Equador, alvo da devastação do FMI nas democracias latino-americanas 

Em um de seus últimos romances, Saramago narra a saga de um país imaginário em crise política após 80% da população votar em branco nas eleições municipais. O governo – desnorteado – fugiu da capital, decretou Estado de Sítio e deixou o povo à revelia sem atendimento básico de saúde, segurança e limpeza pública. O Equador de Lenín Moreno, tomado por barricadas na última semana, poderia ser o país imaginário do gênio da literatura lusófona. A falência da democracia é a mesma.

Por Mariana Serafini

“Ensaio Sobre a Lucidez” é a metáfora perfeita da crise das democracias no mundo dominado pelo neoliberalismo. Na obra que pouco se relaciona com sua antecessora “Ensaio Sobre a Cegueira”, o escritor português levanta o debate sobre a falência dos sistemas políticos como conhecemos e as medidas autoritárias que, sem exceção, saem do controle. Nos últimos dias o Equador viu sua estabilidade ir pelos ares. A crise sem precedentes se deu em decorrência das políticas de austeridade exigidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI)para conceder ao país um empréstimo de US$4,2 bilhões.

O Fundo Internacional exigiu que o governo fizesse cortes drásticos para ter garantias de que seria possível pagar o empréstimo. Uma das medidas foi tirar o subsídio estatal a combustíveis – concedido há mais de 40 anos. Isso fez com que o preço aumentasse em até 123% para o consumidor final. Não sem razão, a população tomou as ruas em imensas manifestações e o resultado foi um chefe de Estado acuado e submisso que quando precisou dialogar, fugiu da capital Quito, para a cidade costeira Guayaquil e usou a força policial em excesso para conter os protestos.

Depois de doze dias, nesta segunda-feira (14) finalmente Lenín Moreno recuou e revogou o decreto que dava fim ao subsídio. Mas para isso, deixou o país em frangalhos. Sete pessoas foram assassinadas nas manifestações, centenas ficaram feridas e outras tantas foram presas. Sem dúvida, o passo atrás é fruto de uma vitória popular, uma vez que foram os movimentos sociais organizados, principalmente os indígenas, que lideraram a resistência. Mas está longe de ser a calmaria no país que durante uma década se propôs a ser o pioneiro do Socialismo do Século 21 sob a administração do progressista Rafael Correa (2007 – 2017).

O acordo entre governo e manifestantes foi firmado após uma mesa de diálogo, estabelecida no domingo (13), sob a mediação de representantes da ONU e da Igreja Católica. Os protestos cessaram, milhares de pessoas voltaram às suas casas e o país tentou retomar o ritmo. As aulas que haviam sido suspensas nas escolas públicas e privadas foram normalizadas nesta terça-feira (15), e o sistema de limpeza pública voltou a operar.

Diante do recuo, a economista-chefe do FMI, Gita Gopinath, garantiu que a instituição viu com “satisfação” o esforço do governo de “unir as partes envolvidas” para buscar uma solução sobre as reformas macroeconômicas. Não citou, porém, em que pé está a agora a negociação sobre o empréstimo. No relatório Panorama Econômico Mundial, divulgado nesta terça-feira em Washington (EUA), o Fundo prevê uma contração de 0,5% da economia do Equador este ano, após um crescimento de 1,4% no ano passado. Antes da crise a projeção era de uma expansão de 0,5% da economia em 2020.

Contudo, Lenín gostou de brincar de ditador. Depois de ter fugido com seu governo para a costa e decretado Estado de Sítio, tomou mais uma série de decisões autoritárias que em nada estão ligadas ao empréstimo bilionário. Aproveitou a crise para ampliar a perseguição política contra seus opositores, os chamados “correistas”. Importante lembrar, porém, que foi neste ninho de correístas onde Lenín se consolidou politicamente e só se elegeu à presidência porque teve o apoio de seu antecessor. Uma vez estabelecido no Palácio de Carondelet, traiu a Revolução Cidadã e o povo equatoriano, que depositou nele a esperança de dar continuidade ao projeto popular responsável por tirar mais de 7 milhões de pessoas da miséria em dez anos.

Apesar do recuo diante da pressão popular, Lenín fechou o cerco contra quem se recusou a seguir seus passos e trair a Revolução. A governadora da província de Pichincha (onde está localizada a capital), Paola Pabón, foi presa nesta segunda. E a ex-presidenta da Assembleia Nacional, Gabriela Rivadeneira, está refugiada na embaixada mexicana em Quito desde sábado. Na esteira da repressão, o deputado correísta Virgílio Hernández teve sua casa invadida.

Não é de hoje este movimento de Lenín para barrar seus opositores à base da força e da judicialização da política. O primeiro alvo foi seu braço direito, o ex-vice-presidente Jorge Glas, condenado e preso em 2017. Em seguida, foi a vez de Correa receber o beijo do judas. O ex-presidente que atualmente vive na Bélgica com sua esposa responde a 25 processos no Equador e mais de uma vez foi ameaçado de extradição.

Assim como em outros países latino-americanos, a direita equatoriana não conseguiu retomar o poder através das urnas, e neste caso encontrou em Lenín Moreno, o traidor, o a chave para voltar ao cenário de austeridade de anos 90. O FMI, por sua vez, segue seu curso de fragilizar democracias no terceiro mundo. Enquanto isso, o sonho do Socialismo do Século 21 está adormecido, mas se depender dos movimentos indígenas e populares, a aurora não tarda em clarear a noite neoliberal.