniquins, o que pensar a respeito de que parte da nossa esquerda se empolgou com as ditas Jornadas de Junho de 2013 ao crerem ingenuamente, e sem a menor objetividade de análise, que aquilo seria um movimento de conteúdo progressista? O legado disso foi o crescimento da ultradireita de tonalidades irracionais nas eleições de 2014, e a ampliação dela no pleito de 2018.

Em suma, Rosana Pinheiro-Machado ao colocar no mesmo saco o Bolsanarismo com a Revolução Cultural Chinesa, e dissipando os distintos conteúdos objetivos (reacionarismo comparado a um projeto revolucionário, mesmo que esse tenha sido tragado ao longo do curso, e sem falar que enquanto na China se travava uma luta interna no PCCh, aqui o alvo era as políticas adotadas pelos 13 anos de governo PT limitados por uma pauta distributivista e de reconhecimento dos direitos civis a determinados segmentos da sociedade), e se ater ao que denomina de “métodos semelhantes”, cai na mesma trama evocada por Hannah Arendt ao comparar o nazismo com o stalinismo a partir da noção ideológica de totalitarismo como se fossem fenômenos semelhantes. E quem perde com isso é o conhecimento e a percepção crítica de fatos tão distintos.

Sugestões Bibliográficas sobre a Revolução Cultural e a formação do Partido Comunista Chinês

BADIOU, Alain. A hipótese comunista. São Paulo : Boitempo, 2012;
BETTELHEIM, Charles. A China depois de Mao. Lisboa: Edições 70, 1981;
BROYELLE, Claudie. A metade do céu: o movimento de libertação das mulheres na China. São Paulo: Nova Cultura, 2016;
DEL RIO, Eugenio. La teoria de la transición al comunismo em Mao Tsetung. Madri: Editorial Revolucion, 1981;
KISSINGER, Henry. Sobre a China. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011;
LOSURDO, Domenico. Fuga da história. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
MACCIOCCCHI, Maria-Antonietta. De la Chine. Editions Du Seuil, 1971;
MAO TSÉ-TUNG. “Da justa solução das contradições no seio do povo” in Obras escolhidas, volume 5. São Paulo, Alfa – Omega, 2012.
MARMOR, François. Le maoïsme.Vendôme: PUF, 1976;
MARTORANO, Luciano Cavini. Conselhos e democracia: em busca da participação e da socialização. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
NAVES, Márcio Bilharinho. Mao, o processo da revolução. São Paulo: Brasiliense, 2005.
PISCHEL, Enrica Collotti. História da Revolução Chinesa. Sintra: Publicações Europa-América, 1976;
POMAR, Wladimir. A Revolução Chinesa. São Paulo: Unesp, 2003;
QIAOMU, Hu. Trinta anos do Partido Comunista da China. São Paulo: Nova Cultura, 2015;
REIS FILHO, Daniel Aarão. A construção do socialismo na China. São Paulo: Brasiliense, 1982;
RUSSO, Alessandro. “La Revolución Cultural, puso fin al comunismo? Ocho reflexiones sobre la filosofia y la política del momento atual” in HOUNIE, Analía (comp.) Sobre la idea del comunismo. Buenos Aires: Paidós, 2010;

REVISTA LESTE VERMELHO.

*Luiz Eduardo Motta é professor associado de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

**Sobre o culto a personalidade de Mao, Badiou faz uma interessante observação no que diferencia ao culto a personalidade dos PCs, particularmente a Stalin: “Mao encarnou menos a capacidade representativa do partido do que aquilo que discerniu e combateu, no próprio partido, o temível ‘revisionismo’. Ele foi que disse, ou deixou que dissessem em seu nome, que a burguesia é politicamente ativa no partido comunista. Também foi aquele que animou os rebeldes, propagou palavra de ordem ‘Temos razão de nos revoltar’ e encorajou os distúrbios, enquanto era incensado como presidente do Partido. Nesse sentido, em alguns momentos ele foi menos aquele que garantia o partido real parava massas dos revolucionários do que a encarnação de um partido proletário ainda por vir. Ele é como a desforra da singularidade contra a representação (BADIOU: 2012, p.89)”.