Nordeste precisará de décadas para reverter danos de vazamento de óleo

Os danos causados pela mancha de óleo que atinge boa parte do litoral do Nordeste desde 30 de agosto vão se estender por décadas. “A contaminação química dura muito mais tempo do que aquilo que a poluição visual pode sugerir”, explica a oceanógrafa Mariana Thevenin, uma das articuladoras do grupo de voluntários Guardiões do Litoral, que se formou em Salvador para limpar praias, estuários e manguezais desde que a contaminação chegou à costa da Bahia.

Vazamento de petróleo

Em um cenário ideal, aponta Thevenin, o derivado de petróleo deveria ter sido barrado antes de chegar à areia e entrar pelos rios. Como o óleo já chegou à costa, a limpeza deve ser feita na maior velocidade possível, na tentativa de evitar que ele volte para o mar com o movimento das marés – ou que as substâncias tóxicas ali contidas se entranhem nos variados sedimentos costeiros. Ainda assim, mesmo quando o mar, para os olhos, parece limpo, o risco pode seguir oculto por muitos anos.

“Essas substâncias contaminam todos os organismos do ambiente – e isso facilmente cai na cadeia alimentar. Um pequeno peixe, por exemplo, pode comer algo que esteja contaminado. Isso entra na cadeia até chegar no peixe que consumimos”, alerta Thevenin, criadora do perfil Oceano para Leigos, no Instagram.

Nos noves estados do Nordeste, já são 200 localidades atingidas pelo óleo, de acordo com a atualização feita no sábado (19/10) pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Oceanógrafos, químicos e autoridades estaduais ouvidos pela BBC News Brasil avaliaram o impacto da movimentação da mancha pela costa do Nordeste.

Até chegar à Baía de Todos os Santos, em Salvador, o óleo já havia deixado um rastro tóxico por milhares de quilômetros e atingido os mangues e corais dessa região em uma etapa mais avançada de degradação. Esse tipo de contaminação é mais difícil de ser limpa – e permanecerá durante anos no meio ambiente, segundo os especialistas.

O petróleo cru, ainda que seja altamente tóxico, é uma substância orgânica. Dessa forma, ele pode ser degradado através de fatores naturais, como a rebentação das ondas (que dispersam o material), a irradiação solar (que evapora determinados componentes) e até mesmo bactérias que se alimentam do carbono contido no material. O problema, nesse caso, é o tempo.

“A degradação natural é extremamente lenta. A depender do ambiente, leva décadas. Em áreas onde já ocorreram derrames, temos análises feitas anos depois do episódio e ainda assim é detectada a toxicidade. Por isso, seria importante evitar que esse óleo chegasse na costa”, diz Carine Santana Silva, oceanógrafa, pesquisadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e especialista em petróleo e meio ambiente.

Além do risco na cadeia alimentar, as pessoas também estão sujeitas a entrar em contato direto com os contaminantes que permanecerem no ambiente. Isso pode acontecer em uma simples caminhada pela areia da praia ou no banho de mar, tocando involuntariamente em resíduos de óleo ou inalando os gases liberados por eles. “O monitoramento das regiões atingidas precisa ser feito por anos, com análises constantes, para garantir que as pessoas não estão frequentando zonas intoxicadas”, adverte Carine.

A Bahia Pesca, órgão governamental responsável pelo fomento da atividade no estado, produziu um relatório preliminar após monitoramento em áreas pesqueiras já atingidas pelo óleo. “Neste ambiente vivem animais que estarão em contato direto com o poluente e têm grande importância econômica, como caranguejos, aratus, sururu, lambretas. A mariscagem será afetada diretamente nesses locais, visto que, com a presença de óleo, a recomendação é a paralisação da pesca”, indica o documento.

Ainda segundo o texto, “o comércio de organismos aquáticos dessas áreas ficará comprometido. A pesca como um todo deverá ser impactada, tendo em vista que os consumidores foram alertados para não adquirirem produtos pesqueiros”. Conforme a estatal, o monitoramento seguirá sendo feito durante e após a crise, inclusive com análise química de potenciais contaminantes em peixes e mariscos a serem coletados.

Sem medição

No petróleo, estão contidos compostos orgânicos voláteis (COVs) e hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs), ambos altamente tóxicos e cancerígenos. Os COVs evaporam com relativa rapidez, mas os hidrocarbonetos se mantêm íntegros por muito tempo. Para o mais famoso deles, o benzeno, a resolução 357 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) determina um limite que vai de 0,051 mg a 0,7 mg por litro de água salgada. Passando disso, já impacta a biota marinha e a saúde humana – ainda não existe resultado de medição na Bahia após a chegada do óleo.

