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Quando as borboletas viram pétalas: a poesia de Maria Marta Nardi 

Sobre o Caule de Água, de Maria Marta Nardi, publicado pela editora Leonella, é uma coleção de 24 haicais, gênero poético japonês formado por apenas três versos que foi popularizado no Brasil por autores como Alice Ruiz e Paulo Leminski. Nessa forma concisa, que valoriza a simplicidade vocabular, a delicadeza e o retrato das imagens da natureza, a poeta obtém notáveis resultados, pelo domínio dos recursos técnicos da poesia, expressão emocional e singularidade do olhar.

Por Claudio Daniel*

Maria Marta Nardi

Marta, que nasceu em Marília (SP) e reside hoje em Campo Grande (MS), onde trabalha como professora, apresenta ao leitor pequenas peças de alta beleza e intensidade lírica, como por exemplo este terceto, que abre o seu livro: “chuva de primavera / até borboletas / viram pétalas”, em que o primeiro verso é um kigo, ou signo da estação do ano, utilizado na poesia tradicional japonesa para indicar o momento em que o poema foi escrito e a relação íntima entre o ser humano, as estações do ano e a natureza. No poema de Marta Nardi, notamos ainda a sutil metamorfose das borboletas que viram pétalas, como se fosse uma cena do filme Sonhos, de Akira Kurosawa.

Em outras composições, que revelam um delicado humor, lemos: “quem consegue dormir / com a lua de outono / rondando a janela?”, peça que dialoga com autores como Bashô e Li Tai Po, que também converteram a lua em protagonista de ações cotidianas, e ainda “depois da chuva / um louva-a–deus / ainda reza”, poema que nos faz pensar em Kobayashi Issa, haicaísta que cantou os animais, os insetos, as crianças e as plantas.

A observação de cenas inusitadas da natureza é uma especialidade de Marta, cujo olhar, como se fosse uma câmera cinematográfica, consegue captar “uma folha (que) é estreita / para um exército / de formigas” e “um caracol (que) se enrola / sobre as folhas / e o dia envelhece”. A poeta registra ainda lembranças familiares, como nestes intensos tercetos: “casa de avó / um cuco grita / no canto da parede” e “meu irmão morto / carneiros negros / no céu da tarde” e momentos de angústia, solidão e tristeza, em versos como “sozinha noite adentro / bate um frio / ao menor vento”.


 

A sutileza da poeta, que sabe captar o raro e o inusitado, nos surpreende pelo desenho de pequenas cenas que poderiam ser comparadas à pintura sumiê, em que as imagens são deliberadamente imprecisas, incompletas ou borradas, conforme a ideia taoísta da “perfeição do imperfeito”, expressa por autores como Chuang Tzu. Notamos a presença desse conceito filosófico em composições como “noite em branco / cantam grilos / em meus ouvidos” e “início das chuvas / perto da estação / vagalumes acendem as luzes”. A simplicidade, a linguagem direta, que revela apenas o necessário, obedecendo a um princípio de alta economia vocabular, dá o tom em “noite de inverno / roxa de frio / a violeta” e “noite alta / cai do céu / uma estrela”.

Sobre o Caule de Água, de Maria Marta Nardi, é uma síntese notável da forma poética oriental com a sensibilidade, a memória, o humor e a veia inventiva de uma poeta que merece ser lida com atenção.

* Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.