Carlos Lopes: Pedro Pomar, por Osvaldo Bertolino

Análise da biografia Pedro Pomar – ideias e batalhas.

Pedro Pomar

Percorrer a biografia de Pedro Pomar – e o melhor verbo para a leitura de “Pedro Pomar: Ideias e batalhas”(ed. Anita Garibaldi/Fundação Maurício Grabois, 2013), de Osvaldo Bertolino, é, por várias razões, percorrer – traz algumas questões que talvez não estejam ainda resolvidas inteiramente, não na historiografia (embora, também nesta, não estão completamente claras), mas na convicção dos brasileiros que se dedicam, neste momento obscuro da nossa história, a lutar por algo digno do nosso povo e da nossa Nação.

Não posso falar por outros – e lá vou eu a personalizar o que deveria ser uma análise objetiva, portanto, supõe-se, impessoal. Mas, no que me concerne (que Jânio Quadros permita essa apropriação de estilo), algumas coisas me pareceram mais claras depois de ler “Pedro Pomar: Ideias e batalhas”.

A primeira delas: o que foi a ditadura? Qual o significado da ditadura instalada em 1964 – e, especialmente, da ditadura do AI-5, que durou 10 anos (dezembro de 1968 a outubro de 1978)?

Não se trata do significado social ou econômico da ditadura, mas do seu significado operacional, isto é: o que ela fez no plano político?

Afastou Jango, Brizola e os demais trabalhistas. Afastou Juscelino Kubitschek – e outras personalidades do PSD de antes de 1964. Afastou, até mesmo, udenistas (aqui, não estamos nos referindo a Lacerda, embora isso seja verdade também quanto a ele, mas a udenistas como José Aparecido e Ferro Costa, e, também, Milton Campos, Adauto Lúcio Cardoso, Afonso Arinos, e, até, Aliomar Baleeiro e Pedro Aleixo).

Quanto aos comunistas, quem foram os principais participantes no debate, em 1960, que antecedeu o V Congresso do PCB?

Maurício Grabois, Pedro Pomar, João Amazonas e Carlos Danielli, contra a orientação assumida pela direção do PCB a partir da Declaração de Março de 1958 – e continuada, essencialmente, pelas “Teses para o V Congresso”.

Do outro lado, o mais destacado defensor das Teses foi Jacob Gorender – e, claro, Luiz Carlos Prestes, ainda que no apagar das luzes do debate (algo que foi frisado por Pedro Pomar em sua resposta a Prestes).

Estamos aqui, naturalmente, abstraindo alguns ataques – e seus autores – que não estão propriamente no campo da luta política e ideológica (a própria comissão organizadora dos debates para o V Congresso condenou publicamente os “agravos pessoais”, que não foram poucos; cf. Novos Rumos nº 68, 17 a 23 de junho de 1960).

Se o leitor se ater a esses nomes, observará que tanto Grabois, quanto Pomar, quanto Danielli foram assassinados pela ditadura – e de modo vil.

Amazonas somente não o foi porque estava em viagem ao exterior – na qual substituíra Pomar, devido à doença da esposa deste – quando da chacina da Lapa. E Prestes estava exilado.

Também foram assassinados pela ditadura outros três participantes do debate de 1960: Carlos Marighella, Ângelo Arroyo e Joaquim Câmara Ferreira.

E, também foram assassinados, o diretor do jornal “Novos Rumos”, em que foram publicados os debates, Mário Alves, e o seu editor, Orlando Bonfim – também, de modo vil – pela ditadura do AI-5.

Todos esses homens eram figuras públicas em 1964 – assim como o debate de 1960 foi público.

Eram alguns dos mais capazes e dedicados homens da História do Brasil.

O papel da ditadura foi, exatamente, o de eliminá-los, na tentativa de liquidar tudo o que representavam, e em nome de um fantasma que a própria reação imperialista fabricara nos EUA: o fantasma do “comunismo” – não aquele mencionado por Marx, mas aquele que era, somente, uma projeção da própria decadência monopolista.

Eles foram assassinados porque, com seus acertos ou com seus erros, eram um obstáculo a que o país se submetesse.

