A “cruzada moralista” e os rolos do senador Bolsonaro

Investigações sobre as denúncias contra Flávio Bolsonaro chegariam ao presidente Bolsonaro.

Por Osvaldo Bertolino

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Os números superlativos apontados pelo Ministério Público (MP) ao pedir a quebra de sigilo do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) impressionam. As acusações são de que ele comprou 19 imóveis por R$ 9 milhões. Os procuradores dizem que as operações contêm indícios de lavagem de dinheiro e que o lucro dos bens foi maior do que seus rendimentos. A denúncia diz também que o senador e ex-deputado estadual lucrou R$ 3,089 milhões em transações imobiliárias em que há “suspeitas de subfaturamento nas compras e superfaturamento nas vendas”.

Os dados, publicados pela revista Veja — a TV Globo também teve acesso às informações do MP—, são do documento que fundamentou o pedido de quebra de sigilo, autorizado pelo juiz da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. Nele, o MP indica que a suposta fraude pode ter ocorrido para “simular ganhos de capital fictícios” que encobririam “o enriquecimento ilícito decorrente dos desvios de recursos” da Assembleia Legislativa fluminense. Em nota, o senador disse que “não são verdadeiras as informações vazadas na revista Veja” e que “continuo sendo vítima de seguidos e constantes vazamentos de informações contidas em processo que está em segredo de justiça”.

Badalação política

Seja como for, as acusações são a ilustração do cenário político brasileiro surgido com a “cruzada moralista” que serviu de base para ascensão da extrema direita, beneficiada pelo golpe do impeachment de 2016. Esse episódio revela o quanto há de hipocrisia nesse processo, uma pretensa onda saneadora com segunda, terceira e quarta intenções; o clã Bolsonaro foi o catalisador dessa marcha golpista que se projetou com um verniz moralista. Para entendê-la em toda a sua dimensão política, é preciso uma análise com uma perspectiva temporal mais ampla, um capítulo da história do Brasil.

Se há denúncias, é preciso investigá-las com rigor e lupa de precisão. Isso é bem diferente do encontro do estardalhaço com a ineficiência que marcou essa trajetória que levou Jair Bolsonaro à Presidência da República. Não há, em nenhum dos casos levados às manchetes da mídia, um desfecho conclusivo, com fatos e provas capazes de justificar as ações persecutórias que têm nos métodos da Operação Lava Jato uma espécie de manual, uma legislação paralela, à margem da Constituição e do Estado Democrático de Direito.

Para que uma denúncia se transforme em acusação consistente, ela precisa de um ingrediente básico: credibilidade. Quando a denúncia não se sustenta, ela se transforma em não mais do que badalação política. Esse é o ponto: as investigações envolvendo o senador Bolsonaro certamente chegariam ao presidente Bolsonaro, se levadas às últimas consequências. Assim como deveria ter ocorrido com as denúncias de “caixa dois” apontadas pela Operação Lava Jato e que não passaram do estágio em que suposições, delações e ilações levaram o ex-presidente Luiz Inácio da Silva e outros à prisão.

Malfeitos do senador

Não há, em todos os autos apresentados, uma só indicação de que o tapete do problema poderia ser levantado para que as investigações avancem, inclusive para provar as acusações fundadas em subjetividades que resultaram nas prisões impostas pelo espectro da Operação Lava Jato. O recurso à “cruzada moralista”, tido pelos golpistas como instrumento cívico, com esses métodos se revelou pífio, incapaz de produzir algo que possa ser apresentado como um verdadeiro marco de combate à corrupção.

Com esses dados, surge a indagação: até onde as investigações dos malfeitos do senador Bolsonaro podem ir? Elas deveriam retomar a base das acusações da Operação Lava Jato e puxar o fio da meada do “caixa dois” para se chegar aos mecanismos de lavagem de dinheiro. Os dados estão disponíveis. Segundo a Receita Federal, a estimativa é de que do total de contribuintes mais endinheirados a quantidade que declara sua renda deve representar entre 40% e 50%. As informações são do ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, que depôs na CPI dos Bancos, em 1999.

Grande parte do que a Operação Lava Jato diz que descobriu está no relatório dessa CPI. Outra parte importante consta da CPI do Orçamento. Em 1.º de dezembro de 1993, o então senador José Paulo Bisol (PSB-RS), um dos seus sub-relatores, anunciou que a Polícia Federal havia encontrado 40 quilos de documento na casa de Ailton Reis, diretor da empreiteira Odebrecht, que revelavam um poder paralelo no Brasil. Ele considerou o fato tão grave que até consultou o então presidente, Itamar Franco, e o Exército, para expor o temor de um golpe militar em resposta ao material apreendido.

Cruzada com os norte-americanos

Bisol disse ao jornal Folha de S. Paulo que para a CPI das Empreiteiras o esquema Odebrecht era "mais relevante" do que o do Orçamento. "Não é um poder paralelo. É superior. O Estado brasileiro é instrumento nas mãos dele", afirmou. Como exemplo, citou o relatório da CPI mista do FGTS, que "contém um texto que foi elaborado dentro da Odebrecht". "Para os corruptores, é preciso fazer a CPI das Empreiteiras, do Cimento e do Sistema Financeiro. Aí o Brasil teria as condições para ser uma outra nação", sintetizou.

Há ainda muitos outros episódios que deveriam ser levados em conta nessa “cruzada moralista” — como a “lista de Furnas” —, mas que foram solenemente ignorados pelos arautos da Operação Lava Jato. A questão é que se tudo é escândalo, nada mais é escândalo. Nesse estágio entram as operações políticas no lugar das ações da Justiça. E com esse método se afronta a legislação e se desmonta o Estado Democrático de Direito. Esse falso combate à corrupção remete à "cruzada democrática" pré-golpe de 1964 que, segundo o historiador Nelson Werneck Sodré, os irreverentes diziam ser “cruzada com os norte-americanos”.