Ananda Beatriz Marques: Não há feminismo sem as mães 

A maternidade é uma pauta de extrema relevância para o feminismo, principalmente na discussão sobre as condições socioeconômicas das mulheres e crianças e na organização de demandas por políticas públicas.

Por Ananda Beatriz Marques

Creche

O direito à creche consta na Constituição de 1988 no artigo 7° que prevê “assistência gratuita aos filhos e dependentes (de trabalhadores urbanos e rurais) desde o nascimento até os 5 anos de idade em creches e pré-escolas”. E é regulamentado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB (Lei n° 9.394/96) que em seu art. 11° determina que é de incumbência municipal “oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas”, portanto, é responsabilidade das prefeituras e secretarias municipais de educação a oferta de vagas e administração desta etapa escolar.

A Pesquisa Nacional de Domicílios – Pnad do IBGE de 2018 mostrou que 3,5 milhões de crianças brasileiras estavam em creches, porém, 6,7 milhões ainda não tinham acesso à educação infantil. Ou seja, apenas um terço das crianças de 3 até três anos estuda, e numa análise regional é possível identificar desigualdades abissais. Apenas 3% das crianças de até um ano e 31% das de 2 e 3 anos da região Norte estão em creches, enquanto na região Sudeste, 18% e 61% das crianças nas mesmas faixas etárias frequentam estes espaços educacionais. Além disso, a meta do Plano Nacional de Educação de universalização da pré-escola em 2016 não foi cumprida, ainda temos crianças de 4 e 5 anos sem acesso à educação.

Ainda segundo a Pnad, em 2015, 83,6% das crianças de 0 a 4 anos tinham como principal responsável uma mulher, fosse a mãe, madrasta ou avó. E destas mulheres, apenas 45% estava trabalhando, em contraste com os 89% de homens ocupados. Cuidar de crianças tem uma relação com o status ocupacional das mulheres, principalmente as de menor renda, pois nas famílias de mais de 5 salários mínimos a porcentagem cai para 72% de crianças cuidadas por mulheres, apesar de ainda ser um número elevado.

O que é possível extrair destes dados e informações? Que a oferta de creches públicas tem uma relação direta com o acesso das mulheres ao mercado de trabalho e, portanto, com suas possibilidades de autonomia financeira. A maternidade é uma pauta de extrema relevância para o feminismo, principalmente na discussão sobre as condições socioeconômicas das mulheres e crianças e na organização de demandas por políticas públicas.

A maternidade é um tema caro, mas não pode ser resumido ao direito de escolher não ser mãe, quando esquecemos das mães, ignoramos que a insuficiência de creches e a invisibilidade da pauta nas campanhas e debates eleitorais tem um sentido político de manter as mulheres que mais precisam de autonomia econômica aprisionadas na vulnerabilidade. Nas eleições municipais de 2020 é indispensável que mobilizemos os atores políticos e ocupemos os espaços de diálogo público para que façamos ecoar a pergunta “a quem interessa que não tenhamos creches suficientes nesta cidade?”. A resposta perpassa a compreensão de quem são as mulheres mais prejudicadas por esta insuficiência.

O feminismo abriu caminho para que mulheres pudessem escolher a não maternidade e esta é uma vitória importante, especialmente na luta por direitos sexuais e reprodutivos, mas este é um avanço limitado à uma parcela restrita de mulheres que tiveram acesso à educação e consequentemente, à uma renda mais elevada. Não por acaso, estas mulheres costumam ser brancas e de classe média, e não apenas podem optar por não ter filhos, como podem, também, ter filhos e dispor de recursos financeiros que sustentam uma rede de apoio, e em última instância, terceirizar as atividades relacionadas ao cuidado da casa e das crianças. Para estas mulheres houve avanço e a entrada no mercado de trabalho significou emancipação, apesar da dupla ou tripla jornada.

Mas para as mulheres pobres, de forma ainda mais violenta para as mulheres pobres e negras, a participação no mercado de trabalho tem acontecido há bastante tempo através de atividades informais ou de baixa remuneração, e consequentemente, de desvalorização social. A maternidade compulsória é mais elevada para mulheres que não têm acesso a métodos contraceptivos e tem um impacto ainda mais cruel para as adolescentes e jovens, pois está associada ao abandono escolar, maiores chances de violência doméstica e precarização do trabalho.

Nós ainda somos as cuidadoras da sociedade, responsáveis pelas crianças e idosos, pela manutenção da vida doméstica e sobrecarregadas pela divisão sexual do trabalho, porém, é urgente reconhecer que raça e classe determinam o quão penalizada você será pela sua condição de mulher. Da mesma forma, é necessário reconhecer que a maternidade é uma experiência também entrecortada pela interseccionalidade, e que existem mães que devido à sua raça e classe estão na base da pirâmide social, são a ponta de lança na lógica da exploração. O feminismo que emancipa apenas um determinado grupo de mulheres e que discute apenas a escolha pela não maternidade não é verdadeiramente libertação, porque não há feminismo sem as mães. Não há.

Ananda Beatriz Marques é cientista política, professora e feminista