Daí, a frase de Pomar: “Nosso partido é o mais nacional de todos os que existem no país” (cf. Osvaldo Bertolino, “Pedro Pomar: Ideias e batalhas”, ed. cit., p. 519).

No primeiro momento, escandalizou o país a prisão de Astrojildo Pereira, no governo Castelo Branco.

Astrojildo, aos 75 anos e com saúde precária, era tão respeitado – não fosse ele o autor de estudos tão indispensáveis sobre Machado de Assis, Rui Barbosa e Lima Barreto – que fez com que intelectuais que apoiaram o golpe de Estado protestassem contra a sua prisão, aliás, sem nenhum resultado.

Que crime Astrojildo cometera? O de ser fundador, 42 anos antes, em 1922, do Partido Comunista.

Mas isso foi antes do AI-5. Depois desse ato infame, não se assassinava apenas prendendo um idoso (Astrojildo, com a saúde agravada, faleceu poucos meses depois de sair da prisão, em 1965).

Quem eram, então, os homens que a ditadura do AI-5 assassinou?

Osvaldo Bertolino transcreve uma carta de Pedro Pomar ao irmão, Roman, que estava na cidade natal de ambos, Óbidos, no Pará, escrita em meio à luta política no Partido – e em meio à campanha eleitoral do marechal Lott, em 1960:

Quanto a mim, mesmo que a aparência e certo temperamento indiquem orgulho, na verdade continuo o mesmo irmão, teimoso, mas camarada. Além disso, pobre orgulhoso é a pior coisa que o céu cobre. Nosso pai aconselhava-nos orgulho, mas agora compreendo que era sinônimo de dignidade. E homem digno é o que quero ser – sendo uma das boas qualidades que pretendo infundir em meus filhos. Naturalmente que gostaria que os garotos também se vissem livres do egoísmo, do individualismo feroz em que, geralmente, fomos e ainda são criados os filhos do povo” (cf. Osvaldo Bertolino, “Pedro Pomar: Ideias e batalhas”, ed. cit., p. 570).

E, numa carta a um neto, em outubro de 1976, dois meses antes de seu assassinato:

Querido. Calculo como ficaste triste ao teres sabido que Vó adoeceu e, por isso, não conseguimos viajar para te abraçar pelo seu 10º aniversário. Mas não perdes por esperar. Vó está se comportando com muita coragem diante do que lhe aconteceu. Suporta com paciência e dignidade a dor, o sofrimento e as saudades. Dificilmente podemos saber o que pensa de tudo, mas sentimos que ela continua firme, confiante que haverá de sobreviver a esta doença. Aliás, sua Vó sempre foi valente tanto para a dor física como para a dor moral. Procura ser como ela. Nada temas, procura conhecer a verdade, por mais dura e desagradável que ela seja. É a verdade a coisa mais importante e mais bela da vida” (cf. op. cit., p. 686).

Pomar era um homem com um círculo de relações que ia dos operários do Tatuapé aos intelectuais que eram nucleados pela Editora Civilização Brasileira.

O fato de ser dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) não alterou o respeito que despertava, mesmo entre os intelectuais ligados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), logo ele, que respondera diretamente a Prestes no debate de 1960 (cf. “Observações Sobre o Artigo do Camarada Prestes”, Novos Rumos nº 76, 12 a 18 de agosto de 1960).

Assim, foi a ele que Ênio Silveira – dono da Civilização Brasileira e membro do PCB – encomendou a tradução de “Ascensão e Queda do Terceiro Reich”, de William L. Shirer.

Mas, Osvaldo Bertolino cita outro amigo de Pedro Pomar: o humorista Chico Anysio (op. cit., p. 503).


TIQUETAQUE

Existem vários trechos do livro de Bertolino que não são bons apenas do ponto de vista historiográfico, mas também literariamente, o que é a marca do bom historiador (alguém conseguiria ler “Declínio e Queda do Império Romano”, de Edward Gibbon, ou “História da França”, de Jules Michelet, se não fossem também grandes obras literárias?).