“Os governos não querem fazer alarde porque um caso como esse afeta o turismo, mas existe a questão da saúde. Tanto de quem frequenta praias como de quem trabalha nessas zonas, mariscando, pescando, vendendo”, observa a química Sarah Rocha, da pós-graduação em Petróleo, Energia e Meio Ambiente da UFBA. “Essas pessoas vão ficar em contato com esses resíduos por muito tempo, porque há também uma sustentação financeira em jogo. É muito difícil, por exemplo, que esses mariscos deixem de ser recolhidos para venda e é certo que muita gente vai ingerir alimentos contaminados”, acrescenta.

Sarah integra a equipe que vem fazendo análises de amostras do óleo que tem chegado à Bahia, verificando sua origem e seu estado físico-químico. Segundo ela, o material que toca as praias já chega bem degradado, tendo passado por seguidas intempéries, e resta somente a fase da degradação bacteriana – justamente a mais demorada. “Notamos que essas amostras têm pouca solubilidade em água. Então, o que não for retirado, ainda vai parar no fundo do mar, sem ninguém ver, contaminando mais esse ambiente.”

A Bahia foi o último estado do Nordeste a ser atingido pelo derramamento, mais de um mês após o primeiro registro oficial, na Paraíba. Duas áreas de extensos manguezais baianos já foram afetadas, nas barras dos rios Itapicuru e Pojuca, ambas no litoral norte. Além disso, o óleo já penetrou na Baía de Todos os Santos – maior do país e segunda maior do mundo –, margeada por dezenas de manguezais, bancos de coral e estuários.

“Em áreas lamosas como os mangues, que têm pouca movimentação de água e sedimentos mais finos, é mais difícil fazer a limpeza. Esse óleo entra nos buracos e se mistura com o sedimento. São décadas para o ambiente degradar (o óleo)”, afirma Mariana Thevenin.

Carine Silva compartilha a preocupação. “Onde bate a onda, a abrasão dispersa o material. A areia também não tem tendência geoquímica de reter os resíduos. Mas no mangue a permanência é bem maior, porque é uma área porosa, que prende o contaminante”, explica. “Nos próximos anos, vai ser bem complicado o consumo nestas regiões. Esses ecossistemas são zonas de reprodução de muitas espécies e abrigam outras tantas que vivem enterradas no sedimento, como ostras, sururu e chumbinho. É justamente onde a contaminação vai impregnar”, emenda a oceanógrafa.

Demora no combate

Para Carine, através das Cartas SAO, poderiam ser identificadas até mesmo “áreas de sacrifício”, para onde o óleo seria direcionado se houvesse o entendimento que era impossível detê-lo. Mas, sem acionamento de um plano de contingência, o que se vê é um espalhamento da matéria por variadas zonas, sejam elas mais ou menos sensíveis. Na sexta-feira (18/10), o Ministério Público Federal (MPF), com aval dos procuradores dos noves estados nordestinos, entrou com uma ação contra a União alegando omissão no caso das manchas de óleo.

O pedido era de que, em 24 horas, fosse acionado o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Água (PNC), criado em 2013. A multa diária prevista é de R$ 1 milhão em caso de descumprimento. “Afinal, tudo que se apurou é que a União não está adotando as medidas adequadas em relação a esse desastre ambiental que já chegou a 2.100 quilômetros dos nove estados da região”, diz a ação.

Diante de toneladas de um material tão tóxico, se o óleo não foi barrado no mar e já chegou a praias, rios e mangues, a indicação é que a limpeza seja feita manualmente. Tudo porque, como esses são ecossistemas delicados, o uso de maquinário pesado pode fazer com que os contaminantes fiquem compactados e ainda mais incrustados nos sedimentos. A limpeza manual, de qualquer modo, requer todos os equipamentos de proteção (botas e luvas de PVC, calça, camisa de manga comprida e máscara para poeira ou gás, a depender do volume de óleo).

Na artigo “How to clean a beach”, publicado pela revista Nature, o biólogo John Whitfield consegue até manter algum bom humor: “pessoas com pás e peneiras são as únicas ferramentas sensíveis o suficiente para remover o óleo enquanto protegem o solo e os organismos ao redor”. Ou seja, para tentar mitigar uma contaminação invisível no futuro, é preciso meter a mão nos contaminantes no presente.

Mais ainda: a população terá de se manter alerta por longo período e cobrar dos órgãos governamentais monitoramento periódico das praias, peixes e mariscos. Conforme resume Carine Silva, “o senso comum é achar que, porque não estamos vendo, não existe. Mas, neste caso, o perigo está justamente no que não vemos”.

Com informações da BBC News Brasil