Fabíola Lacerda, poeta nascida no sertão pernambucano e que hoje reside em Recife, desenvolve uma escrita poética original e ousada, utilizando a linguagem coloquial, o humor, o nonsense, a ironia e sarcasmo, conforme uma estratégia de provocação da seriedade lírica e dos preconceitos sociais.
Por Claudio Daniel*
Publicado 09/10/2019 18:53 | Editado 13/12/2019 03:29
É uma poesia que dialoga com elementos culturais díspares, como as histórias infantis, os relatos bíblicos, a fotografia, o cinema, a música, as artes visuais, que são incorporados e ressignificados de maneira irreverente em sua escritura. Apresentamos aqui uma seleção de sete poemas da autora, enviados com exclusividade para o Prosa, Poesia e Arte (Portal Vermelho).
KËTUS
há uma baleia dentro da baleia
que engoliu jonas e dentro dele
outra baleia e outros jonas e baleias
porque jonas não ouve
assim que as bolhas de ar começam a boiar sobre as ondas
jonas exige que não responda
às balas de borracha – linques que jonas envia
isso- silêncio- reflita- reflita em silêncio
dispara pérolas e vai embora
na boléia da primeira baleia
não se escuta dentro d'água
ainda mais dentro de uma baleia
dentro de outra baleia
de outra baleia- de outra
há uma baleia dentro de jonas
e outras baleias e outros jonas
EU MATEI MEU PRÓPRIO IDIOMA
eu matei meu próprio idioma
e deixei minha caderneta numa das cadeiras da casa de chás
e chamei todas as cobras de poças de perfume
e passei minhas tripas pelo vago da agulha
e gritei teu nome
e tuas omoplatas responderam a todas minhas perguntas
homens mortos disseram me amar
os vivos me negligenciaram como a um espectro
eu fui ao fundo do mar
e na barriga da vicunha
me cobri de deserto
e nada mais precisei
nada mais quis
e silenciei o mar
TODOS OS HOMENS MORRERAM
todos os homens morreram
todos
ando por entre cadáveres
tentando não pisar em nada
apesar do cuidado
pelas pontas dos pés
ocorre-me de pisar num crânio ou outro
num fêmur numa tíbia
em pequenas falanges
estou só
quase sem ar
mas prossigo
suando sangue
chorando sangue
em minhas artérias circula o pus de muitos séculos
prossigo
intuo que talvez ainda haja vivos
mulheres andando perdidas
absortas
tentando encontrar alguma culpa após a desforra
que traga de volta o sentimento de realidade- a culpa
não há o que fazer
além de prosseguir
encontrar alguém
relatar a hecatombe
lavrar obituários
registrar como todas nós- inconspirantes
num mesmo instante
mesmo transe
desferimos os golpes acumulados desde lilith
mas hoje não queria falar sobre nada
é preciso procurar e não encontrar
é preciso deitar a mente na suspensão do pó
'il faut'
não ampliar o holocausto
o levante involuntário
SEM TÍTULO
leda tinha três pernas
e trepidava
sem as minhas
duas pernas de caniço
que a sustentavam.
até tremerem de cansaço.
leda agora é segura
feito cisne na gaiola.
com suas quatro pernas.
perna postiça não cansa.
leda não mais trepida.
sofá é confiável.
descansamos
cada uma pro seu lado.
leda e eu.
sabiáveis.
mulheres têm rosas na cabeça.
BLACK SQUARE
o silêncio abstrato é negro
o silêncio concreto é branco
o concreto amarela
o abstrato quebra
na tela de maliévitch
um elefante
um ruído
brame
VOCÊ DORMIRÁ EM MEUS OLHOS
Quando de vez enlouquecer, você dormirá em meus olhos
Pupilas constritas: totalmente: para que a luz não te incomode
Pensamentos cítricos como limão siciliano
Alguma volúpia: noz (moscada) ou páprica
Sonhos quais campos de lavanda do sul da frança
Será um repentino -no entanto- perene acalanto- os meus olhos
Você dormirá peremptório: Marmóreo como o tempo
E abismo será teu sono- fado licoroso- um porto
Os elísios de meus olhos te levarão aos desvãos mais recônditos da memória:
À primeira sucção nos mamilos róseos de tua mãe mocinha
Quanto os de maria de josé de belém de nazaré
(E como foi celeste tua mãe,
e como camelos foram os músculos de teu pai
ao te suspender pela primeira vez!
– você se lembrará de tudo isso com uma exatidão sinestésica )
Muito mais que isso e muito mais que tudo
Você terá, sobretudo, os sonhos mais novos
Aqueles ainda intocados pela imaginação humana
Quando de vez enlouquecer, você dormirá nos meus olhos
Você será o homem mais livre de toda história lítica férrea e plumária
Porque você não será escravo de seu próprio poder,
não precisará rezar aos domingos,
ser fiel a concepções ou insígnias
– essas coisas tão violentas quanto cômicas que os tiranos costumam usar
Sim, o mais livre de todos,
pois não há paz mais definitiva que a dos meus olhos enlouquecidos
Nos meus olhos de hospício até o teto é acolchoado com cetim,
espuma e nuvens
E não há outros loucos para incomodar
E toda a repetição do discurso será tua-
o repique dos sinos das catedrais das capelas e ermidas
– todo o eterno retorno será ditado pelo arbítrio de teu verbo soberano
Você será rei papa presidente première demônio deus único
ou apenas uma pulga a incomodar um vira-lata na calçada de uma igreja
Dentro de meus olhos enlouquecidos
Da minha paz demente
Dos meus lábios para sempre selados de tanta loucura:
Você dormirá.
* Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.