Por exemplo:

“Quando o PCB saudou os preparativos do XX Congresso do PCUS mal sabia que estava diante do tiquetaquear de uma bomba-relógio. Como não poderia deixar de ser, o acontecimento enchia os comunistas de esperança. Seria mais uma oportunidade para todos beberem na fonte das experiências socialistas, a origem do caudal de revoluções e governos populares que se formou desde que os bolcheviques tomaram o poder, em 1917.”

O que se descreve em seguida é algo próximo da loucura – com todo respeito aos homens e mulheres que tiveram de enfrentar aquele revés, tal como os de hoje têm de enfrentar os seus, também bastante próximos à loucura.

A Declaração de Março de 1958, da direção do PCB, foi uma adaptação à linha de Kruschev no XX Congresso. Como, aliás, o próprio Prestes esclarece, em seu artigo nos debates de 1960.

Embora não seja o nosso assunto, é sintomática a acusação que Prestes faz a Pedro Pomar, nesse mesmo artigo – a de temer que um processo sob a direção da burguesia levasse a uma ditadura burguesa:

“… muitos camaradas em sua argumentação contra a atual linha política de nosso Partido ainda pretendem levantar a teoria oposta de que a burguesia já jogou fora as bandeiras da independência nacional e da democracia. É o que acontece, por exemplo, com o camarada Pomar, que não acredita que nas atuais condições de nosso país, isto é, sem modificações revolucionárias, possa o desenvolvimento da economia seguir um curso independente e que teme que semelhante curso, sob a direção da burguesia, leve a uma ditadura burguesa com todas as suas mazelas. É evidente que o camarada Pomar não compreende a nova situação mundial e não pode por isso ver que na luta contra o explorador imperialista a burguesia dos países economicamente atrasados e dependentes é cada vez mais obrigada a apoiar-se, internamente, na própria classe operária e em seu partido de vanguarda e, externamente, nos países do campo socialista” (cf. L.C. Prestes, “Por uma justa linha política”, Novos Rumos nº 74, 29 de julho a 4 de agosto de 1960).

A resposta de Pedro Pomar veio logo a seguir:

O camarada Prestes traduziu bem meu pensamento quando diz que eu não acredito que, nas atuais condições de nosso país, isto é, sem modificações revolucionárias, possa o desenvolvimento da economia seguir um curso independente. Disto estou convencido. Não porém que eu tema, como quer o camarada Prestes, que semelhante curso, sob a direção da burguesia, leve a uma ditadura burguesa com todas as suas mazelas. Não é problema de temor e sim de análise objetiva e da perspectiva do desenvolvimento capitalista, na forma em que foi apresentada pelas Teses e vem sendo defendido pelo Partido, e muito especialmente pelo camarada Prestes” (cf. Pedro Pomar, “Observações sobre o artigo do camarada Prestes”, Novos Rumos nº 76, 12 a 18 de agosto de 1960).

Quatro anos depois, houve uma ditadura, que durou 21 anos, 10 dos quais sob o AI-5. Já a abordamos em outro texto (v. Carlos Lopes, Figuras e figurinhas em 1964: antes e depois do golpe contra o Brasil).

Com certeza, não foi a burguesia nacional que organizou e bancou o golpe de Estado, mas a burguesia imperialista. Porém, na polêmica que sucedeu ao golpe de Estado, seria frisado por muitos que a ideia de deixar a direção do processo de independência e desenvolvimento com a burguesia nacional – como Prestes, acima, diz explicitamente – levara ao desastre de 1964.

Nesse momento, muitos dos que, na polêmica de 1960, estavam contra Pomar, Amazonas, Grabois e Danielli, criticaram também a linha anterior – e com a coragem que aqueles dias demandava: Marighella, Mário Alves, Joaquim Câmara Ferreira, Apolônio de Carvalho, Rolando Frati, e, até mesmo, Jacob Gorender. Para citar apenas os que escreveram artigos para o debate de 1960.


ABERRAÇÃO

A cassação do registro do Partido Comunista do Brasil (que, então, tinha por sigla “PCB”), em 1947, foi uma das mais escandalosas aberrações já acontecidas na história do país, sob todos os pontos de vista que se possa examiná-la.

