Biografia da nação, o livro decisivo sobre a história do Brasil

O jornalista e historiador José Carlos Ruy acaba de lançar a obra Biografia de uma nação – história e luta de classes. O Vermelho traz aqui, na íntegra, o prefácio do livro, assinado pelo professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Júlio Vellozo*.

José Carlos Ruy - Clécio Almeida

Contar a história do Brasil foi uma das aventuras intelectuais mais importantes desses quase duzentos anos de vida independente do país. José Carlos Ruy, que está nessa labuta há muitas décadas, oferece ao público leitor mais amplo e também aos especialistas uma obra decisiva, destinada a figurar entre as mais importantes sobre o assunto.

Nela, o autor segue o ensinamento mais citado do que implementado de Lukács de que a única ortodoxia que os marxistas devem aceitar é a do método. O método usado é o materialismo dialético, mas não em suas versões caricaturais. Ruy consegue se manter longe das vulgatas deterministas que ainda pululam em nossas livrarias e que só ajudam a desmoralizar o marxismo entre os interessados em história.

Rigoroso e conseqüente, Ruy escolhe a luta de classes como fio condutor da história da nação e observa a nossa historiografia partindo desse prisma. Deixando claro o lugar do qual escreve e renunciando prontamente a qualquer ilusão de cientificidade positivista, reconhece que toda história parte de uma interpretação comprometida com uma visão de mundo. Um realismo epistemológico honesto e necessário, sistematizado brilhantemente por Michel de Certeau, monge jesuíta que se dedicava à história das religiões.

Os Estados nacionais são um fenômeno bastante datado historicamente, surgiram na virada do século XVIII para o XIX e se viabilizaram através do árduo trabalho de historiadores, que construíram parte decisiva da argamassa na qual eles estão assentados. A ideia de um nascimento glorioso e cronologicamente bem localizado, construído em todos os países obedecendo a essa missão concreta, não poupou nenhuma das nações que conhecemos hoje. Assim, os alemães gostam de pensar que já existiam antes mesmo do Império Romano, algo que estaria referendado na Germânia, de Tácito, escrita em 98 d. C. Os franceses, por sua vez, acreditam que já eram seus vizinhos naquela época longíqua, o que pode ser visto tanto nas narrativas que projetam uma França no reino de Clóvis, no século V, quanto na divertida patriotada gaulesa de um Asterix & Obelix. Os holandeses se vêem como descendentes de Brino, o bárbaro que liderou uma assembléia anti-romana postado de pé em cima de um escudo. A romantização dos batismos nacionais é extensa e criativa e, em que pese sua base ficcional, traz conseqüências reais para o povo que neles se banham.

Por aqui, os historiadores brasileiros cumpriram uma função semelhante, consagrando como ponto inicial de nossa trajetória a chegada dos ibéricos a essa parte do continente, em 1500. Para isso, contaram com um grande trunfo: a presença de um escritor de talento na frota de Cabral. De cunho impressionantemente literário, a carta de Pero Vaz ao rei de Portugal serviu como uma certidão de nascimento e tanto para esse Brasil mitificado. Apesar de sua força estética, esse início em 1500 se trata, como destaca o autor, de uma construção romântica. De um ponto de vista historiográfico, seria mais adequado dizer que o Brasil nasce com sua independência, em 1822: uma ruptura que pode ser compreendida como parte das chamadas Revoluções Atlânticas que varreram o mundo entre o final do século XVIII e a primeira metade do XIX.

Apontar o caráter mítico do nascimento em 1500 não faz com que o autor exclua a corrente interpretativa que o propõe. Pelo contrário: partindo de elaborações de várias matizes, Ruy tece uma narrativa que é a um só passo uma biografia da nação e dos biógrafos da nação. Trata-se de uma obra sobre a história do Brasil e também sobre sua historiografia. Isso resulta em um texto muito interessante, porque, de fato, história e historiadores devem ser vistos como mutuamente determinados.

Outra força determinante desse livro é Ruy ter escolhido dar lugar decisivo ao escravo em sua interpretação do período anterior à abolição. Dessa forma, o autor dá a devida atenção aos pensadores que viram nas relações de produção escravistas a chave para o entendimento de um país que, durante três séculos, teve a produção de suas riquezas baseada na coação extra-econômica. Isso implica reconhecer que a violência contra as pessoas escravizadas não era um aspecto acessório da sociedade brasileira, mas parte da própria estrutura produtiva que a sustentava. Se a consciência é resultante da existência material e se, nesta materialidade, o trabalho tem papel central, desconsiderar essa violência cotidiana, permanentemente reiterada durante séculos, é tapar o sol com a peneira.

Também não escapam à abordagem atilada do autor as disputas internas entre diferentes setores das classes dominantes. Ao adotar a luta entre as classes como categoria explicativa, muitos autores acabam incorrendo no erro de enxergar apenas a contradição estrutural entre os produtores de riquezas e aqueles que se apropriam do sobretrabalho alheio, relegando às classes dominantes um retrato de homogênea amorfia. Tal perspectiva, apesar de funcionar bem nos manuais, explica pouco ou nada da história do Brasil. No nosso caso, a dinâmica da luta entre as classes foi, em muitos momentos, presidida por embates entre os setores dominantes, ou mesmo entre os setores médios e os setores dominantes. Como explicar fenômenos como, por exemplo, o tenentismo, sem essa visão mais ampla?

Este é um livro de história das ideias na medida em que seu autor faz um inventário crítico das obras dos principais historiadores do país. Nesse ponto, Ruy se mostra um grande leitor tanto no sentido da quantidade — já que passam pelo seu crivo um enorme número de escritos —, com o sentido de ser um grande analista das ideias alheias, uma tarefa especialmente desafiadora quando muitas dessas ideias são sustentadas por gente cuja visão de mundo lhe é oposta. Nesse aspecto, podemos lembrar do exemplo de Isaiah Berlim: liberal radical, sua biografia de Karl Marx talvez seja das melhores exposições sistemáticas da obra do revolucionário alemão. Isso porque Berlim é um mestre nessa difícil arte de tratar das ideias dos outros, pois sabia, como poucos, separar o momento da compreensão do tempo do juízo e da crítica. Essa qualidade, para além de ser fruto da tolerância e da humildade que todo verdadeiro intelectual deve ter diante do conhecimento, nasce de uma crença na força das ideias, na potência que elas demonstraram ter por si mesmas. Em um tempo difícil como o atual, é sempre bom lembrar dessa potência.

Para além de grande leitor, Ruy demonstra capacidade de realizar articulações interessantes entre pensadores diversos. Para dar um exemplo disso, são criativas e fecundas as ligações entre as obras de Oliveira Vianna e Fernando Henrique Cardoso, passando pela visão do Brasil esposada por Golbery do Couto e Silva. Adotando método parecido com o defendido por Gildo Marçal Brandão em seu fundamental Linhagens do Pensamento Político Brasileiro, Ruy constrói filiações de longo curso entre autores, mas o faz de modo pouco convencional, traçando linhas de continuidade pouco óbvias e muito ousadas, como aquela supracitada.

Por todos esses motivos, o que o leitor tem em mãos é uma obra maiúscula, escrita por um intelectual de alto nível: generoso com as ideias alheias, leitor arguto, criador de conexões criativas e expositor de talento. Assim, abolete-se em uma cadeira confortável, junte papel e lápis (o livro merece o esforço de um bom fichamento) e deixe José Carlos Ruy te expor tudo que aprendeu em muitos anos de estudos sobre a história do país e de seus intérpretes.