Como lembra Osvaldo Bertolino, o então procurador geral da República, Themistocles Brandão Cavalcanti, manifestou-se pelo arquivamento do pedido de cassação – feito pelo deputado Barreto Pinto – “por falta de provas”, e ainda acrescentou que “a eventual cassação de registro partidário seria um dos atos mais graves que o Tribunal Superior Eleitoral poderia praticar”.

Apesar disso, o TSE, por 3 votos a 2, instalou uma investigação à cargo do subprocurador Alceu Barbedo. O parecer Barbedo (na verdade, são três pareceres) é de uma falsidade tão evidente – ao fabricar uma “duplicidade” nos estatutos do Partido -, que, ao final, ele teve de recorrer a outro “argumento”: a “inconstitucionalidade de partidos extremistas”, o que valia, aliás, somente para os comunistas (os fascistas de Plínio Salgado não tiveram problema com o seu Partido de Representação Popular).

A melhor demonstração de que se tratava de um crime contra a democracia foi o voto do ministro Álvaro Ribeiro da Costa, no TSE:

Na realidade, que fez, até aqui, o Partido, com essa significação?

“Comícios, greves, propaganda partidária, intensa, espetacular, profusa, assustadora, incômoda e suspeita?

“Mas, que atos serão esses, em suma, senão todos eles permitidos, como expressão de direitos e garantias individuais, consagrados pela Carta Política?

“Atentou, porventura, essa Associação, de algum modo, por atos inequívocos, concretos, contra o princípio da pluralidade de partidos, igualmente inserido naquele magno Estatuto?

“Como afirmá-lo, sem prova que o demonstre?

“Não sejam os nossos passos impelidos por atos insanáveis, praticados com sacrifício da verdade e da justiça.

“As objeções que se levantam contra a existência legal do Partido Comunista não devem constituir obstáculo ao seu funcionamento. Qualquer vedação nesse sentido ocasionará mal irremediável, enfraquecendo o organismo democrático.

“A vitalidade deste regime se revela no poder de absorção de forças políticas adversas, de sorte que o trabalho pela supremacia de seus princípios não reside no expurgo de associações políticas, com esses ou aqueles matizes, possivelmente hostis, mas na prática, rigorosa, honesta, em toda sua extensão e profundidade das normas basilares, dando principalmente os dirigentes exemplos inequívocos de sua capacidade para as coisas da administração pública a ponto de satisfazer real e objetivamente as necessidades mínimas dos dirigidos” (cf. Rodrigo de Oliveira Kaufmann, “Memória jurisprudencial: Ministro Ribeiro da Costa”, STF, 2012, pp. 26-27).

O ministro Ribeiro da Costa, porém, seria vencido no TSE – juntamente com o ministro Francisco Sá Filho.

Ribeiro da Costa foi, depois, o presidente do Supremo Tribunal Federal que, em 1964, enfrentou a ditadura – os ataques a ele fizeram com que os demais ministros o elegessem “presidente vitalício”, o único da história do STF.

Mas a aberração tornou-se maior ainda com a cassação dos mandatos de parlamentares do Partido Comunista. Tratava-se, nesse caso, de cassar o voto que fora dado a eles pelo eleitorado, pelo povo. Algo flagrantemente inconstitucional.

Mesmo assim, os deputados comunistas foram cassados.

Com duas exceções: Pedro Pomar e Diógenes Arruda Câmara, que haviam sido eleitos pelo Partido Social Progressista (PSP).

Nesse momento, Pomar demonstra a sua coragem e intrepidez na vida parlamentar – e este é um capítulo (que tem por título uma frase do deputado Pedro Pomar na Câmara: “Sou comunista, sou um dirigente comunista. Infelizmente não pude ser eleito na legenda do glorioso Partido Comunista”) essencial do livro de Osvaldo Bertolino.


QUESTÕES

Existem, ainda, duas questões importantes que gostaríamos de abordar (ou, melhor, apenas tocar): a primeira, a incorporação da Ação Popular (AP) no PCdoB.

Tal como relatado no livro – e mencionado no prefácio por um dos principais participantes daquela incorporação, Haroldo Lima – Pedro Pomar, então na clandestinidade que a ditadura impôs a tantos democratas, criticou o “Programa Básico”, aprovado na III Reunião Ampliada da Direção Nacional da AP.

Observa Haroldo Lima que quando o artigo de Pomar (“A proposta da AP”) foi redigido, a situação dentro da AP já se alterara, mas era impossível a ele saber disso, nas condições de clandestinidade em que, então, se dava a luta democrática e patriótica no Brasil.

A outra questão é a avaliação da luta armada no Araguaia. Pomar expôs o seu ponto de vista, por escrito, em junho de 1976, bastante crítico. No entanto, a discussão estava longe de concluída, quando a chacina da Lapa a interrompeu.

Qual seria a posição final de Pomar, é algo que só podemos imaginar. João Amazonas, seu conterrâneo, companheiro e amigo de toda a vida, declarou que, se Pedro Pomar tivesse acesso às informações que somente foram conhecidas após o seu assassinato, teria uma posição diferente na avaliação da guerrilha do Araguaia.

Não sabemos, mas não existe ninguém mais autorizado a fazer esse prognóstico do que Amazonas.

HERÓIS E TRAIDORES

O primeiro capítulo – na verdade, o Prólogo – do livro de Osvaldo Bertolino mostra a chacina da Lapa de um ângulo, pode-se dizer, inusitado: sob a ótica dos trabalhadores (empregadas domésticas, um mestre de obras, etc.) que estavam em torno da casa onde Pedro Pomar e Ângelo Arroyo foram covardemente assassinados.

A chacina, em 1976, é bem reconstruída, ao final do livro, também com outro elemento: a confissão do traidor que entregou a reunião do Comitê Central à repressão ditatorial.

Mas, para saber sobre isso, o leitor terá que consultar o livro de Osvaldo Bertolino – há certas coisas que somente um historiador dedicado é capaz de lidar, certamente com engulhos de asco, porque é seu dever diante do público e da própria História.

Aqui, apenas destacamos que o traidor era um importante dirigente comunista desde a segunda metade da década de 50 do século passado. O que mostra que o passado não é, jamais, uma garantia quanto ao presente – ou quanto ao futuro.

Lenin estava certo quando disse que não existe uma grande luta sem os seus heróis e os seus traidores.

DUAS NOTAS

Existe muito mais, evidentemente, no livro de Bertolino, do que dissemos, sobre esse homem notável.

Porém, queríamos encerrar com uma nota pessoal – na verdade, duas –, algo inevitável, pois recebi o livro como presente do autor, quando ele descobriu que meu pai fora amigo de Pedro Pomar.

Meu pai, Aníbal Teixeira Lopes, era “sub” de Salomão Malina, na equipe que Pomar organizou para defender a “Imprensa Popular” (que substituíra a “Tribuna Popular”, que fora fechada), o jornal legal do Partido Comunista. A sua amizade com Pomar datava dessa época.

Depois de vários ataques anteriores – que Bertolino descreve em seu livro – a polícia, chefiada, no governo Dutra, por um certo Pereira Lira, às 4h da manhã de 8 de janeiro de 1948, tentou entrar nas dependências da “Imprensa Popular”, na rua do Lavradio, no Rio de Janeiro, para apreender a edição que já estava impressa e fechar o jornal.

Posteriormente, o ministro da Justiça de Dutra afirmou que a ordem partira dele, mas isso não é seguro – ouvi vários participantes do episódio contarem que isso não foi dito pelos que tentavam invadir o jornal.

Então, houve resistência e a polícia abriu fogo, o que foi respondido com as poucas armas que lá havia.

Foi chamado, então, um “choque” da Polícia Especial – chefiado por alguém que ficaria conhecido como juiz de futebol e comentarista de arbitragem: Mário Vianna (aquele que sempre esclarecia que seu nome era escrito com dois “n”).

Esse pelotão abriu fogo de metralhadora contra o prédio do jornal e atirou no seu interior, pelo menos, 10 bombas de gás lacrimogênio.

Quando a equipe foi obrigada a se render, “os investigadores proporcionaram-lhes a recepção usual: socos, pontapés, coronhadas” (cf. Correio da Manhã, 09/01/1948).

Segundo, ainda, o “Correio da Manhã” (na época, o maior jornal do Rio), “à tarde, o ministro da Justiça fez declarações. Aludiu aos artigos publicados na ‘Imprensa Popular’. Concluiu afirmando que ninguém mais do que ele é partidário da liberdade de imprensa”.

Por isso, certamente, mandara fechar a “Imprensa Popular”. Se é que foi ele que mandou fechar.

Foram presos todos os que estavam no prédio – e condenados a penas estúpidas, obtidas por aquele método judicial que se tornaria famoso durante a ditadura: a soma de várias penas, como se existissem vários “crimes” (lembro de um caso, durante a ditadura, em que alguém acusado de uma ação armada foi, também, condenado por “porte de arma” e por “roubo de carros”).

Em 1948, as penas foram mais ou menos desse tipo. Por exemplo:

Salomão Malina – condenado a 3 anos de prisão celular, como incurso no inciso 18 do artigo 3.°, decreto n. 431 de 18-5-1938, mais 1 ano e 6 meses como incurso no inciso 20 do citado decreto, mais 1 ano e 6 meses, como incurso no inciso 30 do artigo 3 do decreto citado, e ainda a pena de 5 meses de detenção, como incurso no art. 329. cc. nos arts. 25 e 51 do C.P., todas essas penas agravadas pelo condição de ser o acusado militar.

Anibal Teixeira Lopes — Condenado a 2 anos de prisão celular, como incurso no art. 3° do inciso 18 do decr. 431, de 18-5-1938, mais 1 ano de prisão celular, como incurso no inciso 20 do art. 3° do dcc. citado, além disso mais 2 anos de detenção como incurso no art. 329 c. c, os arts. 25 e 51 do C P., acrescida essas penas de mais 1 ano de prisão celular como incurso no inciso 50 do citado decreto.”

Essas foram as penas mais pesadas: a de Salomão Malina – o soldado brasileiro mais condecorado na II Guerra Mundial – e a de meu pai, Aníbal Teixeira Lopes, carpinteiro naval. Os dois assumiram a chefia da resistência ao ataque. O que, aliás, era verdade.

Malina tinha 25 anos; meu pai, 26.

Uma curiosidade: no mesmo processo foi condenado Antonio Paim, que, sob a ditadura, viraria sacerdote no altar acadêmico do anticomunismo, como é até hoje, se ainda está vivo. Paim foi condenado a três anos de cadeia por defender o jornal do Partido Comunista…

Todos foram anistiados pelo presidente Juscelino Kubitschek, com direito a apagar dos arquivos a condenação. Infelizmente, não puderam gozar desse direito. Ao requerê-lo, descobriram que o processo desaparecera dos arquivos – sem que isso apagasse as condenações.

Durante a prisão, houve, entre outros, dois homens que se envolveram pessoalmente na defesa dos presos: Pedro Pomar, como deputado, e Evandro Lins e Silva, como advogado.

Minha mãe conheceu meu pai em uma visita, organizada pelo Partido, aos presos da “Imprensa Popular”.

A outra nota pessoal talvez seja algo boba. Mas é a minha emoção ao ler, no livro de Osvaldo Bertolino, alguns nomes quase esquecidos.

Por exemplo, na página 98 é mencionado, como líder estudantil, Aldenor Campos.

Lembro dele no começo da década de 60. Foi o responsável pelo emprego que levou meu pai – e a família – a morar em Vacaria, Rio Grande do Sul, e, depois, Araraquara, São Paulo.

O engenheiro Dr. Campos, como era chamado quando o conheci, administrava uma grande empreiteira da época de Juscelino – era casado com a filha do dono dessa empresa.

Saíra do Partido Comunista, mas não esquecera os amigos. Assim, meu pai foi designado “administrador de estradas de rodagem”, um nome pomposo para chefe de candangos, em Vacaria, e, depois, em Araraquara.